Três andares, num marrom não-chamativo, último prédio à direita da Avenida Rio Branco. No térreo, porta e janelas protegidas por uma grade de ferro. Essa porta se abre para receber qualquer um, principalmente, para pessoas que não têm tantas alternativas à sua frente. Por entre o vidro, alguns avisos: horário de entrada, das 18h às 21h, com saída permitida somente no dia seguinte. Obrigatório o banho.
Na entrada, estão sempre Jader ou Luiz Roberto, cuidando da chegada de cada um que vai passar a noite na Casa. Lá dentro, 49 camas estão à espera dos recém-chegados todas as noites. Alguns ficam em duplas, outros em trios e até em quintetos. Monitoras como Cida, Carmem e Rosângela auxiliam os novos hóspedes. As atividades nunca param – há funcionários trabalhando 24 horas por dia –, mas é de tardezinha que a rotina do Albergue Municipal de Santa Maria fica movimentada.
18h30min: Jader, 22 anos, é segurança, mas também faz as vezes de porteiro. Cada um que chega, ele encaminha para a sala à direita, onde faz a revista, em busca de armas, drogas ou álcool, que são proibidos nas dependências do Albergue. Oito facas de cozinha, quatro garfos, uma bombinha para asma que virou cachimbo de crack, uma lixa de unha de metal, três estiletes, um canivete, uma arma improvisada com uma lasca de acrílico e um pacotinho de maconha fazem parte das últimas apreensões. Todos os contrabandos recolhidos são encaminhados para a Polícia Civil.
19h: Na mesma sala onde são feitas as revistas diárias, o argentino Antonio se arruma para partir até o Nordeste. Entre causos de suas idas e vindas num sotaque castelhano, ele fala sobre os 40 anos que dedica ao artesanato e à pintura. Com senso crítico, alerta para o que falta ao povo de Santa Maria: “no les dan cultura”. Nascido na Patagônia, garante conhecer: “do Oiapoque ao Chuí”. Antonio se prepara para partir naquela noite, deixando para trás o Albergue, ao qual recorreu por ter seu material de trabalho e sustento roubado em Feira de Santana, na Bahia. Em suas andanças, aprendeu: “violência se combate com amor, não com violência”.
19h15min: O casal Marli e Marcão chega ao Albergue e passa pela revista. Marli, 50, sempre com o cabelo num rabo de cavalo cuidadosamente arrumado, usando brincos e de preferência um batom, cuida de carros nas redondezas da Igreja do Rosário como forma de sustento. Marcão, 56, mais recatado, trabalha com coleta de material reciclável. Os dois se conhecem de longa data. Quando ela trabalhava como enfermeira, ele foi internado e ficou sob seus cuidados. Anos depois, os dois se reencontraram no antigo Albergue, que funcionava na rua Vale Machado, e começaram a namorar. Mas na Casa eles têm que respeitar as normas e dormem separados: Marcão vai para o quarto se reunir com os colegas e Dona Marli segue em direção ao aposento das mulheres.
19h30min: No refeitório, diferentes gerações do Albergue se misturam. Os garotos Tainã, 21, Ernani, 26, e Anderson, 23, compartilham a mesa de jantar com o senhor Luiz Paulo, de 63 anos. Existe até ‘nomenclatura de relacionamento’ entre os moradores do Albergue. Glaudemir, 34, e Fabiano, 27, explicam a sistemática: “piá” para os mais novos, “pia véio” a partir de 30 anos e “tio véio” para os senhores da terceira idade.
Os piás convivem na malandragem: uma brincadeira seguida por uma provocação e uma declaração de amizade mais à frente. A aparente alegria e despreocupação escondem, na verdade, histórias complicadas. As peripécias da vida, os feitos e os desfeitos fazem acreditar que esses meninos têm mais idade do que a cronologia aparenta. Tainã conta da distância de seus três filhos. Anderson fala sobre a luta por um emprego. Ernani conta aliviado que já está há quatro dias sem crack. Histórias de crimes, prisões e batalhas com drogas são bem comuns entre todos eles.
“Agora tô trabalhando com carteira assinada”, conta Tainã. O emprego é a maneira de serem aceitos pela sociedade, embora não seja garantia de recuperação. Alguns trabalham durante algum tempo, mas acabam tendo uma recaída, voltam a usar drogas e à situação de marginalidade. Buscar ajuda na Igreja, conseguir internamento em uma clínica de recuperação ou parar por conta própria – cada um tem sua receita, mas o fato é que para se livrar do vício é preciso persistência e determinação.
