Da América Latina, o retrato midiático que obtemos cotidianamente não é dos mais favoráveis. Por vezes, é demasiadamente negativizado em torno de temas como a criminalidade, o tráfico de drogas, a pobreza, a exploração – dentre diversas outras mazelas. O jornalista e teórico Francisco Sant’Anna (2001) diz que a negatividade expressa sobre os países da América Latina na mídia brasileira, especificamente, fere a ideia de integração e de identidade latino-americana em sua gênese:
O imaginário do brasileiro leitor […] é fortemente abastecido por um volume de notícias negativas três vezes e meia maior do que as que trazem conteúdo positivo. Essas informações associam os países vizinhos ao narcotráfico, a ditaduras, terrorismo, corrupção escândalos, violência, crises sociais, políticas e econômicas, dentre outros. O lado positivo reúne notícias sobre arte, educação, ciência e tecnologia, organismos internacionais (OEA, Pacto Andino, Mercosul, Nafta, Cepal etc.), mas em dose significativamente menor.(SANT’ANNA 2001)
Isso acontece também porque o espaço midiático não é apenas uma fonte de informação, é um espaço de disputa ideológica e cultural. Conforme organiza Margarethe Steinberger (2005),
No espaço da mídia se desenvolvem práticas políticas e ideológicas. Seu discurso é instrumento de expressão e transformação das práticas políticas e ideológicas. A mídia desempenha um papel, nessa perspectiva, de agente social que pressiona, através da formação da opinião pública, para que os fatos gerem os efeitos desejados pelos que dela se utilizam. Atua, portanto, como instrumento de práticas políticas e ideológicas. (STEINBERGER, 2005)
Se o imaginário produzido sobre os países da América Latina é, conforme observado por Sant’Anna (2001), majoritariamente negativo, como é possível pensar na mídia como um espaço que proporcione integração verdadeira entre os países do continente? Se, historicamente, a sociedade brasileira configurou-se de forma a desprezar a América Latina, é natural que os jornais reproduzam tal comportamento (SANT’ANNA, 2001). Porém, novas possibilidades de comunicação, como as novas mídias e as novas tecnologias, permitiram que a distância entre os povos se tornasse secundária (SANT’ANNA, 2001). A distância física poderia ser superada pelos novos formatos tecnológicos, porém ainda falta suprir a distância cultural que envolve o Brasil e a América Latina. Sant’Anna avalia a questão: “A mídia detém papel de singular importância no processo de formação de um conceito de identidade cultural, a partir do qual o cidadão baliza seus atos e conceitos. A questão que permanece é que valores são transmitidos pela nossa mídia” (SANT’ANNA, 2001).
O Subimperialismo Brasileiro
Na década de 60, início da década de 70, o próprio Brasil, passando pela ditadura militar e enfrentando a Guerra Fria, não via uma saída para o imperialismo estadunidense. Porém, simultaneamente e esse processo de submissão aos Estados Unidos, o Brasil desencadeou um modelo desproporcional de crescimento econômico, emergindo como potência na América Latina. Luiz Bandeira conceitua que para uma potência se projetar no continente, considerando o caso do Brasil, ela precisa de “extensão territorial, poder econômico e poder militar” (BANDEIRA, 2008). Desde a segunda metade do século XIX o Brasil se configura como uma potência regional.
Ruy Marini, sociólogo brasileiro que estudou as relações do Brasil com os países da América Latina, nas mesmas décadas de 60 e 70, exemplifica o contexto em que o Brasil passou a exercer forte influência no continente:
A nova divisão internacional do trabalho do pós-guerra conduziu à ascensão de subcentros políticos e econômicos como o Brasil, que também passavam – ainda que de modo dependente e subordinado – à etapa dos monopólios e do capital financeiro. Nos anos 70, o Brasil chegava à nona posição na indústria automotiva mundial, era o segundo exportador de armamentos do Terceiro Mundo – atrás somente de Israel – e dava impulso a um mercado de capitais. Conjuntamente a estes aspectos, o Brasil passava à rapina de matérias-primas e fontes de energia no exterior, como foi o Tratado de Itaipu; e intervinha em países como a Bolívia, apoiando o golpe contra Torres e contra o perigo com que se via a Assembleia Popular, num período em que interesses da burguesia brasileira começavam a instalar-se em Santa Cruz de La Sierra (MARINI, 1977 apud LUCI, 2007)
O Brasil passou a exercer a função de mediação, entre os interesses capitalistas das potências consolidadas e os interesses da burguesia nacional, ambos atrelados a uma maneira específica de imperialismo, conceituado por Ruy Marini como subimperialismo. Para o sociólogo brasileiro, o Brasil é o país que especificamente desempenha esse papel no continente latino-americano, contraditório em essência, responsável por uma nova ordem de dominações (MARINI, 1977). Marini desenvolveu o subimperialismo como tendo duas variáveis: 1) uma composição orgânica média do capital na escala mundial e uma 2) política expansionista relativamente autônoma, que “no sólo se acompaña de una mayor integración al sistema productivo imperialista sino que se mantiene em el marco de la hegemonia ejercida por el imperialismo a escala internacional” (MARINI, 1977).
