No dia 14 de julho, uma noite fria de sábado, o primeiro Festival do Coletivo de Resistência Artística Periférica (CO-RAP) deu novo gás à cena do Hip Hop de Santa Maria. Na sede da escola de samba Unidos do Itaimbé, os diversos grupos e MC’s do coletivo dividiram o palco com os grupos Sintomas Clã e Front Liberdade e Rima, de Porto Alegre, com os MC’s que participaram da Batalha de Rimas, mas não só: também subiram ao palco punks das ruas da cidade, convidados a expressar no microfone seus ideais de luta e liberdade, e a avermelhada representação de Bará, entidade do batuque homenageada pela MC Flavinha Manda Rima na música O Rei da Rua e interpretada, no show, por Nei D’Ogum, vestido e pintado com a cor que simboliza o orixá.
E se o palco normalmente se eleva metros ou centímetros, para não haver dúvida da distância que separa artistas e público, o momento mais emblemático da noite foi quando foram convidados a subir nele todos aqueles que haviam contribuído para que o festival acontecesse: o palco de madeira ficou pequeno e o aglomerado único de pessoas impedia quem quisesse diferenciar os que estavam em cima dos que observavam, abaixo.
Na noite em que mais um grupo de Santa Maria, o Rima Suprema, integrante do CO-RAP e oriundo da Zona Leste da cidade, lançava seu recém-gravado EP, “Disparando a verdade”, novos grafites passaram a fazer parte do espaço e um mural com diversas tags e a mensagem de “Procura-se” rememorava o fato de que, na cidade, vive-se tempos em que todos são suspeitos. E muitos dos suspeitos da expressão e do questionamento estavam lá dentro, até as seis horas da manhã, ouvindo rap na festa que ajudou a revitalizar a cena do Hip Hop local.
“Corre que lá vem/ corre que lá vem os home”, dizia o refrão um dos sons do grupo Rima Suprema, que critica a truculência e a já conhecida abordagem étnica e social daqueles que são os suspeitos preferenciais para os homens da lei. Ninguém correu, contudo: alguns pulavam juntos, como se o grito de dispersão dissesse justamente o contrário, outros balançavam a cabeça. O festival foi organizado de maneira independente e, apesar de todas as dificuldades financeiras, foi um momento de celebração.
“Pra nós tem uma importância fundamental pelo fato de ser um evento independente. Nós sempre fomos da cena independente, então pra nós é prazeroso estar aqui, entre amigos, somando. Que seja o primeiro de vários, que essa sementinha cresça e dê frutos”, afirmou o MC Diego, vulgo Galo Cinzento, que junto do MC Biscoito e do técnico de som Ricardo Leges, compõe o grupo Sintomas Clã.
Realizamos uma breve entrevista com ambos os grupos visitantes, para conhecer um pouco mais das ideias dos rappers sobre a situação atual do Hip Hop e alguns dos temas abordados em suas canções. O Sintomas Clã conta com essa formação desde 2010, e atualmente trabalha na divulgação do seu primeiro álbum, Caótico Estado, lançado neste ano e apresentado no show ao público do Festival. Além do trabalho de 18 faixas registrado, o grupo também fez parte de um projeto com participação de artistas do mundo todo, chamado Vírus Global.
Os MC’s do Sintomas Clã organizam, em Porto Alegre, o Projeto Submundo Rap Nacional, festa criada com o intuito de promover e valorizar os artistas e grupos locais. Além disso, eles mantêm o estúdio Câmara de Gás, localizado na Cohab Cavalhada, zona sul da capital gaúcha, e vencedor da categoria Melhor estúdio de rap no Prêmio Lança de Ouro de 2012.
“O Estúdio surgiu, a princípio, não com a intenção de produzir os grupos, mas de nos produzir, pela necessidade de autogravação, porque não tínhamos grana para pagar”, explicam Biscoito e Galo. “Hoje em dia, a gente tem um trabalho como produtores no estúdio – fazemos gravação, produzimos beats – e estamos entrando no ramo de videoclipes. Tivemos espaço dentro da cena rap de Porto Alegre, como grupo, porque começamos a produzir vários grupos e começaram a acontecer parcerias. Foi legal”.
