Em seu texto de 1920, “O mal-estar na civilização”, Freud chegou à conclusão que o indivíduo não pode ser feliz na civilização moderna. Mesmo com todo progresso técnico e científico, o homem não se tornou mais feliz. Ao refletir sobre o propósito da vida, ele chegou à conclusão de que o objetivo da civilização não é a felicidade, mas é a renúncia a ela. A vida do indivíduo é a busca constante pela realização da satisfação do prazer, mas essa satisfação é impossível de realizar num mundo carente e escasso de recursos. O mundo é hostil às necessidades humanas, para tudo que é bom e prazeroso exigem-se trabalhos penosos e sofrimentos. A manutenção da civilização exige que o indivíduo trabalhe. Mas os homens não são amantes do trabalho e os argumentos não têm valia nenhuma contra suas paixões. Assim, é somente através da repressão social que os indivíduos são obrigados a trabalharem.
Na teoria da cultura freudiana, a sexualidade é a pedra fundamental na manutenção e reprodução da civilização. A civilização só pode existir porque os impulsos sexuais são canalizados para o trabalho, gerando todos os bens materiais e intelectuais da civilização. “A civilização está obedecendo às leis da necessidade econômica, visto que uma grande quantidade de energia psíquica que ela utiliza para seus próprios fins tem de ser retirada da sexualidade” (FREUD, 1969, p. 125). Em consequência disso, Freud atribuiu as doenças psíquicas de sua época à grande repressão que a civilização exerce sobre os impulsos sexuais. Essa insatisfação foi exigida num grau muito superior que o necessário. O processo civilizatório é marcado pela renúncia e pelo sentimento de insatisfação que os homens experimentam vivendo em sociedade. O resultado disso é o mal-estar na civilização. Este mal-estar é produzido pelo conflito irreconciliável entre as exigências pulsionais e as restrições da civilização.
Hoje, em pleno século XXI, podemos dizer que nossa época melhorou muito. A vida tornou-se um pouco mais digna; as taxas de crescimento da natalidade e o aumento da expectativa de vida demonstram a melhoria. A saúde e o saneamento básico já atingem a grande maioria da população mundial. O analfabetismo já não é um problema grave dos países subdesenvolvidos. Há uma maior tolerância à liberdade sexual. A população de hoje usufrui mais e melhor dos bens culturais. No entanto, o mal estar na civilização não desapareceu. Em nossa época, o mal-estar assume novas formas, ele estaria mais associado às condições econômicas e sociais que os indivíduos experimentam no mundo moderno. Nós, filhos da modernidade, somos espectadores de uma experiência que melhor se conceitua como fome, miséria, barbárie, guerras, desemprego, instabilidade econômica e social. Todos esses fatores geram a insegurança social no indivíduo e consequentemente são responsáveis pelas doenças psíquicas de nossa época. No atual estágio de nossa civilização não sabemos se nossas perspectivas serão realizadas. O mundo se torna cada vez mais racionalizado e o trabalho se torna cada vez mais dispensável. A racionalidade técnica cria cada vez mais domínio de objetos e instrumentos que acabam por mecanizar todas as estruturas sociais. O homem entendido como “homo faber”[1] está perdendo sua importância. Nós vivemos uma época de desemprego estrutural (desemprego causado pela mecanização das estruturas sociais). Esse desemprego atinge todos os países e torna inexorável o fim da sociedade do trabalho. O homem tem se tornado uma peça inútil na estrutura dos meios de produção. A possibilidade de uma mecanização completa em todas as esferas da vida social é uma possibilidade histórica. Esse fato deve abalar o narcisismo do homem. O indivíduo se vê sem ocupação e sem perspectivas. Ele perde sua identidade na medida em que perde sua ocupação. Ele torna-se um indivíduo à margem, mais um na massa de desempregados. É este mal-estar na civilização que surge da preocupação, do medo e da insegurança que procuramos diagnosticar.