A postura adotada pelo Brasil refletia no contexto regional de forma análoga aos dos Estados imperialistas (LUCI, 2007), porém sem esconder e nem mesmo restringir seus laços de dependência perante as economias dominantes.
O TIPNIS como objeto
Procuramos entender com este artigo a forma como a mídia, identificada neste trabalho a partir de veículos nacionais, encarou o subimperialismo do Brasil nos acontecimentos da construção de uma estrada, financiada pelo governo brasileiro, na Bolívia. A estrada era financiada pelo Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) e seria construída pela empreiteira brasileira OAS, em território indígena boliviano. Tal rodovia foi planejada para ter um trajeto ligando os departamentos de Beni, no leste, ao departamento de Cochabamba, no centro da Bolívia. Essa mesma ligação conectaria os municípios de Villa Tunari (em Cochabamba) e San Ignacio de Moxos (em Beni). A problemática em torno da obra partiu da segunda via da construção da estrada, planejada para atravessar o território indígena Parque Nacional Isiboro-Sécure (o TIPNIS).
Do dia 1ª de agosto ao dia 27 de outubro de 2011, os desdobramentos referentes à construção da rodovia foram abordados por diferentes veículos de notícia, na imprensa nacional e internacional. Do total de 89 matérias lidas – sendo que 64 eram notícias e 19 colunas de opinião – foram selecionadas 39 notícias, 13 em cada um dos 3 meses em que o fato transcorreu (agosto, setembro e outubro de 2011). Após essa primeira seleção, delimitamos um total de cinco notícias, veiculadas no mês de outubro, que, do ponto de vista significacional, são as mais expressivas e pertinentes à análise da presença do subimperialismo brasileiro no recorte midiático do “caso TIPNIS”. Para este artigo, em uma análise mais específica, delimitamos um total de cinco notícias referentes apenas ao mês de outubro e que são parte dos veículos: Agência Brasil (2), IG São Paulo (1) e Valor Econômico (2). Optamos por cinco veículos nacionais a fim de averiguar apenas a impressão da mídia brasileira a respeito do caso TIPNIS. A escolha pelo mês de outubro se deu por entendermos que, ao final dos conflitos entre governo e povo bolivianos, com o cancelamento da construção da estrada, a posição brasileira mais rígida transpareceria nos meios de comunicação.
Formações e memória discursivas (Análise do Discurso)
Eni Orlandi (2005) define a formação discursiva “como aquilo que numa formação ideológica dada – a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito” (ORLANDI, 2005, p. 43). Um sujeito pode utilizar várias formações discursivas em um mesmo discurso, e vários sujeitos podem utilizar a mesma formação discursiva. Sendo assim, as palavras que constituem o discurso fazem sentido dentro do discurso, em sua materialidade e em relação com o mesmo, num processo de construção entre termos, discursos e formações discursivas. “As palavras recebem seus sentidos de formações discursivas em suas relações. Este é o efeito da determinação do interdiscurso (da memória)” (ORLANDI, 2005, p. 46).
