Ao se dedilhar as primeiras páginas do segundo romance de Jorge Amado, um dos escritores brasileiros de maior apreciação pública literária das últimas décadas, notamos que além da literatura – se é possível que da literatura haja um além que ela mesma não abarque – recebemos também páginas de uma ideologia infinitamente humana, por ser cotidiana, do mercado que é a exploração do trabalho. Narrado em primeira pessoa, Cacau, publicado dois anos depois de “O país do Carnaval” – de 1931 – traz o questionamento proletário da visão do trabalhador sobre seu único e maior problema: o explorador. Neste caso, o coronel Manoel Misael de Souza Telles, conhecido popularmente entre os trabalhadores por Mané Frajelo.
Mané Frajelo se constitui na demonstração mais espetacular – no sentido hiperbólico da palavra – do coronel cacaueiro da Bahia do início do século XX, déspota, arrogante e escravagista de um sistema que o livro, entre acontecimentos e jogadas de fluxo de consciência, mostra como inimigo da liberdade humana frente ao capital e ao lucro. E realmente o é, sem dúvidas, mas Jorge Amado soube relatá-lo, delineando causas e consequências de uma política oligárquica que consumia o Brasil das lavouras e de seus quase maquinados empregados, jogados à margem pelas armadilhas de um tipo econômico famigerado.
Jorge Amado era um comunista de carteirinha, com o perdão do trocadilho, que nunca escondeu seus propósitos políticos em sua vida e em sua obra literária, mesmo que o caráter romanesco literário tenha sido deveras sua premissa laboral. Os personagens de Jorge Amado não fogem do debate sobre opressão, repressão social, luta de classes, batalha de valores humanos frente o disparate de uma sociedade fundamentada em porções de coronealismo e vastidões de pobres mandados, desvanecidos, mas que majoritariamente assistem a tudo a partir de um viés se não contestador, no mínimo muito questionador.
Os trabalhadores do cacau entendem a exploração e enxergam a depreciação pela força do dinheiro, do medo e da chantagem, frutos bem avistados do mercado do lucro dos grandes sobre os pequenos. Cacau é um romance manifesto. Permeado pela “sabedoria popular”, trajeto daqueles que sentem na pele o que está descrito nos livros, o romance-manifesto ilustra muito bem o vasto leque de explorações e opressões, em seus variados níveis: o jovem que vê sua força de trabalho resultar apenas no dinheiro exorbitante do patrão; os trabalhadores que não conseguem se desvencilhar das dívidas com a pequena mercearia (pois o lucro e a exploração estão em todos os níveis); as mulheres “defloradas” tanto pelos trabalhadores “troncos” quanto pelos estudantes de Direito, filhos dos pais, que passam pelas fazendas apenas para encrencar com a vida das pessoas de lá; as mulheres da vida, os pobres errantes, os pés-descalços – a exploração do Brasil não é menor por ser o Brasil um país constituído das diferenças.
Cacau é a história de José Cordeiro através de sua própria visão, um trabalhador das roças de cacau da Fazenda Fraternidade, cujo proprietário é o coronel Mané Frajelo. A narração dos fatos dá-se tempos depois dos acontecidos na vida da personagem principal, e na de vários coadjuvantes, entre eles colegas de roça, prostitutas e personagens secundários que entrelaçam, e constroem, o imaginário do interior baiano fundamentado em lavouras de semi-escravidão comandadas pelos senhores da terra, das leis, do dinheiro. Contar a história após o ocorrido faz com que lembranças e interpretações dos fatos ocorram de maneira mais esmiuçada, formando, no geral da história, a observação futura do narrador sobre a situação dos trabalhadores, o passado e as experiências de um protagonista que saiu da cidade, e de uma possível sobrevida em circunstâncias menos penosas para o árduo serviço cacaueiro.
Jorge Amado entendia a beleza do ideário de seu povo. Longe de romantizar a figura do trabalhador. Porém, vê-lo na beleza que é: apesar dos sofridos, um possível sonhador (Cordeiro vai embora para o Rio, em busca da tal revolução do Brasil), sem deixar de compreender as nuances da eterna luta de classes. Conceitos marxistas muito bem explicados pela realidade, tão bem delineada em suas poucas páginas. Em uma passada do livro, intitulada “Consciência de Classe”, Cordeiro vê que um peão desiste de matar outro, a mando do coronel Frajelo. Ao perguntar os motivos para o peão, Cordeiro entende e confessa ao público leitor: Só mais tarde fui perceber que aquilo não era misericórdia – chamava-se consciência de classe.
OUTROS TEXTOS COMEMORATIVOS AO CENTENÁRIO DE JORGE AMADO
JORGE AMADO UNIVERSAL, texto gentilmente cedido pelo escritor Miltom Hatoum
O CENTENÁRIO DE JORGE AMADO, O CONTADOR DE HISTÓRIAS, texto inicialmente publicado no sítio Portal Vermelho.
CAPITÃES DA AREIA: RAZÕES PARA LER E PARA VER, pelo viés de Bibiano Girard
CACAU: JORGE AMADO E CONSCIÊNCIA DE CLASSE, pelo viés de Bibiano Girard e Nathália Drey Costa.