O Front Liberdade e Rima, que define seu som como anarcorap, atualmente, é composto pelo MC Luiz Gabriel, vulgo Pezão, de Eldorado do Sul. O MC é oriundo do movimento anarcopunk de São Paulo, e o Front LR começou em 2008 com gravações caseiras, embora Pé sempre tenha sido envolvido com movimentos sociais. Segundo Pé, suas músicas “tem uma temática libertária que questiona as relações de poder dentro das relações humanas, busca trazer propostas de reflexões, de reeducação, tentar fazer com que o desejo de ser livre desperte nas pessoas”. O Front LR também tem trabalhos realizados com grupos de rap de outras partes do mundo, em especial da América Latina e de Angola, de onde gravou com o grupo Tribo Sul.
Em 2012, ambos os grupos se conheceram, e além da gravação do CD do Front LR, Atestado de Subversão, ter sido realizada no estúdio Câmara de Gás, os dois grupos fizeram juntos a música “Somos todos Pinheirinho”, em homenagem à comunidade de trabalhadores desalojada brutalmente no início do ano em São Paulo.
A relação do coletivo santamariense com os convidados da capital gaúcha vem de uma conexão firmada há algum tempo. O EP de Flavinha Manda Rima, “Cá entre nóiz”, já resenhado aqui no Viés, também foi gravado no estúdio Câmara de Gás. Já o Front Liberdade e Rima participa de uma das músicas do EP, Liberdade e Resistência, que, no festival, foi executada por Pé e Flavinha, em conjunto, pela primeira vez em Santa Maria.
Confira abaixo a entrevista realizada com os grupos no dia do festival.
: Nos sons de vocês, tem uma perspectiva crítica em relação à questão da mídia. Ao mesmo tempo, vemos que ultimamente há grupos de Rap nacional que estão conseguindo espaço e obtendo exposição nesses grandes meios e veículos, como é o caso do Emicida, do Criolo e do próprio MV Bill. Como vocês veem essa relação entre o Hip Hop e a mídia? Acreditam que há espaço, que é possível ocupar esse tipo de espaço?
Pé: Eu acredito que o meu tipo de trabalho jamais vai ter abertura na mídia comercial, porque a própria tendência da mídia brasileira é o empobrecimento da cultura, da simbologia cultural, a indústria do entretenimento está voltada para um consumo de entretenimento que te faça cada dia menos refletir. Hoje, a vida é cuidar dos seus negócios e seu lazer, não é mais resolver problemas coletivos, pessoais. Pra quem consegue eu acho que é válido, e é importante quem conseguir refletir para que isso possa trazer benefícios para o meio, para as comunidades, e não só para ascensão pessoal na cena musical. Não vou falar mal de quem aparece na TV, cada um faz a sua correria, eu talvez até tenha interesse em aparecer algum dia, por exemplo, na TVE, com liberdade de falar o que quiser, sem edição, com a preocupação de dar o significado do que falo de forma correta, mas acho que, com meu tipo de discurso, jamais vou ser chamado… porque eu acho que, normalmente, quem tem credibilidade para ser formador de opinião é quem se alia ao conceito de posse, porque a mídia está nas mãos de gente de posse, de megacorporações, igrejas, Rede Globo, SBT, etc. É difícil eles darem espaço para ti derrubar ou tirar eles do trono, né?
Galo Cinzento: Eu já vejo a parada como dizia aquela frase: A Revolução não será televisionada. Então, eu acho legal o rap ter essa ascensão, não é particularmente o estilo que eu curto de rap [que está aparecendo hoje], mas acho que existem estilos e estilos, e como a gente tá fazendo um trabalho, o respeito tem que vir sempre em primeiro lugar, e o objetivo que a pessoa tem no seu trabalho. Eu faço das palavras do Pezão as minhas: seria legal se a gente pudesse estar explorando essa mídia, mas falar disso é um pouco utópico agora, porque como a gente contesta problemas, a mídia nunca vai apoiar o protesto. O governo nunca vai apoiar quem fala mal dele.