Orlandi (2005) também define condições que se estruturam na construção dos discursos. Seriam, basicamente, três condições elencadas pela autora: relações de força, antecipação e relações de sentido. Orlandi explica as três categorias da seguinte forma,
[…] (relações de sentido) os sentidos resultam de relações: um discurso aponta para outros que o sustentam, assim como para dizeres futuros. Todo discurso é visto como um estado de um processo discursivo mais amplo, contínuo. Não há, desse modo, começo absoluto nem ponto final para o discurso. Um dizer tem relação com outros dizeres realizados, imaginados ou possíveis. […] todo sujeito tem a capacidade de experimentar, ou melhor, de colocar-se no lugar em que o seu interlocutor “ouve” suas palavras. Ele antecipa-se assim a seu interlocutor[…] Esse mecanismo (antecipação) regula a argumentação, de tal forma que o sujeito dirá de um modo, ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seu ouvinte[…] Dessa maneira, esse mecanismo dirige o processo de argumentação visando seus efeitos sobre o interlocutor.[…] podemos dizer que o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz. Assim, se o sujeito fala a partir do lugar de professor, suas palavras significam de modo diferente do que se ele falasse do lugar de aluno (relações de força). […] todos esses mecanismos de funcionamento do discurso repousam no que chamamos formações imaginárias. (ORLANDI, 2005, p. 40, grifo nosso)
Quando o analista remete uma formação discursiva a outras diversas, ele está evocando o sentido que considera a memória histórica. Remetendo um discurso a outro discurso, pois os mesmos não são sozinhos, mas sim, fazem relação entre si, o analista arquiteta a memória que resultou naquela formação discursiva,“[…] observando as condições de produção e verificando o funcionamento da memória, ele (o analista) deve remeter o dizer a uma formação discursiva (e não outra) para compreender o sentido do que ali está dito” (ORLANDI, 2005, p. 45, grifo nosso).
Subimperialismo brasileiro na mídia?
Em notícia veiculada pela Agência Brasil do dia 24 de outubro, um elemento discursivo torna-se impactante. Já no título a afirmação de que o presidente recua (“Morales recua, negocia com indígenas e encerra onda de protestos”) identifica que, para o discurso que está colocado, a ação do governante é a de recuar, ou seja, retroceder. O antônimo de recuar é avançar. Embora tenha sido um avanço para as lideranças indígenas que exigiam a revogação do projeto e a discussão dos outros pontos, para o discurso da notícia a ação do governo foi de retrocesso, identificada pelo verbo recuar já no título da notícia.
Em outra notícia, também da Agência Brasil, do dia 25 de outubro de 2011, o título empregado na notícia (“Morales deve assinar hoje lei que suspende construção de estrada que contava com cooperação do Brasil”) utiliza claramente o termo cooperação para se referir ao financiamento concedido pelo BNDES à construção da estrada. O termo “cooperação” dá o sentido de auxílio, ajuda, trabalho mútuo. O Brasil, através do título construído na notícia, não está atravessando nenhuma discussão com relação à estrada, pelo contrário, está cooperando em prol da mesma.
A notícia adentra na questão da cooperação, demarcando trechos da nota emitida pelo Itamaraty:
Há um mês, o Itamaraty reiterou o apoio às obras, informando que o governo brasileiro confirmava “a disposição de cooperar com a Bolívia”, pois se trata de um projeto “de grande importância para a integração nacional” e “atende aos parâmetros relativos a impacto social e ambiental previstos na legislação boliviana”.
Não apenas o Brasil coopera com o projeto, como também, conforme trechos da nota reproduzidos na notícia, com a integração boliviana e – de certa forma – com o desenvolvimento da Bolívia, através da construção de uma estrada enquadrada em normas legais. O discurso formula a posição brasileira como estritamente positiva.
Em notícia veiculada pelo portal IG São Paulo no dia 27 de outubro de 2011, os seguintes título e chamada: “Brasil tenta desbloquear projeto de rodovia na Bolívia – Uma fonte brasileira diz esperar que o país vizinho determine necessidades adicionais de financiamento para uma rota alternativa”. Já no título fica explícito que o Brasil quer desbloquear a construção, ou seja, que não aceita a atual condição de cancelamento da estrada. Além da não aceitação, o verbo desbloquear concede a ideia de que algo está travado, atravancado, sendo o desbloqueamento a ação que se toma para deixar algo fluir. O desbloqueamento seria algo mais positivo que o seu contrário, bloquear:
O Brasil quer destravar a construção na Bolívia de uma estrada de US$ 420 milhões suspensa após protestos indígenas e espera que seu vizinho determine as necessidades adicionais de financiamento para uma rota alternativa, afirmou nesta quinta-feira uma fonte oficial
Essa mesma fonte oficial não está expressa, não se afirma quem e que cargo ocupa, apenas de que se trata de uma fonte, que por algum motivo, não é identificada.