20h: No quarto feminino, estão as mulheres reunidas, uma em cada cama. Cláudia e Eloísa preferem não contar suas histórias e, junto com Marli, ficam ouvindo os contos de Dona Carmita, 48, que vai de cantora a escritora em um piscar de olhos. Com um sorriso de menina nos lábios, ela fala das aulas de teatro na Escola Municipal de Artes Eduardo Trevisan, onde estuda com muitos jovens, vários deles universitários. Para mostrar o que aprende em aula, Dona Carmita coloca um chapéu de palha na cabeça – o qual já utilizou em cena – e canta um poema que escreveu para o espetáculo “Armadilhas”, apresentado no Theatro Treze de Maio.
“Você acha que eu sou melhor como escritora ou cantora?”, ela pergunta. Difícil responder. Ela já é uma atriz completa, de uma simpatia sem igual. Quando fala parece estar sempre declamando um trechinho de seus espetáculos. Está no Albergue desde que teve de deixar a casa da irmã após uma desavença com o sobrinho. Sem ter para onde ir, achou abrigo na Casa, que a recebe há pouco mais de um mês.
Enquanto isso, uma Kombi estaciona no fim da avenida Rio Branco. “Esse deu trabalho para convencer”, contam os vigilantes da Prefeitura, Luiz, 52, e Jandir, 50, ao encaminharem para o Albergue um idoso recolhido na rua. Durante o dia, apenas vigilantes de patrimônio, mas, quando cumprem a escala noturna, também atendem chamados para recolhimento de moradores de rua. Ninguém é obrigado a sair de uma via pública, por isso, os vigilantes têm estratégias para levar os andarilhos até o Albergue. Um prato de comida e uma cama confortável são as palavras mágicas que fazem a maioria passar a noite na instituição. Além da janta e do café da manhã, os albergados têm direito ao almoço no Restaurante Popular, na rua Vale Machado.
Naquela noite foi recolhido um senhor de cabelos grisalhos, alcoolizado. O olho direito, ele perdeu em um acidente e, no lugar do globo ocular, nada de prótese de vidro, apenas o vazio. “Sou viúvo, sozinho no mundo, tentei me matar duas vezes”, e tira do bolso uma pequena faca de cozinha sem fio, para mostrar como foi a tentativa (ele ainda não havia passado pela revista). “Eu só fico feliz quando tomo um aperitivo, mas tiraram de mim o aperitivo”. Isso é tudo que aquele senhor conta. Sequer diz seu nome. No canto da sala de revistas, aguarda o atendimento da psicóloga.
20h25min: O horário do jantar já havia encerrado, quando chega Gabriel. “Liga lá para o espeto corrido, pedir janta para ele”, brinca o supervisor Mário, mas ao mesmo tempo demonstrando rigidez nas normas. O jantar é preparado por Maria da Graça, 52, que trabalhava em outro restaurante e pediu demissão para assumir a cozinha do Albergue. O status de funcionário da instituição não é assim tão bom e os familiares de Maria da Graça não gostam muito da ideia, “mas a visão da minha família não me interessa”, argumenta a cozinheira.
No trabalho, ela conta com a ajuda de Pedro Henrique, 22. Encerrado o horário do jantar, ele senta no pátio do Albergue e acende um cigarro, que joga fora para dar a entrevista. O caminho até ali começou a ser traçado na casa dos pais, onde as brigas eram constantes. Desnorteado, começou a fumar maconha e acabou na rua, por quatro ou cinco dias, quando chegou a passar fome. Seu jeito violento lhe trouxe problemas, mas esses são detalhes que ele não faz questão de contar. O Albergue, destino que no início lhe causava repulsa, agora é o seu refúgio: “isso daqui pra mim é uma fuga, minha vida aqui é trabalhar. E tem psicólogo, tem tudo”, explica Pedro. Além de auxiliar na cozinha, ele trabalha durante o dia como chapeador. Pai de duas meninas, uma de quatro e uma de cinco anos, ele conta que sequer procura a família. E tem planos para o futuro: “Quero fazer cursinho pré-vestibular. Meu sonho é ser advogado”.
