Dois jovens caminham com um litro de pet nas mãos, fazendo barulho. As ruas parecem maiores. O vento, mais frio. As venezianas fechadas e os faróis ligados avisam aos descuidados que a noite já cá está. Os jovens se aproximam da guarda da ponte seca do Itaimbé:
-E aí, meu! Desculpa aí, mas tu podia nos dar um pega do teu bauro?!
Enquanto isso, as sirenes da nova (e caríssima) Guarda Municipal vem chicoteando o escuro. A palavra que impera na noite é a vigilância: pelo patrimônio público, pelos pertences no bolso, pela garganta. Porém, essa vigilância não é assim quintessencial às sombras. Da noite, o que mais amedronta aqueles que se fecham em suas casas para só sair com o raiar do sol é a astúcia da noite, a existência das pequenas revoltas e irregularidades que o sol cala e que a lei e o poder repudiam.
Nisso, um homem de meia-idade, muito rico e bem quisto pela ‘alta’ sociedade santa-mariense, daqueles que aparecem dando entrevista nos canais pequeno-burgueses locais, está a dirigir seu carro de mais de R$100.000 pela Presidente Vargas. Calmamente, sem medo do sol, que muito facilmente o entregaria, ele para e abre a porta para quem estava na esquina com a Duque. Entra Nicole, que nasceu Jéferson. O motorista do carro se aproveita da noite para, pelo menos durante aquelas horas, ser o que é, mas que nunca mostraria ao meio-dia, bebendo um espresso com seus amigos advogados.
Num quarto duma das grandes casas do Cerrito, chora uma mulher à beira da pia da cozinha. Fez-se um chá às três da manhã porque não consegue mais dormir desde que descobriu que o marido a trai já há dois anos com sua melhor amiga – a mesma que, dali umas sete horas, a encontrará para almoçar uma salada no shopping. A boa esposa, mesmo desgostosa, só faz pensar em como a família ficaria abalada e em que falariam seus companheiros de high society antes mesmo de pensar naquilo que ela mesma quer. Mas, à noite, quando ninguém está lá para julgá-la, ela o pensa – e cogita, imagina para, talvez um dia, planejar ou se convencer de que esqueceu.
Não são só lágrimas que se mostram à noite, mas tudo o que não são durante o dia – ou melhor, aquilo que escondem atrás do sol. Uma festa se debulha das caixas de som num grande apartamento do centro da cidade – uma cobertura – que compõe só mais um da grande lista de imóveis que sustentam a família sem trabalhar às custas de quem nunca, na vida inteira, terá sua própria casa. Ninguém no prédio vai se importar com o barulho, o dono daquela cobertura é um dos homens mais ricos da cidade e sua esposa é a síndica do prédio. Mas eles não estão em casa, foram viajar para Barcelona com a filha mais nova, num daqueles pacotes de turismo previsíveis. O filho mais velho, de 17 anos, ficou em casa. Ele faz pré-vestibular e, no ano que vem, vai começar a cursar Medicina para, no futuro, ser um daqueles médicos que adoram se chamar de doutor, mas que têm horror averbal do SUS. Ele também vai à academia todos os dias depois de tomar sua batida energética. É daqueles meninos que têm ombros e braços fortes, mas em quem o peito de garnizé afunda e as pernas não passam de dois gravetos. Lutam, a todo momento, para manter o equilíbrio. “Um filho maravilhoso”, diria sua mãe na mesa da dermatologista pouco antes de outra injeção de botóx. Mas a festa está lá, bombando. Garrafas de uísque vindas de Rivera, adoçadas com latinhas de Red Bull. Latas de cerveja e mais cerveja; garrafas de vodka e o som ainda lá, a tocar o que a Atlântida já confirmou. Ele levanta a gola de sua camisa pólo rosa e se aproxima da menina aquela, a mais bonita da escola, que está sempre laranja, o ano inteiro. Ela tem uma cadelinha de alguma raça minúscula que atende pela duplicata da mesma sílaba – algo como Lulu, Bibi, Tatá. A moça acaba transando com o menino – ou melhor, ele acaba barranqueando a menina, porque ela já está desacordada há algum tempo. Também pudera, com aquela saia e todos aqueles copos de bebida. Seu pai, que só saberá dos rumores do ato em si, ficará pateticamente orgulhoso; sua mãe comentará de como meninas bêbadas são deselegantes ao passo que levanta um copo de vermute com as amigas do tênis. Mas a noite também esconderá como as coisas aconteceram. Já o dia, esse irá escancarar ao seu modo a vergonha induzida da menina-bêbada e o sucesso patife do menino-garanhão.
Na mesma noite, o carro da polícia parou em alguma esquina da Carolina e mandou quatro garotos se jogarem contra a parede. Eles estavam com seus skates e bonés de aba para trás ou para o lado e seus pequenos alargadores de orelha. Um deles é empacotador do Nacional; o outro trabalha com o tio numa oficina mecânica; o terceiro mora com a avó e o quarto está ainda ‘sem rumo’. Os quatro – “agora, já, contra a parede”. A polícia acha dois baseados. Vai sair no jornal, a apresentadora da RBS vai esganiçar em desaprovação contra essa juventude perdida. Os baseados chegaram no mesmo carregamento que incluía os R$50 de maconha e os dez gramas de pó que salpicaram a festa da cobertura do menino-garanhão.
Por cada canto da cidade, os segredos, os sonhos e os desejos mais puros e os valores mais sinceros vêm à tona e perambulam, como vampiros, entre os postes de luz. O escuro tira o peso do olhar alheio e do julgamento hipócrita duma sociedade que se vigia e se mata a todo tempo em nome da família, da ordem e do deus cristão. Quando o dia chega, aos poucos vão se esconder novamente as pessoas de verdade e lá vêm os manequins continuar a pousar para o retrato mais pútrido que esse feudo já viu.
O DIA ESCONDE A NOITE, pelo viés de Gianlluca Simi
gianllucasimi@revistaovies.com