Há algo de podre no reino das religiões. E a massa falida de um mercado lucrativo – as igrejas – perpetua-se pelo Brasil como uma epidemia, inclusive, televisionada. O interesse de diversas congregações – que não são, necessariamente, sinônimo de crença – é manter um público hipotético frente às linhas de batalha. Fieis leais, mesmo que pareça redundante, em grande parte das diferentes religiões que surgem no país a cada dia são conseguidos no grito, numa guerra escondida em discursos.
Com significativa midiatização, o fomento religioso de oposição a temas delicados em pauta na sociedade brasileira (os chamados tabus) vem carregando as instituições de uma nação (que deveria ser laica) de pragmatismo religioso específico de determinada fé. Enquanto as pessoas se amam de diferentes maneiras, enquanto milhares são cidadãos sendo usuário de drogas, enquanto as mulheres seguem a luta pela real libertação e emancipação, enquanto tudo isso e muito mais ocorre, as religiões encontram na dependência humana de afirmações um vácuo preenchido, muitas vezes, pela doutrinação que vem “trazer respostas”. E essas respostas são as mesmas escritas há mais de dois mil anos e esses simulacros de respostas, atualmente, custam caro. Além de encorajar-se em dogmas rígidos aos quais grande parte da população nem mais se submete, a fé reencontrou o caminho do lucro, rememorando o sistema de crença ocidental da época medieval.
As igrejas entenderam os negócios – o lucro retroalimentando-se na crença de vitórias exclusivamente materiais – e também como usar para seu próprio benefício a epidemia mundial de fobias e doenças do cotidiano voraz. Além da mercantilização da fé, as religiões, as novas e as mais antigas e bem-difundidas no Brasil, vide Igreja Católica, buscam influenciar, a partir de perspectivas singulares, decisões em nível nacional, regional e local que em nada relacionam-se com crenças. Debates políticos foram desvirginados em pequenos cultos de evangelização e a opressão social, por exemplo, contra a mulher – subjugada como ser de importância relativa – recebe pouca reverência.
Seria a oposição político-religiosa às demandas de milhões de brasileiros a responsável por fomentar tantos tabus?
Um grupo de mulheres religiosas, de orientação evangélica-batista-pentecostal, reúne-se para discutir o quão problemático é ser a mulherzinha de um homem omisso (Veja o vídeo aqui). Podemos ser bem relativistas e defender que elas têm o direito de acreditarem e de defenderem o que bem entendem, ou o que compreendem que seja o certo. Mas não podemos ser tão relativistas. E por alguns bons motivos.
O primeiro é o de que as religiões cristãs sempre quiseram ditar as normas da vida das pessoas, ao redor de todo o Ocidente. Mataram, torturaram, segregaram e humilharam em nome disso. Esse é um bom motivo para impedir que as religiões, principalmente as normativas, sigam ditando as regras em uma sociedade. A religião é a opção que um indivíduo faz dentro da coletividade social. Porém, essa mesma sociedade não deve ser permeada apenas por essa opção individual. Por ser uma opção individual, ela compete ao cidadão e, não, à sociedade. Não podemos e não cabe às decisões sociais determinar a religião de alguém – nem que essa religião deva ser consenso entre todos.
O segundo é a questão que envolve o cerne da violência doméstica. Se você ainda não assistiu ao vídeo do encontro de Mulheres Diante do Trono (Como ser submissa a uma pessoa omissa?), talvez você não saiba o conteúdo por elas abordado. Mas, em síntese, é o seguinte: seja submissa, pare de procurar emprego e vida fora do casamento, pense em se casar e gerar filhos o mais rápido e esqueça essa maluquice de ser independente. Todas essas normas – TODAS – são um problema. Problema ao serem normas.
Uma mulher pode escolher ter filhos, ser dona-de-casa, aprender a cozinhar, optar por não ter uma faculdade ou por se casar cedo. A questão principal é que ela possa – e não que ela deva ser assim. Nada do que nos é imposto pode ser saudável e aceito pela sociedade. Não devemos viver uma vida imposta. Décadas de movimento feminista rompem, ainda aos poucos, com as barreiras construídas ao redor das mulheres: o direito ao voto, a possibilidade de cursar uma faculdade, a opção pelo não-casamento, a escolha em não ter filhos. Quando alguma mulher, seja ela quem for, é condenada por ter feito alguma dessas escolhas acima, algo está muito errado. As lutas feministas combatem pela emancipação da mulher, não pelo dever de corresponder a um padrão – omisso, calado e inquebrável. O mais irônico é que as mulheres pastoras, que pregam durante o segundo encontro de Mulheres Diante do Trono, talvez não saibam que só podem falar em público, atualmente, por culpa de muitas mulheres que se revoltaram contra a submissão e a omissão.
“Primeiro vamos começar [com] a definição de submissão segundo o dicionário: ato de submeter, sujeição, obediência, docilidade. Submisso é aquele que é obediente, dócil e respeitoso. Conhecem alguém assim? Obediente, dócil, respeitoso? Qual o nosso maior modelo de obediência? Jesus! E o contrário de submissão? Rebelião. Rebelde é aquele que se revolta, teimoso, indomável, desertor, amotinado. Quem você conhece que foi revoltado, teimoso, indomável, desertor e amotinado?” – e a plateia responde “Judas”. “Começa por aí: nós somos mulheres submissas porque nos parecemos com nosso mestre. Ele é o nosso padrão, ele é o nosso modelo”, complementa a pastora.