Biscoito: Se for olhar assim, por muito tempo não teve isso, essa inserção. Por muito tempo, o maior grupo de rap do Brasil era o Racionais. Racionais não apareciam em lugar nenhum, eram anti-mídia. Nunca iam tocar, não iam tocar, então, o que acontece: uma geração foi influenciada por eles. Hoje, a geração é influenciada pelo rap que tá na mídia. E o que acontece: todo mundo que está na mídia, de alguma forma, massageia o ego das pessoas, vende e dá lucro para a mídia. Se tu faz um protesto, a fu, tem uma boa mídia e o teu som estoura, a mídia vai querer te explorar. Então, eu acho isso: quando tu faz sucesso – e sucesso, eu digo, por exemplo, 3 milhões de acessos no youtube –, não importa o que tu estás falando, a mídia vai te levar para lá.
Então, acho que o som libertário do Pé, o nosso som protestante do Sintomas Clã, ele tem um espaço sim, na mídia, desde que tenha uma massa de adeptos que empurre ele para lá. É o que acontece com o Emicida. Olha o Criolo, ele tem milhares de mensagens implícitas no som dele que dão no meio de tudo que está acontecendo, e ele tá lá. Então vem da forma que tu vai falar. O pezão tem uma forma explícita de se expressar, é difícil, é quase impossível termos esse acesso lá. Mas eu acho legal, tá ligado? Eu comecei a fazer rap, eu e o Galo, numa época em que homem branco sofria preconceito por fazer rap. ‘Tu é branco, meu, tu não pode rimar’. Então, eu vivo uma transformação do rap hoje, e fico feliz do rap estar na mídia, porque, querendo ou não, é uma vitória do rap. Mas não uma vitória que me influenciou a cantar. Por isso que meu rap não tá na mídia: porque eu me influenciei por outra coisa. Coisa que a nova geração não tá nem aí: a nova geração quer saber do tênis colorido, da vodka, da maconha. Então, é isso: hoje em dia o grupo que tá na mídia é o grupo que massageia o ego, são poucos os que não tão. Mas é possível um som protestante encarar a mídia, protestar, fazer um bolo. O próprio MV Bill é uma prova disso, ele faz um som que retrata um sentimento, ele vai lá e canta, fala de amor, mas ele fala vários bagulhos, quando ele cantou Falcão, eu achei do caralho…
Pé: Mas ele teve um processo de transição do discurso e do comportamento dele. Na época do Soldado do Morro [música do primeiro álbum do MV Bill, Traficando Informação, lançado em 2000], ele era condenado pela mídia, ele batia boca com a mídia…
[Todos começam a falar ao mesmo tempo]
Biscoito: Mas ele conquistou o espaço dele na mídia, e assim que ele conquistou o espaço dele, ele conseguiu implantar as ideias dele pra fazer a revolução. Ele faz um professor na Malhação que, se for olhar as tomadas que ele faz, trazem uma crítica social, o racismo, o preconceito, ou que o negro pode dar aula num colégio de playboy. Eu acho que essas pessoas trabalharam duro, e o objetivo delas era fama. Vem da pessoa: o teu objetivo é ter fama, copia vai lá que tu vai chegar lá. O teu objetivo é ser um revolucionário, te contenta em tocar para meia dúzia de bonecos, e ficar ali a tua vida toda.
Ricardo: É que existe uma grande diferença do hip hop mundial, que é feito de festas, e o rap brasileiro, que é mais de protesto. E aqui, de maneira geral, como tu vens de uma época de ditadura, não tem como tu chegar, não vão aceitar, na nossa geração e talvez umas três ou quatro adiante, não vão aceitar que tu fale o que tu quer. Então, às vezes tu tem que dar uma isca, para puxar o lance pro teu lado e aí sim começar a articular as tuas ideias para uma grande massa.
Galo: Eu acho que todo trabalho bem feito, ele é recompensado. Então, vem do objetivo do trabalho do artista, é esse objetivo que vai dar rumo à carreira dele. Se ele quer o estrelato, se ele faz um som porque aquele som satisfaz a alma dele, se não há dinheiro que pague aquilo. Eu acho que o trabalho bem-feito é recompensado, não precisa te adaptar. Eu acho que tudo vai de rumo às tuas ideias e é lá que vai direcionar.