As obras da rodovia que abriria uma saída ao oceano Pacífico para as exportações brasileiras foram interrompidas pelo presidente Evo Morales, cuja popularidade foi corroída por protestos indígenas contra a construção da estrada, que atravessaria a reserva Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis) no centro do país.
Todo o trecho acima denota que a responsabilidade e as consequências pela construção da estrada correspondem à relação entre governo boliviano e indígenas, anulando mais uma vez o Brasil como fator decisivo na construção. Além disso, a notícia destaca que o objetivo da estrada era o de abrir uma saída ao oceano Pacífico para as exportações brasileiras, sendo elas as mais importantes no processo, por serem as primeiras citadas em decorrência do cancelamento da construção da estrada.
O projeto da empresa brasileira OAS poderia ser retomado se Morales e os líderes indígenas chegarem a um acordo sobre uma rota alternativa. “Nosso interesse é que a rodovia seja feita, mas a decisão final é do governo boliviano… A bola ainda está no campo deles”, disse à Reuters uma fonte do Ministério das Relações Exteriores brasileiro. “O governo boliviano tem que fazer um novo cálculo do traçado, discuti-lo com a empresa. E o financiamento é algo posterior”, acrescentou. O jornal Valor Econômico afirmou na edição desta quinta-feira que antes de pagar outro adicional de US$ 250 milhões, o Brasil exigiria garantias de que as obras não voltarão a ser bloqueadas. “A Bolívia precisa estabelecer um cronograma, uma linha de ação, para definir com rigor técnico a solução para os parâmetros ambientais, financeiros, econômicos e políticos desse processo”, afirmou o jornal citando uma fonte oficial brasileira. Cerca de 80 % do custo da estrada são cobertos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), uma importante fonte de financiamento de obras de construtoras brasileiras na América Latina. De acordo com o Valor, o Brasil também quer que a Bolívia ofereça garantias sobre a propriedade de terra a produtores brasileiros de soja que plantam em cerca de 150 mil hectares no departamento boliviano de Santa Cruz. O governo brasileiro também espera que a Bolívia devolva cerca de 4 mil carros roubados e contrabandeados através da fronteira. “Isso ajudaria a criar uma agenda positiva entre os dois países”, disse a fonte do Valor.
Toda a construção da notícia é significativa. Primeiro, por estabelecer mais uma vez as exigências brasileiras com relação ao financiamento da obra. A fonte oficial, não explicitada, que argumenta ser o próprio financiamento uma condição posterior à solução proposta pelo governo boliviano. Além da exigência dessa nova proposta, ainda é reforçado na notícia a exigência brasileira de que as obras não voltarão a ser bloqueadas. Os dados que reafirmam a importância do crédito brasileiro a obra são reforçados (“80% do custo da estrada são cobertos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social”), além de sua categoria de importante fonte de financiamento de obras de construtoras brasileiras na América Latina (assim citado na notícia). Além desses dados, as exigências brasileiras (de garantia sobre a propriedade de terra a produtores brasileiros de soja que plantam no departamento boliviano de Santa Cruz e a devolução dos 4 mil carros roubados) são apresentadas como medidas que possibilitam a construção de uma agenda positiva entre os dois países.
Na notícia veiculada pelo Valor Econômico (“Brasil impõe condições para manter financiamento à estrada na Bolívia”) explicita que o Brasil, neste momento, está impondo condições ao governo boliviano a fim de manter a negociação com a obra da rodovia. “O governo brasileiro admite negociar um aumento no valor do financiamento a uma estrada na Bolívia que foi foco de conflito entre indígenas e o presidente Evo Morales, mas impõe condições”, diz a notícia. O elemento que considera que o Brasil está impondo condições denota o sentido de quem está dando as regras do jogo. No momento em que é o próprio Brasil quem afirma e reafirma o que importa para a estrada, quem decide a liberação ou não dos recursos e quem exige que a construção da estrada aconteça, de qualquer forma, é quando podemos avaliar, mais enfaticamente, o poder que o Brasil está exercendo, desde o princípio, no caso TIPNIS.