Na época de Freud, o puritanismo, os tabus e a enorme rigidez contra os impulsos sexuais poderiam dar razões para se afirmar que o mal-estar surgisse das restrições à vida sexual. Contudo, vivemos em uma época onde a liberdade sexual é tolerada e até mesmo incentivada. A sexualidade perdeu sua importância como fator preponderante nas crises de ansiedade e de neuroses. No atual estágio do progresso humano, as restrições à sexualidade tornaram-se desnecessárias. Com o desenvolvimento técnico e científico, o uso das pulsões sexuais na criação dos bens culturais perdeu sua importância. O homem já não precisa mais sacrificar sua sexualidade em nome do progresso. Hoje a racionalidade atingiu todas as esferas da vida social. O progresso técnico atingiu tal amplitude que já não é mais necessário desviar as pulsões sexuais para o trabalho competitivo. Em um futuro próximo, não será mais preciso o uso das forças humanas na produção e reprodução dos bens culturais. As pulsões estariam livres da repressão imposta pelo trabalho social. Dessa forma, o mal-estar do indivíduo na civilização já não surge mais da insatisfação libidinal. Já não é mais de uma tensão física, sexual, que causa a ansiedade, mas é uma tensão psíquica, causada pela preocupação, pelo medo e pela insegurança causada por condições econômicas e sociais. Os estímulos externos causam todo tipo desajuste psíquico. É comum a experiência da melancolia, da depressão, do desânimo, do desinteresse pela vida, da baixa autoestima e da sensação de inutilidade. As doenças que eram menos comuns na época de Freud se tornaram grandes problemas para psicólogos e psiquiatras, são os traumas de roubos e de sequestros, a síndrome do pânico, a compulsão de consumo, a síndrome de perseguição, a misantropia e a depressão. Todas essas doenças são acompanhadas de crises de ansiedade. São doenças típicas de nossa época e que estão associadas ao mal-estar na civilização.
Segundo Mezam, “na época de Freud a sociedade era mais rigidamente patriarcal e com valores claramente identificáveis, nossa época tornou-se mais relativista e fragmentária. Os ritmos de mudança na sociedade contemporânea se tornaram alucinantes, deixando os indivíduos desorientados e pressionados pelas exigências do dia-a-dia” (MEZAN, 2000, p. 208). Se na época de Freud os valores eram bem estabelecidos, em nossa época não há mais valores ou rumos pré-estabelecidos a serem seguidos. A família como formadora da individualidade se fragmentou. Os laços familiares se tornaram frágeis por causa das exigências do mundo exterior. A família não constitui mais um núcleo fixo de produção da subjetividade. Todos os indivíduos devem trabalhar se querem viver. A criança não tem mais o convívio do pai. O pai deixou de ser um parâmetro ou modelo a ser seguido. Não há mais parâmetros ou padrões definidos. A TV, a escola e as instituições sociais ensinam os modelos, as formas de ser, de pensar, de agir e de valorizar. O indivíduo moderno está desamparado e desorientado. Seu modelo é o patrão, o playboy rico, o traficante do bairro ou o artista de novela. O distanciamento da autoridade paterna causou ao indivíduo o desnorteamento e a insegurança frente ao mundo exterior.
O mal-estar na civilização é a condição existencial do homem moderno, é o destino que todos temos de compartilhar. O simples fato de o indivíduo viver no mundo contemporâneo já é o requisito para se viver ansioso. A sociedade industrial, a competitividade, o consumo desenfreado, o desemprego, a violência, a dinâmica das transformações sociais e dos valores e a adaptação do indivíduo às exigências da vida são os principais fatores que produzem o mal-estar na civilização.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago, Edições Standard, Tomo XXI ,1969.
MEZAN, Renato . O Mal-Estar na Modernidade. Revista Veja, São Paulo, p. 68 – 70, 26 dez. 2000.
O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO MODERNA, pelo viés do colaborador Michel Aires de Souza*
*Michel é Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista, Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos e cursa Pós-graduação latu-senso em Sociologia pela Universidade de São Paulo.