Pé: Eu acho que depende da proposta que o cara tem com a arte dele, do objetivo que o cara tem. Se for pra fazer sucesso, ser conhecido e tal, aí sim, você tem que fazer várias concessões, se adaptar ao público, fazer toda uma leitura do público, um planejamento, etc. Mas aí tem a outra leitura da arte, que é a arte usada para educar, questionar, e aí você se questiona se tem que se adaptar ao público ou se é um cara diferente, que tem uma oportunidade viva de trazer coisas diferentes pro meio, e aí você se questiona se deve se adaptar ao público ou trazer um incentivo de educação. À parte de valorizar as varias expressividades, tanto a parte festiva do rap, a confraternização, momentos de alegria, mas também momentos sérios, momentos de reflexão, porque o rap é um momento em que a gente para pra se escutar, muitas vezes. Muitas vezes a gente conversa e fala as coisas sem significado, às vezes não dá significado pro que a gente ouve, mas na hora que a gente ouve um irmão cantar a gente está se ouvindo, é como um grande conselho.
: E nessa relação com a grande mídia e com essa questão da inserção do rap nacional nesses espaços, como vocês veem essa relação do Hip Hop com a indústria do entretenimento? Acreditam que existe uma indústria cultural?
Ricardo: A indústria cultural existe e existe fortemente, tu nota que as pessoas muitas vezes criam um projeto social para ajudar aquela necessidade, as pessoas acabam fazendo coisas que beneficiam muito mais elas mesmas. E na questão cultural mesmo, as pessoas acabam criando uma linha para não se afastar muito.
Biscoito: Na real o que tá acontecendo com o hip hop é o seguinte: o hip hop é um movimento, com cinco elementos. O rap está se elitizando, o rap sai da periferia e o que entra na periferia é o funk. Eu acho que o rap se elitizou, porque eu volto a repetir, nos anos 90, o padrão de rap era o Racionais, hoje, é o Emicida, é o que referencia todo MC que está se formando hoje. A tendência é que o rap fique elitizado, como é a cultura norte-americana, entendeu? A melhor fotografia, e zero de conteúdo. O rap tinha um conteúdo ideológico tri forte, e agora o rap é imagem. Uma criança, quando ela olha num palquinho, com uma tabuinha de papelão, e um cara lá, maloqueiro e pá, falando a história mais louca ou dando a balada para aquela criança, ela não está nem aí, se ela não estiver bem vestida. E isso é culpa da internet, porque o sedutor da internet é o mais colorido, é o mais HD, é o mais tudo. Então a internet, ao mesmo tempo que beneficia o artista, coloca um padrão a ser seguido. Porque é outro rap, é outra cultura, o rap regrediu. O cara hoje que faz um rap extremista, ao extremo, que quer reeducar, ele tem que pensar como um visionário, e talvez isso vai colar depois que estourar uma bomba aqui e eles precisarem ouvir isso. Mas hoje é foda, tá ligado? E eu fico triste com isso. Se tu não tiver uma fotografia legal, tu não vende um show e tu não sobrevive, tu fica cantando pros teus amigos e teu sonho não sai dali. E é a mesma coisa que a gente tava falando. Hoje eu tô aqui, em Santa Maria, na casa de um amigo. Imagina se amanhã eu tô no Rio, eu tenho tudo, sobre o que eu vou escrever? Eu vou escrever que a minha vida tá uma maravilha. Eu vou me preocupar com alguma coisa? Eu até posso, daí eu tenho dinheiro…
Ricardo: Aí tu vira um demagogo.
Galo Cinzento: A estratégia é a seguinte: ou tu acompanha uma tendência ou tu cria uma para ser acompanhada.
Biscoito: Quando tu tá nesse negócio, tu tem que pensar nessas coisas, e é isso que eu te falei que dá tristeza. Porque hoje, o rap, pra mim, é um compromisso que me acompanha 24 horas, tenho que pensar nisso, se eu quiser sobreviver daquilo.