Ainda no texto,
Espera-se que o governo resolva problemas técnicos, ambientais e políticos, disseram autoridades ao Valor. Além disso, o Brasil quer “gestos de boa vontade” em temas como devolução de carros roubados no Brasil, para criar um ambiente mais favorável junto à opinião pública brasileira e avançar uma agenda bilateral “mais positiva”.
As aspas nos termos gestos de boa vontade e agenda mais positiva reafirmam não serem as palavras termos do autor da matéria. Aliás, a ideia de ironia é subjetivamente suposta no texto, os tais gestos de boa vontade são apresentados como a devolução de carros, por exemplo. Isso demonstra não ser apenas um gesto de boa vontade, pois tal ação envolve mais questões que não circunscrevem apenas o limite da boa vontade. O conteúdo positivo da agenda de negociações é uma exigência do Brasil, em termos. Podemos tratar ambas as aspas em termos que foram empregados quase que de forma eufêmica.
Outra matéria publicada no site do jornal Valor Econômico, do dia 26 de outubro, produzia pelo mesmo repórter em La Paz (capital administrativa da Bolívia). O título já resume um sentimento com a situação da estrada: “Rejeição ao Brasil aflora em protesto indígena na Bolívia”. Pelo título, presumimos que a abordagem principal será a relação entre os manifestantes e a posição negativa do Brasil diante do caso.
“A glorificação dos indígenas, a repulsa ao Brasil e uma grande decepção com o presidente Evo Morales marcaram o desfecho da mobilização indígena ontem em La Paz.” As três fases – glória, repulsa e decepção – são adjetivações direcionadas aos três papeis representados no discurso midiático: os indígenas, o Brasil e o governo de Evo Morales.
Abaixo, outros trechos significativos da notícia:
Sobre a estrada, disse que o presidente estava tentando “pagar a fatura” aos cocaleiros, pois essa havia sido uma promessa de campanha ao setor mais fiel a Morales. “Nós, indígenas, não precisamos da estrada para atravessar o parque. Nossa forma de nos locomover são os rios. A estrada só vai frear o nosso desenvolvimento”, disse. “Essa estrada se presta para duas coisas: para ampliar o plantio de coca, destinada à produção de droga, e para atender aos interesses do Brasil, que quer atravessar seus produtos rumo ao Oceano Pacífico usando a Bolívia como ponte.” […] Ignorados por Morales, os indígenas chegaram a procurar o governo brasileiro para tentar sensibilizá-lo sobre sua causa, disse ao Valor Adolfo Chávez, presidente da Confederação dos Povos Indígenas da Bolívia (Cidob). Ele afirmou ter enviado uma carta à Embaixada do Brasil em La Paz pedindo um encontro em Brasília. Obteve a promessa de ajuda, mas o encontro acabou não saindo. […] Esse sentimento negativo em relação ao Brasil fica mais exacerbado nas palavras do líder indígena Rafael Quispe, presidente do Conselho Nacional de Ayllus e Marcas do Qullasuyu (Conamaq). Abordado pelo Valor, e ciente de que se tratava de um jornal brasileiro, ele disse: “A empresa dos brasileiros é que está metida [na obra], quebrou a lei, e os brasileiros não fazem absolutamente nada. Vocês [brasileiros] estão f… a Bolívia. E não é só com estradas. Vocês estão f… a gente com termelétricas. Como a Bolívia, como cidadão boliviano, como posso eu, com capital boliviano, f… o seu país?” Questionado sobre como fica a relação dos indígenas com o presidente, ele manteve o tom. “Por que você quer saber? Se você é brasileiro, pergunte ao governo. Capital brasileiro, empresa brasileira. O banco que está emprestando é brasileiro. E o que você quer que eu te diga? Vocês vieram f… o país.”