Ser induzida a seguir os ditames de uma religião que prega a sua obediência ao marido? O pior do que a própria obediência são as consequências funestas da mesma. Uma religião que prega que uma mulher não pode nem deve ter independência financeira é uma religião que consente com a violência – física e psicológica. E sabemos que os níveis exorbitantes de violência doméstica (sim, são os próprios companheiros os responsáveis pelas agressões, em sua maioria) só continuam praticamente os mesmos porque muitas mulheres não se sentem confortáveis em denunciar – seja por omissão, seja pela falta de condições financeiras de se desligar do marido, seja pelo moralismo social, sejam todos os problemas psicológicos que essa vítima adquiriu ao longo de anos de submissão. Não é nada fácil acabar com a violência – ela não é apenas mão ou a bofetada desferida. Ela é a pressão, o moralismo, o ranço, o ódio e o desprezo diários. São as ameaças, as agressões verbais, o cerceamento.
Em terceiro: conceber que a normatividade deve continuar sendo a regra, desrespeitando todas as lutas por avanços sociais, é praticamente selar com uma pá de cal as reivindicações por um mundo mais respeitoso e mais justo. São os pensamentos do consenso e do moralismo, pregados por essas mulheres do trono, que fazem com que as pessoas considerem que os gays precisam de “cura”, ou de que é errado pessoas do mesmo sexo se casarem – de que é horrível que uma mulher não queira/possa ter filhos, ou que o estupro é sempre responsabilidade da vítima. Ou mesmo que, em pleno séc. XXI, nós ainda tenhamos influência de alguns setores religiosos (e de seus interesses específicos) na Câmara e na política institucional, acabando com a possibilidade de um Estado verdadeiramente laico (não um Estado que restrinja as possibilidades de culto – ao contrário – um Estado que respeite todas as formas de expressão/culto/fé, mas que não as leve para as vias institucionais de decisão cidadã).
Dando continuidade à pregação das mulheres do trono, mais uma toca a nossa atenção: um momento específico do encontro é todo sobre como se vestir de maneira mais “comportada”, chegando, inclusive, à sugestão de comprar números maiores do que as mulheres realmente usam, com o objetivo de tapar ao máximo o próprio corpo. Os problemas referentes ao estupro e aos abusos ao corpo e à soberania da mulher são, em sua maior parte, consequência da ideia, difundida principalmente pelos preceitos de pecado original da igreja católica, de que a mulher é responsável, ela própria, pela violência que ela sofre! Como se o tamanho da saia ou do decote fossem justificativas plausíveis para uma agressão (física, verbal, psicológica, moral). Um lema feminista bastante divulgada salienta: quem causa o estupro é o estuprador, não o tamanho da saia, a quantidade de álcool consumida ou a escuridão da noite. Enquanto as mulheres forem responsabilizadas pelo que com elas ocorre, continuaremos em uma sociedade que culpabiliza as suas vítimas e absolve os agressores – e não, isso não tem nenhuma relação com “arrependimento pelos pecados”.
Quem disse que religião não se discute? A fé individual é incontestável, pode ser. Mas o que alguém faz com a sua fé, e em nome de sua fé, torna-se um problema coletivo, totalmente diluído entre todas as pessoas de uma sociedade. Se eu mato ou imponho alguma coisa, por exemplo, em nome da minha fé, em nome de um deus ou de uma crença, eu não estou apenas exercendo o meu direito de acreditar em algo; eu estou impondo aos outros a minha ideia de como o mundo deve funcionar. As pessoas precisam ter o seu direito à crença assegurado – mas isso pressupõe que todas as pessoas tenham o mesmo. Não há nada errado em acreditar em alguma coisa – ter fé. O errado mesmo, que prejudica os demais, é não acompanhar os rumos da História e os avanços do pensamento. Se uma religião quer pregar o amor, ela está mais do que na hora de entender que toda a forma de amor é válida e merece respeito. Se uma religião quer que todos sejam iguais, ela não pode mais reforçar os papeis preconceituosos e opressivos que as mulheres são obrigadas a desempenhar há tantos séculos.
As novas e antigas religiões, respaldando-se diferenças crassas entre elas, vestem uma camisa intencionalmente religiosa antes de constituir um cidadão. Como podem as religiões aceitarem – e reforçarem – a opressão fanática sobre indivíduos e estilos de vida opostos aos provocados pela religião e suas escrituras doutrinárias? Qual o intuito de uma religião que luta para que a mulher perpetue o abuso cotidiano machista histórico? A sociedade, com seus compartilhamentos humanos ativos e comunicacionais, exerce sobre todos nós conceitos iludidos em termos embaçados. Viver em sociedade, por exemplo, não constitui o ideal de que todos sejamos iguais, mas, sim, de que nos respeitemos em nossas diferenças. Se devemos respeitar a liberdade de crença, e de culto, também é mais do que o momento das religiões perceberem que seu papel não é o da doutrinação e o da exclusão. Se querem ser respeitadas, que compreendam as diferenças e respeitem na mesma proporção. Chega de cruzadas morais em nome de ditames religiosos.
POR QUE SER SUBMISSA A UMA RELIGIÃO OMISSA? pelo viés de Bibiano Girard e Nathália Panka Costa
bibianogirard@revistaovies.com
nathaliacosta@revistaovies.com
Parabéns ao pessoal da Revista O Viés. Ao ver o vídeo do encontro das mulheres, Diante do Trono, talvez minha angustia não tornou-me capaz de formular um texto tão bom quanto esse. O texto que compartilho soube traduzir aquilo que queria dizer, mas não disse envolvida pela perplexidade…