DESALMADO

Foto: Bibiano Girard

Existe entre o ato de fechar a porta da vida e o de abrir o alçapão da morte,  um curto espaço intermediário de tempo bastante parecido com a eternidade. Neste ínterim, a vida pregressa do pós-vivo passa na mente do pré-defunto como um filme repleto de flashes estanques de existência, combinados com sensações pré-cadavéricas.

Para quem olha de fora são apenas alguns segundos agonizantes, cujo clímax expressa-se pelo último suspiro de gozo daquele que se acaba para a vida. De outro lado, para quem vive estes momentos sob a perspectiva interna eles se assemelham aos longas-metragens sem fim.

O fato é que chegava o seu momento derradeiro, ele já se encontrava posto naquele cenário, entre o término de sua vida e o início de sua morte. Ainda não havia abandonado o tempo e nem se adentrado no abismo escuro da atemporalidade. Ali, neste intervalo, as suas lembranças de vida reagiam contra a morte, ao mesmo tempo em que se mesclavam a ela.

A recordação de sua trajetória lhe parecia a última luta violenta e desesperada pela vida, porém, as sensações da morte não o abandonavam. Teimosamente, como podia, ele lutava pela vida: recordava-sede seus momentos vitais, como vingança desferida contra a morte, que insistia em não desistir de puxá-lo à cova.

Lembrou-se de seu nascimento e do frio que sentira ao chegar a este mundo, semelhante ao frio da despedida que sentia naquele momento de partida. A dor de um evento (o nascimento) e outro (a morte) era profundamente parecido, afinal de contas, em ambos fazia-se necessário deixar um mundo para adentrar-se noutro desconhecido. Nesta intermitência entre a vida-e-a-morte recordava de seu físico saudável e de sua boa disposição, que agora, aos poucos, se esvaia. Não conseguia entender como aquilo estava ocorrendo com ele, logo ele, tão bem-cuidado, tão saudável, tão medicado, tão jovem. Como chegara àquela situação?

Que estupidez! Como podia? Nada justificava! De que forma alguém que há pouco tempo estava bem, poderia ser aprisionado, de uma hora para outra pelas grades da agonia prenunciadora da morte? Insuportável! O gemido não era tanto pela morte, mas sim pela surpresa de sua chegada. Que dor! Ter que deixar a vida assim, sem despedida solene e nem preparação. Desespero absoluto! Era-lhe difícil aceitar a morte não-anunciada. Ele sequer estava doente! Situação que o fez berrar, ainda que isto intensificasse as dores que sentia na cabeça e nos pulmões. Seus berros eram de cortar a alma.

Seu corpo inocente, brincalhão, puro, espontâneo de outrora, sequer lhe obedecia. Sua corpulência mais parecia sua inimiga do que propriamente algo que fosse dele e, muito menos algo que fosse ele. Suas pernas já não pareciam mais suas, eram agora, análogas a pernas postiças. Com a quase-totalidade dos nervos adormecidos de morte recordava os momentos nos quais corria livremente pelos descampados da vida.

No resto que ainda tinha de si quase não se reconhecia mais. De tão alienado de si mesmo perdia-se em delírios em sua fria e solitária escuridão. Ele sabia que o escuro não advinha da noite, mas sim donegror mórbido de seus olhos arregalados que não conseguiam mais contemplar o sol que havia iluminado a maioria de seus despreocupados dias. Já havia percebido que a morte lhe tiraria a luz e o calor do sol, isto fizera com que aumentasse ainda mais o frio, a solidão e a escuridão.

 Nada adiantava: enrugava a cara; remexia os nervos que podia; já havia urinado todo o mijo da bexiga e defecado toda a bosta das tripas; sentia sede com o gosto de saliva, vômito e sangue; corria-lhe um longo ranho pelas narinas que atrapalhava ainda mais o seu último fiozinho de respiração. Sua luta estava perdida e ele exausto entregava-se a sua tontura, à espera da vala terrível da morte: a sua libertação. Não mais aguentava em esperar, correria ao seu encontro se pudesse, mas nem isso conseguia fazer.

O terrível deste caso não era tanto o sofrer. Para nenhum ser sensível o sofrimento é algo bom. Mas o pior de tudo, e essa era a sua condição, é quando um ser sensível como ele, sofre tudo isso e não tem condições de expressar simbolicamente tal sofrimento. Não poder dizer da dor que se sente dói mais doque a dor em si mesma.

A impossibilidade concreta de dizer de sua dor; de não conseguir queixar-se do mal que lhe extinguia a vida, assim como não poder despedir-se dela; não conseguir lamentar o seu horror; não expressar o seu desespero; ver-se impedido de amaldiçoar os deuses pela sua situação degradante e repulsiva; não poder discursar sobre a sua condição baixa e nojenta; silenciar em seu jazer abominável; ver-se desgraçadamente humilhado por aquela experiência mortal e ainda não poder falar nada contra aquele pesadelo; ser repentinamente arrancado da vida sem direito de pronunciar um “ai” que denote a sua indignação contra tal desolação ignominiosa… era o maior de todos os desesperos. Este  silêncio demorte é o eloquente discurso do absurdo da vida.

E, foi assim, em meio à poça de sangue, maior do que os sangramentos da mulher que se esvai em regras sem fim, que ele foi se aproximando do fim. Cenas de sua vida vinham rapidamente à lembrança, como se soubessem que não tinham tempo para  demorar: o sabor do leite; o gosto do alimento; a dependência e a independência da mãe; os banhos de chuva ou de açude; o calor, o suor e as traquinagens com os amigos; as travessuras no galpão e, em seu último lampejo de vida recordou-se agradecido daquele homem que sempre cuidara tão bem dele.

Justamente logo após a sua morte, este zeloso homem comemorou aniversário com um grande banquete aos convidados. Todos lembraram da vida do aniversariante, ofereceram presentes, deram-lhe  parabéns, cantaram, beberam, elogiaram a farta comida e a excelência do churrasco.

Ninguém perguntou pelo boizinho!

DESALMADO, pelo viés do colaborador Eliézer Oliveira*

*Eliézer é Filósofo e professor da Universidade Católica de Pelotas. Já publicou n’o Viés O CRIME DE CESARE BATTISTIFILOSOFIA POLÍTICA EM QUINZE ESTAÇÕES e MINHA FALTA.

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