Cursar direito também faz parte dos planos de André, 31, que já está há quase um ano albergado. Natural de Santana do Livramento, veio para a região central do Estado em busca de emprego e de um curso superior. A esposa não queria ficar distante, mas não tinha como se manter em Santa Maria. Então, foi morar com a mãe em Tupanciretã, a 105km daqui, 140km a menos do que Santana do Livramento. Ainda este ano, a distância entre os dois deve acabar. André evitou o aluguel permanecendo no Albergue e conseguiu economias suficientes para comprar uma casa, para a qual devem se mudar em breve.
Segundo as normas do Albergue, as pessoas só podem ficar albergadas por no máximo 20 dias. Depois disso, devem ficar 10 dias fora. Nesses períodos, André recorreu à hospedagem solidária, que funciona no mesmo prédio. Um pouquinho diferente do albergue, essa hospedagem funciona como uma espécie de apartamento alugado por dia, a um preço acessível. Qualquer pessoa que necessite pode chegar lá e pedir por um quarto. No pacote, cama, banheiro completo e café da manhã. Esses hóspedes ficam nos quartos da frente do andar superior e não precisam seguir os horários de entrada e saída dos albergados. O dinheiro arrecadado é uma ajuda de custo para a manutenção do Albergue, que recebe ainda um repasse de verba da Prefeitura. Mas o maior montante de dinheiro vem mesmo da ONG Ação da Cidadania, que coordena o local.
20h50min: Na sala de revistas, começa a aglomeração: “Até vou embora, nem vou ficar mais no Albergue”, entra falando Vladenir, 22. “Ô povo feio!”, brinca Anderson. Em meio a conversas e brincadeiras dos demais, Vladenir e Anderson ensaiam uma chula. Eles estão reunidos com o restante dos albergados a pedido do supervisor Mário para resolver problemas internos, como a entrada de drogas, o roubo de materiais do Albergue e os pedidos constantes para saídas à noite. Quando estão todos presentes, Mário começa seu discurso: “Tá entrando coisas aqui que não podem entrar. O que vocês fazem daqui pra lá” – e estende o braço na direção da rua – “não me interessa. Mas aqui, vocês querendo ou não, eu sou a mãezona de vocês. Tô pedindo de coração: não tragam bebida, drogas, armas aqui para dentro. Cuidem, porque aqui a casa é de vocês”.
Mesmo com a revista, a segurança frequentemente é burlada de várias maneiras. Arremessar drogas pelo muro dos fundos é uma delas. Por isso, deve ser construída, até o final do ano, uma guarita para vigilância no local. Também foi instituída uma revista na saída para evitar furto de material do Albergue.
“Se é que a gente representa alguma coisa pra vocês, colaborem. Podem me chamar de chinelão, de babá de marginal, como já me chamaram, eu não me importo. A gente tá aqui para ajudar vocês”. Clap! Clap! Clap! – nesse momento os aplausos ganham a sala. Mário faz ainda um último pedido: “Evitem pedir nas redondezas, pra vizinhança não se incomodar e pra não termos que mudar pra algum lugar longe”. As reclamações dos vizinhos são outro problema enfrentado pela coordenação do Albergue. Os moradores não gostam da ideia de ter uma casa que abriga ‘viciados e marginais’ tão perto deles.
Mário, 49, pensa diferente. E encontra consonância no pensamento dos demais funcionários da Casa: é preciso dar algum apoio a essas pessoas. E tratá-las de forma digna. “Eu chamo todos de senhor ou senhora”, afirma Mário. De estatura baixa e porte físico não muito atlético, é conquistando o respeito dos albergados que consegue manter a ordem. Um dos porteiros do Albergue, Luiz Roberto, 47, explica que, para conseguir a disciplina interna, eles não podem utilizar a força: “Tem que trabalhar com a cabeça. Porque muitas das coisas que contam, a gente sabe que é mentira, mas tem que entrar na ilusão deles”. Funcionário do Albergue desde que iniciou as atividades em setembro de 2010, Luiz Roberto conta que o trabalho ali mudou sua visão de mundo: “Antes eu olhava só para o meu umbigo. O que a gente faz aqui é pouco, mas é um auxílio para eles e é gratificante poder ajudar ao próximo”, explica.