Pé: Praticamente todas as culturas passam por esse processo de comercialização, e essa questão dos caras representarem um comportamento assim… o rap sempre questionou os ricos, as classes ricas, mas a gente tem dentro da antropologia uma coisa que se chama o habitus, né? Que, às vezes, o quanto mais seja gritante a diferença entre ricos e pobres, do ponto de vista do habitus, do comportamento, fica difícil você delimitar o que é a classe rica e o que é a classe pobre, porque os sonhos de ascensão são bem parecidos, desde o moleque que tá no tráfico com um fuzil na mão para ter um tênis Nike, para comprar um celular que trabalhando ele nunca ia conseguir comprar, ao rico que forma o filho, faz mestrado, doutorado – apesar de que tem pobres na universidade também hoje em dia. O rap nos EUA reproduziu isso aí também, foi uma forma do negro subir na sociedade e dizer ‘ó mãe, eu posso andar de carro importado, eu posso morar numa mansão, eu posso dar tapa na bunda de umas vadias’.. eu não acho isso aí legal, mas acho que é uma forma de autoafirmação da periferia, dos negros, e aqui no Brasil é a mesma coisa: o pobre não tem uma consciência de classe, porque a concorrência é o hino, a vida é uma troca, mas a sociedade individualista, positivista, capitalista transforma nossas relações numa relação de disputa de coisas constantes.
: E nessa questão: naquele som com a Flavinha, Resistência e Liberdade, tu diz: “O rap é minha luta revolucionária”. Tem um som do Sintomas que diz que “O rap é minha arma”. Como é isso? Vocês tem essa perspectiva de colocar a música como um instrumento de luta para formar essa consciência?
Pé: Eu acho que a música deve ser uma livre expressão, deve sentir e expressar o que quiser. A música não deve ter uma regra e uma forma. Eu acredito em determinadas ideias, e acredito que a música abre o caminho e atrai as pessoas para ouvir as coisas que você tá falando. Não que eu use o rap pra fazer propaganda das minhas ideias, eu acho que uma coisa complementa a outra. A cultura é sim uma forma de incentivo, uma forma de conselho, uma forma de trazer questões que às vezes não são discutidas, é uma forma de quebrar tabus, e o que me atraiu para a música foi a questão social. Comecei a me identificar com o hip hop em são Paulo, e lá quando eu era moleque, em 99, 98, já tinha muitos grupos de rap estourados: Racionais, De Menos Crime, Consciência Humana, Sistema Negro, DMN, tinha vários, lá fui conhecendo o rap. Ao mesmo tempo, conheci o movimento anarcopunk, que também faz da cultura uma luta, e no movimento anarcopunk a gente sempre teve essa coisa de fazer intercâmbios culturais com o rap, com o samba de raiz, capoeira, uma série de coisas, e as culturas transformam uma série de coisas, inclusive os hábitos, e os hábitos talvez sejam o central hoje em dia.
Não tem um fiscal, ali, vigiando seus atos 24 horas por dia. Você é o seu próprio fiscal, sua própria torre de vigia. Então, é um movimento de inércia. Você rompe a estrutura, mas não rompe o movimento de inércia, por isso eu acho difícil transformar um sistema político, acho até um sonho utópico demais. Por isso o anarquismo como uma prática nas relações cotidianas, porque não adianta transformar a sociedade se você continua com o veneno dentro do peito, é um movimento de inércia, simplesmente porque elas não se reeducam, não tem a consciência de lutar. E depois de derrubar um inimigo, o que fazer? Como organizar uma nova sociedade? Isso é um ponto que poucos grupos sociais questionam, os de esquerda, praticamente, todos tão numa linha reformista.
Biscoito: O nosso som é simples, não existe uma fórmula da gente escrever. Não vamos ver o que tem de melhor e escrever. Não, o nome do nosso grupo diz tudo: sintomas. É simples, resume-se assim, sintomas. Existem vários problemas que a gente tem e varias alegrias que a gente tem e isso resulta no nosso som, a manifestação desse anseio. Por isso, o rap é a arma. Um livro poderia ser uma arma, minha caneta e meu rap. Através do rap eu monto um palco gigante na minha comunidade, faço um monte de gente dar risada. Então o rap é minha arma, meu veiculo de transformação social. Só que a forma de eu militar é cantando, é expondo minhas ideias. Meu envolvimento é gravar as pessoas, cuidar o disco das pessoas.
