ELAS QUEREM QUEIMAR O SUTIÃ E MUITO MAIS

A articulação em rede sinaliza uma nova práxis do movimento feminista

Há 44 anos, a história eternizava um episódio que, na realidade, nunca aconteceu. Em 7 de setembro de 1968, centenas de mulheres se reuniram em frente ao teatro onde era realizado o concurso Miss America, na cidade de Atlantic City (EUA), para protestar contra a ditadura de beleza imposta às mulheres da época. As manifestantes levaram alguns símbolos da feminilidade, ou instrumentos de “tortura”: sapatos de salto alto, cílios postiços, maquiagens, espartilhos, cintas e, claro, os sutiãs. Esses objetos foram reunidos e colocados em uma lata de lixo para serem queimados. Mas a prefeitura não autorizou o uso de fogo. O episódio ficou conhecido como Bra-burning (ou Queima dos sutiãs), tornando-se um marco da luta feminista.

A “Queima dos sutiãs” em Atlantic City. Imagem da web.
A “Queima dos sutiãs” em Atlantic City. Imagem da web.

Essa é uma daquelas mentiras que, de tanto se repetir, virou “verdade”. A queima pode não ter acontecido, mas a repercussão do fato foi incendiária. A atitude daquelas mulheres de Atlantic City foi um dos pontos responsáveis pela onda de manifestações que iriam irromper em diferentes cantos do mundo durante a década de 1970 – entre elas, verdadeiras queimas de símbolos femininos de opressão. Era crescente o número de movimentos sociais que insurgiam na luta contra o sexismo, o racismo, o militarismo. De lá para cá, a luta das mulheres pela igualdade social e legal e pela libertação feminina ganhou cada vez mais força. A partir dos anos 1990, com a popularização da internet, o feminismo – assim como outros movimentos sociais – passou a inserir-se na rede e, através dela, mobilizar pessoas para manifestações referentes às suas causas.

“Libertar dos padrões que durante milênios foram construídos como naturais”

O surgimento de ideias e escritos sobre a condição submissa da mulher data do século XV. No entanto, o feminismo – como movimento de reivindicação dos direitos da mulher – remonta aos últimos anos do século XVIII, durante a Revolução Francesa, na qual floresciam os ideais iluministas e as propostas igualitárias. Nesse período, chamam a atenção os escritos da francesa Olympe de Gouges. Seu mais célebre texto é a “Declaração dos direitos das mulheres e da cidadã [http://migre.me/aBpm0] (1791), uma resposta-provocação à “Declaração dos direitos dos homens e do cidadão”, no qual se argumentava que todos os direitos conferidos aos homens, enumerados pelos revolucionários de 1789, também pertenciam às mulheres. Pelo pioneirismo e ousadia de suas ideias libertárias, Olympe foi severamente condenada: morreu guilhotinada em 3 de novembro de 1793. O feminismo nasce, pois, na óbvia luta pela igualdade entre homens e mulheres. Após esse período, a história do feminismo passa a ser dividida em momentos significativos ao movimento – as chamadas ondas feministas.

Foto de 1911 mostra as sufragistas reivindicando por sua cidadania política. Imagem da web.

A primeira onda feminista é demarcada pelas lutas sufragistas durante o século XIX e início do século XX, nas quais as mulheres reivindicavam a cidadania política. A Nova Zelândia foi o primeiro país a garantir o sufrágio feminino, em 1893. O movimento feminista do Reino Unido ganha destaque desde 1897, com a fundação da União Nacional pelo Sufrágio Feminino. Para chamar a atenção das pessoas à sua causa, as sufragistas – como eram, à época, ofensivamente chamadas – tomaram as ruas, reivindicando igualdade jurídica e política. Exemplo disso são os confrontos ocorridos entre as mulheres e os policiais e até mesmo a morte da manifestante Emily Davison [http://migre.me/aBo5D], que se atirou diante do cavalo do rei, na corrida de Derby, em 1913.

As britânicas conquistaram o direito ao voto em 1918 e seu movimento influenciou mulheres em outros países, que se organizaram em grupos de pressão ao governo para modificar a legislação eleitoral vigente. No Brasil, o voto feminino é legalizado apenas em 1932, por decreto instituído por Getúlio Vargas. Cinco anos antes, porém, com a autorização da Justiça do Rio Grande do Norte, Celina Guimarães Viana tornou-se a primeira eleitora registrada no Brasil.

No período das grandes guerras, há um arrefecimento da luta feminista enquanto pensamento. Com os homens nos campos de batalha, a mulher de classe média se insere no mercado de trabalho, recebendo um salário inferior. Jamais sua renda poderia se igualar à do marido, sendo apenas um complemento à renda familiar. Até os anos 1960, o salário diminuto feminino não é questionado. Sua inserção no mercado de trabalho é demarcadamente temporária, pois, quando os homens retornassem da guerra, elas deveriam voltar a exercer apenas seu papel de dona-de-casa. Após a 2ª Grande Guerra, o estereótipo da dona-de-casa feliz e submissa ao marido é intensivamente reforçado pela publicidade.

Propagandas com discurso machista: à esquerda, “Se seu marido um dia descobrir que você não está usando um café mais fresco...”; e à direita,“Mostre para ela que o mundo é dos homens”. Imagem da web.

