Um silêncio do tamanho de um gol tomou conta do Estádio Olímpico Monumental quando o sol deste histórico domingo, dois de dezembro, começava a se esconder de Porto Alegre. Foi um silêncio que atingiu não apenas os ouvidos: cada sentido o sentiu. Acabava o último jogo oficial disputado em um estádio que já viu títulos, confusões, sangue, suor e lágrimas em quantidade suficiente para fazer o que efetivamente fez: transformar o fosso que separa as arquibancadas do campo em uma inquebrável ponte que os une.
O Grenal 394 terminava em zero a zero, mas é justamente em grenais que costumam ganhar vida alguns dos jogos mais emocionantes que terminam sem gols. O Grêmio teve chances de vencer, nos pés de Elano, na cabeça de André Lima, e nas duas expulsões coloradas – Muriel e Damião, ambos bem expulsos. Mas talvez tenha sido o calor, talvez a pressão, algo fez com que o time gremista não se movimentasse o suficiente para abrir espaços na defesa do Inter, desorganizada desde o início da partida e sem desafogo a partir das expulsões do segundo tempo.
Mas o Grenal deste domingo foi muito mais do que um jogo. Foi uma sensação que durou 120, 180, 240 minutos. Durou duas eternidades. Desde a manhã, torcedores começaram a lotar as pequenas praças que rodeiam o Olímpico, com churrasqueiras e isopores. Às 14h, quando os portões foram abertos, uma multidão já ocupava o pátio, cruzava pela última vez como multidão os círculos que enumeram os principais títulos do Grêmio, encravados na entrada principal. O clima de comoção, esquizofrênica mistura de festa e lamento, comemoração e velório, estava no rosto de cada um. Que soe piegas, que soe frase feita. Se foi feita, foi feita para esse momento mais do que para qualquer outro. A expressão no rosto de cada gremista carregava um Grêmio inteiro. Os olhos que viam Marcelo, Pará, Werley, Naldo, Anderson Pico, Fernando, Leo Gago, Souza, Elano, Zé Roberto, André Lima e Luxemburgo viam, como sombras, Danrlei, Arce, De León, Adílson, Everaldo, Dinho, China, Tcheco, Renato, Alcindo, Jardel e Felipão. E viam muitas outras sombras, não como imaginação, como realidade palpável, estava ali, esteve ali.
A tarde de domingo teve o que há de pior no futebol. Teve desrespeito e covardia. As desavenças e os estranhamentos comuns aos grenais ultrapassaram os limites da civilidade com a molecagem de um treinador profissional, o do Internacional, que chutou para longe uma bola na lateral chutando junto a ética, o respeito e o senso profissional. Agiu como um moleque, assim como um de seus jogadores que puxou os outros, ao fim do jogo, em uma esdrúxula celebração da pequeneza. O atleta não entendeu o contexto em que estava inserido, faltou-lhe um senso histórico que não podemos cobrar-lhe, mas faltou-lhe também a ética e o profissionalismo que, sim, são impreteríveis. Não foi o Grêmio o desrespeitado. Foi a grandeza do Inter. O exagero que transforma a boa e bela rivalidade em agressividade e deselegância somou-se à covardia de um árbitro que garantiu-nos mais cinco minutos de Olímpico e, sem explicação razoável, nos tirou da boca o gosto de beijar por mais um instante a face de nossa moribunda casa.
A tarde de domingo também teve o que há de melhor no futebol. E não são os gols. Um gol não é mero detalhe, mas, em um jogo tão belo por suas variantes, possibilidades e reviravoltas, é a emoção o que move a bola. Cada vez menos para boa parte dos jogadores dos grandes clubes. Mas o que seriam eles sem seus torcedores? E o que seriam os torcedores sem a emoção? Então, mesmo em tempos de futebol-negócio, é a emoção quem faz com que a bola gire, para o bem e para o mal. Se o futebol aliena, divide e desvia, não é culpa dele, futebol, e nem dela, bola. O que eles fazem é arte. Somos nós quem precisamos reaprender a apreendê-la.
O fim do Olímpico é um caminho construído justamente pelo futebol-negócio, pela construção da Arena. Mas foi – e seguirá sendo – pontuado pela emoção do torcedor. Os a favor e os contra a mudança estiveram hoje juntos para homenagear seu Estádio, sua História. Os debates foram feitos, as discussões foram travadas, as denúncias foram apresentadas, mas, para além do que fazem nossos dirigentes, para além da causa mortis, fomos todos, neste domingo, nos despedir de nosso amigo.
Quem melhor definiu a situação foi o ex presidente Hélio Dourado, ele que tanto trabalhou pelo Olímpico. Dourado, apartado da celebração e das homenagens, sequer citado nas festividades, declarou que sentia-se ao lado de um amigo que estava à beira da morte. Era isso o que cada gremista presente ao Olímpico neste dois de dezembro carregava no rosto.
Ao apito final, passada a indignação com o árbitro, a decepção do empate e a vergonha pela comemoração de alguns jogadores colorados, tudo pareceu parar. O tempo, o vento, o som. Dezenas de milhares de pessoas já não sabiam o que fazer, já não sabiam para onde ir. Ficaram todos por vários minutos que pareceram horas, e ficaram muitos por horas que pareceram séculos. Simplesmente ficaram. Ficamos. Ninguém queria ir embora, não havia aonde ir. Como deixar o Olímpico pela última vez? Que passos dar, para onde olhar por último? Então, ficamos.
Homens e mulheres aos milhares choravam abraçados, alguns em silêncio, outros entre soluços. Setor por setor, os torcedores desceram correndo as arquibancadas, em uma gigantesca avalanche, como acontece na Geral a cada gol gremista. Estávamos todos irmanados, redimidos, reunidos. Velhos e jovens enxergavam em todos os cantos o que já foi e o que já não será. Primeiro em pé, depois sentados, olhávamos cada pedaço daquela enorme casa comum entre todos. Uma casa onde todos passamos uma vida que, com vitórias e derrotas, nunca foi sem graça. Uma casa onde a emoção esteve presente em todos os instantes, em que vivemos todos intensamente, e juntos. Cada sobrancelha apertada, cada olho marejado, cada mão sobre o rosto carregava o peso de uma trajetória monumental em suas pequenas e grandes lembranças. Cada lágrima que escorria queria dizer: quero ficar junto contigo, Olímpico. É ele quem vem conosco. A onde o Grêmio estiver.
PARA SEMPRE MONUMENTAL, pelo viés do colaborador Alexandre Haubrich*
*Haubrich é jornalista e editor do blogue JornalismoB e do JornalismoB Impresso, jornal independente distribuído gratuitamente nas ruas de Porto Alegre e, através de assinaturas, para todo o Brasil. Colabora com diversas publicações, entre elas a revista o Viés. Leia outros textos publicados por Haubrich na revista o Viés aqui
Ótimo texto. Acho que ninguém imaginava que essa despedida seria tão difícil.
Não sou do sul, muito menos gremista
Mas gostaria muito de ter visto o clássico.
Uma pena que perdi.
Texto brilhante que traduz as palavras que ficaram engasgadas em minha garganta desde domingo! Parabéns ,me senti emocionada por tua lucidez em expressar nossos sentimentos Imortais,imortais tricolores!