22h35min: O prédio do Albergue, onde antigamente funcionou um hotel, até parece um labirinto. Seguindo o corredor principal do primeiro andar, há uma entrada à direita, que desemboca em outro corredor, bem menor. Ali fica a porta para a cozinha. Em frente, o refeitório e duas escadas. A da esquerda, de cimento, é o acesso ao pátio. A da direita é mais alta, de ferro. Subindo por ela, chega-se a um terraço e à porta da sala de televisão. Esses são os principais espaços de socialização das pessoas que passam pela Casa.
A gurizada reunida não se importa com o jogo transmitido pela TV, já que não é da dupla Grenal. Começam umas provocações que viram tumulto, tudo sendo observado por Jader, que não interfere e deixa eles mesmos se entenderem. Cristiano, sentado em um canto, vê a movimentação e apenas ri. Com comportamento semelhante ao de um autista, muitos dos aspectos de sua vida são um mistério, ninguém sabe de onde ele veio ou se tem família. Convencer Cristiano a tomar banho é sempre uma tarefa difícil, mas da qual se encarregam os próprios companheiros de quarto.
Quando a monitora Cida, 46, aparece na porta, um dos meninos convida: “vamos cantar com a gente”, e entoa: “ ó meu amor, não fique triste, saudade existe para quem sabe ter”. Cida ri e se coloca em pose de observação, também precisa estar atenta a todos os momentos. Apesar do clima descontraído, o lugar parece um caldeirão prestes a explodir.
23h: É finalmente hora do silêncio. As únicas movimentações são na sala de recepção e em alguns quartos da hospedagem solidária. No mais, o Albergue dorme. A partir dessa hora, até as 6h da manhã, o monitor e o segurança responsáveis pelo dia fazem ronda nos corredores e entre os quartos.
Contrariando as regras do Albergue, aquela noite estava agitada. Pouco após a meia-noite, o clima esquenta no segundo andar. Os meninos do quarto 210 prometem matar os do quarto 212. Tudo começou com o furto de uma bicicleta, que foi trocada por crack. A vontade de vingança gerou tumulto. Para contornar a situação, Jader permanece no quarto até as coisas acalmarem. É como se existissem duas facções em conflitos constantes, e, para evitar agressões físicas entre elas, o principal trunfo da direção é trocá-los de quarto. Nesse caso, um dos grupos foi mandado para o primeiro andar.
3h: Rogério já está saindo para trabalhar. No mural da sala de direção há uma lista com os horários em que alguns albergados precisam acordar. Nisso eles têm regalia: os monitores vão até o quarto chamá-los para que não percam a hora do serviço.
6h: Diversas pessoas já estão saindo para trabalhar. Várias delas sem café, que só começa a ser servido às 7h da manhã, horário em que Flávia, 27, “a tia do café”, chega para a comida. Dois pães com margarina e uma xícara de café com leite ou achocolatado fazem parte do cardápio.
8h35min: Depois do café da manhã, os últimos albergados vão encaminhando a sua saída. “Eu saio, olho pros dois lados…e agora, pra onde que eu vou?”, comenta com certa melancolia Jonatas, um dos garotos da geração mais nova.
Procurar algo para fazer, visitar algum parente ou amigo, arranjar serviço ou até carro para cuidar: é a hora de cada um seguir seu rumo. É nesta hora que a equipe do plantão senta e atualiza a ata com todos os acontecimentos da noite, uma forma de registrar tudo o que ocorre entre as paredes da Casa. Aquela noite, foram 43 pessoas no albergue e 9 na hospedagem solidária. Pessoas que, às vezes, não são notadas do lado de fora e que ficam agradecidas quando alguém lhes dá atenção. As portas do discreto prédio marrom novamente se abrirão para oferecer algum conforto a pessoas que, muitas vezes invisíveis lá fora, dentro do Albergue são os personagens principais.
ATUALIZAÇÃO: o Albergue Municipal de Santa Maria descrito na reportagem não existe mais. Agora, instituição semelhante com o nome de “Casa de Passagem” está situada na Rua Sete de Setembro, não muito distante do antigo endereço. (informações do leitor Mario Vieira)
AVENIDA RIO BRANCO, NÚMERO 126, pelo viés das colaboradoras Larissa Drabeski e Mariana Cervi Soares (texto e fotos).