Toda a matéria, veiculada pelo site do jornal Valor Econômico, representa fortes relações de poder, enquanto condições discursivas produzidas no discurso da matéria. Os trechos destacados acima representam um distanciamento entre o repórter (a matéria é assinada por um repórter enviado a La Paz) e os indígenas por ele retratados. O autor da matéria não se utiliza de outros argumentos, que não os dos próprios indígenas, para exemplificar a situação. A avaliação está a critério das lideranças indígenas, com suas falas mais enfáticas reproduzidas com detalhes na matéria. Ao exemplificar a fala do indígena que se opõe veementemente ao Brasil, o autor do texto já identifica marcas que o caracterizam como diferente desse mesmo indígena, em situação de agressão. O discurso do indígena assume a caracterização de “Vocês” ao se referir ao autor do texto. Isso coloca ambos em situações diferentes: um é brasileiro (o autor) e o outro é o descontente (representado como indígena). Em um contexto ainda maior, a diferenciação entre vocês (Brasil) e nós (Bolívia), a partir do descontentamento do indígena retratado na matéria.
Brasil: gerador e financiador – o que podemos concluir das notícias
Uma situação saliente na observação das notícias do caso TIPNIS é que o termo imperialismo ou subimperialismo, ou qualquer referência mais direta ao papel brasileiro, não são abordados em notícias. Independentemente da posição política de cada um dos meios, os termos são utilizados com cautela. Algumas vezes o termo escolhido para relacionar o Brasil com a construção da estrada é “interesses”.
As menções ao Brasil são constantes como financiador e gerador dos recursos. São frequentes as notas enviadas pelo Itamaraty, que em seu conteúdo afirmam não ser parte da posição do governo brasileiro defender a repressão aos indígenas, porém sem retroceder na ideia original de construção da estrada. O Brasil aparece nos discursos das notícias como o progenitor da obra, porém, as turbulências geradas a partir da mesma não são de responsabilidade brasileira.
O Itamaraty, através de notas publicadas pelos veículos, argumenta que os interesses defendidos pelo governo brasileiro não serão contrários aos interesses pelo desenvolvimento regional da própria Bolívia. O intermédio diplomático desempenhado pelo governo brasileiro compreende que o país quer investir, construir na região, porém, não admitirá com veemência que quer intervir na política da Bolívia, nem que quer assumir as consequências ambientais da possível rodovia. Ao final de outubro de 2011, algumas notícias apresentam um discurso que coloca as posições contrárias ao governo brasileiro de maneira mais enfática. Não são explicitados os argumentos que colocam o Brasil como o principal beneficiado pela construção da estrada. É assegurado na notícia que o Brasil está disposto a cooperar. A nota lançada pelo Itamaraty, da qual alguns trechos são disponibilizados na notícia, afirma que o próprio Itamaraty teria recebido a notícia dos distúrbios na região com preocupação, mas que o mesmo afirma ter “confiança no governo e em diferentes setores do país para buscarem diálogo e favorecer a negociação sobre o traçado da rodovia”.
A notícia do mês de outubro veiculada pelo jornal Valor Econômico, já citada anteriormente, demonstra, de fato, a posição brasileira em todo o caso TIPNIS. Com as afirmações de que é o Brasil que condiciona a construção da estrada, quem interpreta o momento de ceder os recursos e quem exige, por parte da Bolívia, uma alternativa para a estrada que não complique novamente com os indígenas, podemos avaliar que a projeção do Brasil na situação é de fato determinante. Ao recorrermos à memória discursiva, podemos elencar elementos em todos os textos, formando os mais diversos discursos, para concluirmos que algo entre eles existe que comprove a posição de poder brasileira. Mesmo que parte dessa projeção tenha sido delegada ao segundo plano após as confusões entre o governo boliviano e os manifestantes, e do grande destaque midiático dado ao conflito e não ao contexto superior, ainda podemos avaliar o contexto geral que contém as relações discursivas que compreendem o Brasil como subimperialista neste caso em específico.
Jornalismo, Brasil e América Latina
A integração latino-americana hoje impulsionada, principalmente, pelo Brasil, condiz mais com os aspectos referentes ao subimperialismo e a projeção de poder dessa mesma nação do que propriamente com a integração de todo o continente de fato. Parte desse interesse macroeconômico incitado pelo Brasil continua gerando avanços e crescimentos a uma mesma elite, sem em nada contribuir de fato para a integração entre os povos latino-americanos.
Apesar de expostas as contradições do subimperialismo brasileiro, é importante ressaltar que, mesmo com o crescimento econômico brasileiro e seu enorme alcance em toda a América Latina, as desigualdades e as mazelas sociais estão longe de terem um fim. São chagas estruturais, causadas tanto pela formação colonial e desigual, quanto pela permanência e potencialização dessa mesma formação, devido ao avanço do capital e ao simultâneo retrocesso social – e o Brasil, apesar do crescimento econômico, ainda hoje permanece com índices absurdos de desigualdade social.