Galo Cinzento: O que a gente faz, não tão frequente devido a nossa agenda, é realizar trabalhos eventuais de oficinas em projetos sociais. Terça-feira passada a gente estava na Fase [Fundação de Atendimento Sócio-Educativo], gravando a gurizada interna, os menores que tu vê e nem tem noção que são homicidas, traficantes, foram mal encaminhados e através do rap a gente está tentando mostrar pra eles… imagina assim: a gente levar todas as paradas do estúdio, ir lá, montar, gravar os piás, e o gurizinho te olhar e dizer: ‘bah, meu, nem parece que eu estou preso’.
Biscoito: Esse é o resumo da frase: o rap é minha arma. Quando que a gente ia poder estar dentro da fase?
Galo Cinzento: A sensação que te dá, de fazer um bem, isso paga tudo, porque tu sabe que amanhã ou depois, tu pode estar numa sala com dez, se conseguir influenciar um, é uma vitória. E essa que é a viagem do resgate social, todo mundo tem uma segunda chance.
: Vocês gravaram juntos o som Somos Todos Pinheirinho, em apoio à comunidade que foi brutalmente desalojada lá em São Paulo. Eu queria saber como vocês veem essa questão das políticas que estão acontecendo agora, de desocupação, porque não é a única, inclusive em Porto Alegre…
Pezão: Tem várias famosas, em Porto Alegre mesmo, com esse período de Copa do Mundo, o centro de Porto Alegre está passando por um processo de higienização. É uma proposta de política pública da prefeitura, de retirar o transporte público do centro, de retirar o camelódromo de lá, foi uma forma de tentar resolver o problema do comércio na rua, e várias favelas estão sendo removidas assim. E, na verdade, as favelas do centro de Porto Alegre normalmente são fundamentadas em comunidades de pessoas que trabalham com reciclagem, pessoas que vivem disso e estão acostumadas a viver no centro. Existem diferenças, o Chocolatão mesmo é um exemplo. Os kaingang também sofreram um pênalti grave, as comunidades indígenas, o quilombo Silva, ameaçado também pela construção de prédios na avenida Peçanha, e todas essa favelas, a Nazaré, a Dique… a Chocolatão foi jogado pro número 9000 e tantos da Protásio Alves, quase 20 quilômetros do centro de Porto Alegre. As ocupações populares sofrem pressão constante, apesar de hoje ter vingado uma no centro, Ali, a proposta hoje é tirar o pobre do centro. Isso acontece em todas as cidades, teve o Pinheirinho, o quilombo dos Macacos, o Santuário dos Pajés, e milhares e milhares de outras favelas que a gente nem fica sabendo que são desalojados e tal.
Biscoito: Nesse som, minha parcela de contribuição é minha voz e o aprendizado. Porque o Pé me chegou com a proposta de fazer o som, e eu não vou ser hipócrita, eu disse ‘Pé, mas eu nem tô ligado sobre o que está acontecendo no Pinheirinho, tô atordoado trabalhando, gravando, trabalhando fora’. Eu curti a letra, e pra mim foi afudê porque foi um lance que eu procurei me informar. A minha opinião sobre o que aconteceu é que é lamentável, dá vontade de chorar, é muito complexo isso. É uma causa da na qual a minha parcela para poder ajudar foi participar dessa música, e aprendi sobre essa questão.
Pé: É um questionamento sobre a importância constitucional que se dá ao direito de propriedade como um direito quase sacro, é praticamente um direito indiscutível, tanto que as reformas agrárias são difíceis, e a reforma urbana é mais difícil ainda. Na verdade, não existe reforma urbana, existe ocupação urbana.
“HIP HOP, CELEBRAÇÃO E SUBVERSÃO: ENTREVISTA COM FRONT LIBERDADE E RIMA E SINTOMAS CLÔ, pelo viés de Tiago Miotto
tiagomiotto@revistaovies.com
parabens tiago, mas uma materia sensacional…é noiz irmao. familia co-rap na ativa.