O movimento feminista volta a tomar corpo nos anos 1960, quando inicia a segunda onda do feminismo. Sob a influência de obras como “O segundo sexo” (1949), da francesa Simone de Beauvoir, e “A mística feminina” (1963), da americana Betty Friedan, a luta das feministas da segunda onda passa a tratar de questões que não estão apenas ligadas à conquista de direitos civis. Tornaram-se temas a necessidade de mostrar a condição oprimida da mulher numa cultura masculina e estratégias de libertação total, o que envolvia também o corpo e o desejo. As mulheres voltam a tomar as ruas em protesto e são crescentes os números de manifestações inspiradas no Bra-burning. Nos EUA e Europa, o ambiente era propício, graças à disseminação dos ideais da contracultura e do modo de vida do movimento hippie, contrário aos valores morais e de consumo da época.

Um dos problemas do pensamento feminista da segunda onda era perceber o movimento como um projeto único, moldado para a mulher branca, ocidental, de classe média, instruída. Uma visão mais relativista de feminismo é incorporada na chamada terceira onda, ocorrida na década de 1980, na qual o movimento começa a pensar em questões relativas aos diferentes tipos de mulher, considerando aspectos culturais, sociais e, principalmente, étnicos. Mesmo com o avanço do pensamento feminista, as militantes continuaram sustentando o peso de defender a mulher. Até os anos 1990, a palavra feminista carregava uma alta carga pejorativa, associando a figura de mulher que pouco se importava com o visual e com comportamentos mais masculinizados à militante. Essa imagem das feministas vem sendo progressivamente desconstruída e muito disso se deve a uma nova percepção das feministas do século XXI.

“Pessoas de dentro do movimento precisam se rever o tempo todo”

A internet e suas infinitas possibilidades estão ampliando os modos de articulação do movimento feminista. Com a popularização da rede, uma nova plataforma de organização pode ser absorvida pelo movimento. O uso de redes sociais e blogs são uma consequência da época.

A geração posterior aos anos 1990 se encontra online para provocar e, principalmente, questionar condutas e atitudes pré-estabelecidas por uma cultura voltada a antigos padrões – que, para os “conservadores”, oscilam algo entre segurança e bons costumes. Lola Aronovich, professora de Literatura em Língua Inglesa na Universidade Federal do Ceará (UFC) e autora do Escreva Lola Escreva [http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/], diz-se uma militante virtual. “A maioria das pessoas que me lê é muito jovem. Muitas delas estão tendo contato com ideias que combatem o senso comum pela primeira vez”, constata. De seus leitores, cerca de 70% têm menos de 30 anos. Assim como Lola, ativistas feministas avaliam a militância virtual tão importante quanto as ações desenvolvidas em consequência da união dos grupos na rede – grupos de discussão, listas de e-mails, sites, blogs e fóruns. É a disseminação das ideias feministas no dia a dia.

Manifestações públicas como “Marcha das Vadias” e “Marcha contra a mídia machista” são exemplos de mobilizações organizadas, divulgadas e discutidas na internet. Na foto, a Marcha das Vadias de Santa Maria (RS), em junho de 2012, que reuniu cerca de 800 pessoas. (Fotos: Gabriela Belnhak)

 

O feminismo é, antes de tudo, um movimento libertário. Por movimento, entendemos qualquer alteração da realidade e a que se apresenta não é de todo diferente da que encontramos no início do século XX, quando as mulheres lutavam pelo direito ao voto e participação política. O feminino sempre esteve sob um modelo masculino de sociedade. Na queima, literal ou não, dos sutiãs, as mulheres puderam dar fim a um símbolo de opressão. No feminismo contemporâneo, o símbolo passou a ser o próprio corpo. A mídia insiste em construir um protótipo de mulher e a mercantilizar o corpo feminino em peças publicitárias e outros meios. Os sutiãs que apertavam foram queimados, com as alças já cansadas de tanto reprimir; o corpo explorado e violado agora é front de batalha e sinônimo de resistência: meu corpo me pertence, é meu território natural.

Entendendo o machismo como cultura arraigada, o feminismo surge como contracultura, pois liberta homens e mulheres de padrões estabelecidos e compreendidos naturais. “Machismo não é o ódio às mulheres, isso é misoginia. Machismo são as pequenas censuras do cotidiano, está entranhado. Desnaturalizar é o primeiro passo”, destaca Nikelen Witter, escritora, doutora em História e professora do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Perceber as manifestações cotidianas do machismo com maior facilidade é reflexo da cultura digital de comunicação em rede. A indignação é visível e a fratura está exposta.

É possível que estejamos imersos em uma quarta onda feminista, mas só teremos certeza depois da ressaca. A militância contesta a negativa do aborto, a violência contra a mulher e pontos que apareceram de forma tímida em ondas anteriores. Costumes contemporâneos serão ressignificados, da mesma forma que tantos outros já foram. O feminismo liberta homens e mulheres da moldura de gesso que resguarda atitudes e práticas conservadoras. O sutiã, símbolo da repressão, já fora peça libertária no século XIX ao livrar as mulheres dos espartilhos que suprimiam o ar, apertavam os seios e revelavam o quadril.

Quando as mulheres queimaram seus sutiãs em praça pública, não o entendiam apenas como uma peça do vestuário: era, pois, o símbolo de tudo aquilo que as oprimia. Queimavam, ao seu modo, a violência do Estado, a autoridade da Igreja, a dependência dos pais, os baixos salários, a subordinação aos maridos, os padrões estéticos, a arcaica estrutura familiar. Queimavam um sutiã, mas era como se queimassem todos. 

*As frases utilizadas para os dois entretítulos dessa matéria foram retiradas da entrevista com a escritora e professora doutora em História Nikelen Witter.

ELAS QUEREM QUEIMAR O SUTIÃ E MUITO MAIS, pelo viés dos colaboradores Gabriela Belnhak e Marlon Dias

Gabriela Belnhak e Marlon Dias são estudantes de Comunicação Social – Jornalismo da Universidade Federal de Santa Maria. E queimam seus sutiãs diariamente.

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