Se o Brasil não é retratado na mídia nacional como subimperialista, isso não anula, de fato, o peso subimperialista do mesmo em relação ao continente latino-americano. A mídia nacional pode sofrer alterações e implicações de diferentes processos, e interesses, no momento em que construir suas afirmações diante do cenário latino-americano. Além de, é claro, reproduzir um discurso que está colocado perante uma formação discursiva, uma dada conjuntura histórica. O processo que construísse a imagem do Brasil imperialista na mídia seria um processo crítico, que absorvesse as problemáticas do imperialismo de uma nação perante outras, e que desejasse, de fato, a integração latino-americana. Nesse sentido, compreendemos que este trabalho possui suas limitações em vasculhar quais seriam os motivos que fazem com que a mídia não se coloque contrária ao subimperialismo brasileiro, ou ao menos o perceba e o reconheça de fato, levando em consideração o recorte midiático no caso TIPNIS.
Marini conceitua a posição brasileira subimperialista através do cenário que faz com que o Brasil exporte capital e manufatura, mas tenha controle de matéria-prima e fontes de energia no exterior. É de se considerar a opinião de quem acredita que o Brasil, através de sua incidência na Bolívia, assuma o interesse em matéria-prima (na Amazônia boliviana) e em fontes de energia, como, por exemplo, controlar o gás boliviano. O presente trabalho procurou analisar se a posição brasileira retratada pela mídia representava o subimperialismo brasileiro, porém, compreendemos que a caracterização do Brasil enquanto imperialista não parte da própria mídia, mas de uma série de posições brasileiras que se encaixam nos conceitos e nos padrões subimperialistas apresentados por Marini.
Podemos entender que a mídia, em si, é também responsável pela manutenção de uma identidade fragmentada latino-americana, a partir da construção que a própria mídia faz da América Latina. Ela intermedeia a diferenciação entre os povos, mais do que procura integrá-los e relacioná-los. Os interesses de grande parte dos conglomerados macroeconômicos da mídia é justamente uma esparramada influência econômica global, vista anteriormente e com mais relevância do que as questões que permeiam a cultura e as especificidades locais.
O papel do jornalismo hoje na América Latina também é procurar formas alternativas de projetar o continente diante do feroz cenário mundial, ajeitando contornos e contribuindo com a comunicação entre os povos que compõem este continente.
Referências bibliográficas:
BANDEIRA, Luiz A. M. O Brasil como potência regional e a importância estratégica da América do Sul na sua política exterior. Revista Espaço Acadêmico. n. 91, p.2 – 20, dez. 2008. Disponível em <http://www.espacoacademico.com.br/091/91bandeira.pdf>
LUCI, Mathias. O subimperialismo brasileiro revisitado: a política de integração regional do governo Lula (2003-2007). Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007.
MARINI, R. M. La acumulación capitalista mundial y el subimperialismo. In Cuadernos Políticos n. 12, Ediciones Era, México, abril-junho de 1977.
ORLANDI, Eni. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: UNICAMP, 2005.
SANT’ANNA, Francisco C.C.M. O papel da mídia impressa brasileira no processo de integração latino-americana: Um estudo do comportamento editorial de grandes periódicos nacionais. 2001. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Universidade de Brasília, Distrito Federal, 2001.
STEINBERGER, Margarethe B. Discursos geopolíticos da mídia: jornalismo e imaginário internacional na América Latina. São Paulo: FAPESP, 2005.
Este artigo é uma copilação do artigo original “O TIPNIS boliviano na mídia brasileira: Imperialismo disfarçado”, produzido com a orientação da Dra. Prof. Ada Cristina Machado Silveira, apresentado no XIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul 2012, em Chapecó. O artigo também é uma adaptação do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) “Subimperialismo na Mídia: A Estrada e o TIPNIS boliviano”, apresentado ao final de 2011.
O CASO TIPNIS: IMPERIALISMO BRASILEIRO E MÍDIA, pelo viés de Nathália Costa.
nathaliacosta@revistaovies.com