Há poucos dias, em matéria de um jornal local algo chamava atenção. Na matéria, sobre a greve docente, abriu-se espaço para a opinião de um estudante, que se colocou como contrário a greve. A declaração deste estudante era, basicamente, que os estudantes não queriam greve; que o semestre já se encaminhava pro final e a greve dificultaria este período; que sabia que o que os professores pediam com sua greve era justo, mas que quem saia prejudicado eram os estudantes.
Dentre todas as possibilidades de desconstrução de tal colocação, fiquemos com a que fará esta desconstrução dentro do campo discursivo, ou seja, a contradição colocada entre o saber da justeza da greve e a frase seguinte, iniciada com um breve e emblemático “mas”.
De alguma forma o Brasil – ou, melhor dizendo, o brasileiro – se construiu como um povo pacífico. Alguns buscam explicação para tanto em uma ausência de conflitos bélicos dentro do território nacional depois do fim da Guerra do Paraguai (1864-1870). Mesmo que o argumento seja pouco fundamentado, o fato é que esta “tradição” – se é que podemos chamar assim – trouxe vantagens e desvantagens.
Entre as vantagens está a cordialidade e a hospitalidade, reconhecida, por exemplo, por comerciantes, empresários e turistas do Brasil e de fora dele. Este reconhecimento trouxe investimento e crescimento (contraditórios, diga-se, por mais que passemos ao largo deste tema neste momento).
Entre as desvantagens estão a apatia para debates mais profundos (o debate político de fundo ou a importância das greves, por exemplo) e a conivência com os mais diferentes ataques às riquezas brasileiras – sejam elas contadas em dinheiro (desde a exploração portuguesa até os escândalos políticos atuais) ou em vidas (desde os assassinatos de cidadãos que se colocavam contra as elites das mais diversas áreas até as mortes nas filas dos hospitais).
E é essa mistura de características que vai criar, muitas vezes, verdadeiras “acrobacias discursivas”. Se, por um lado, é necessário que mantenhamos nossa postura compreensiva, muitas vezes não desejamos (nós, os brasileiros) aquilo que temos que, de uma forma ou de outra, aceitar para manter a cordialidade afiada. Aí passaremos de uma opinião a outra em uma frase, tentando equilibrar a cordialidade e a ideia que se deseja passar.
É assim que uma frase de um entrevistado pode (e até deve, pela cordialidade) começar com uma opinião e terminar com outra muito diferente. Neste caso é como se o sujeito, que enuncia tal frase, permanecesse “entre a cruz e a espada” por conta própria. Num primeiro momento diz-se aquilo que se convém dizer pelas aparências, pela tradição de dizê-lo. Só depois, com o acréscimo, normalmente, de uma conjunção adversativa se dirá aquilo que se deseja dizer. Diz-se então: “sabemos que o caso é grave, mas (porém/todavia/contudo/entretanto…) não podemos concordar com essa posição”.
Neste caso o que importa, por mais que fique para lá da conjunção, é a segunda parte da frase que vem realmente dispor as ideias do sujeito.
Contudo, para além do sujeito há muito mais. Há construções históricas (como essa tradição da cordialidade, por exemplo); há escolhas que são, acima de tudo, ideológicas; há vontade e apagamento ideológico.
Para além disso, das conjunções diárias que interpõe aquilo que é dito por tradição e aquilo que é dito por desejo do sujeito (interpelado, sempre, pela ideologia), está o saber. Este quesito, bastante recorrente nas páginas (e também nos minutos da TV e do rádio) de opinião dos jornais – sejam elas editoriais, de colunistas ou entrevistados – serão categóricas ao dizer que, sim, sabem dos problemas da educação (da violência/da desigualdade social/da saúde/etc.)… e logo virá a conjunção adversativa, como já dissemos.
É necessário, portanto, desconstruir a ideia de que o sujeito que se coloca nessa posição “sabe” algo sobre aquilo. Longe disso, vai ser dentro da cordialidade, da conivência que vai se relembrar a questão como “sabida”. No entanto ela não está, nem de longe, verdadeiramente compreendida. Pelo contrário, ela aparece naquilo que é dito como forma do sujeito se redimir daquilo que dirá logo na sequência, de parecer menos ofensivo. É a tentativa, por fim, de parecer brando, reflexivo, quando, na maioria das vezes parte-se do pensamento proposto – como dito – após a conjunção adversativa. Só assim, desconstruindo estes instrumentos discursivos já tão gastos para motivar o conservadorismo contra os movimentos sociais, as greves, os levantes populares, que poderemos superá-los.
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No caso da greve dos professores das universidades federais – de onde tiramos nossa primeira referência – cabe refletir sobre quanto tempo o estudante passa preocupado com a sua formação – para se sentir tão atacado por uma greve docente – e quanto passa preocupado na “educação” como entidade abstrata, ou seja como forma de transformação da sociedade voltada para a emancipação dos indivíduos. É a diferença entre estes dois pontos que distanciam o saber do compreender.
ENTRE O SABER E O COMPREENDER, pelo viés do colaborador Jordão Vieira*.
Jordão mantém o blogue “Ma non troppo“.
Olá, amigos do viés
Não resisto a fazer uma crítica pontual a essa postagem. O tema da greve está acendendo os ânimos essa semana, mas eu quero antes chamar atenção para um tópico de filosofia da ação.
Sempre que se procura analisar as coisas que a gente diz sobre o que nós e os outros fazemos, é preciso distinguir claramente dois aspectos da ação, a saber, as motivações da ação e o resultado próprio da ação. Nesse sentido eu posso criticar tanto as motivações de alguém quanto o resultado prático que elas alcançam.
Se alguém diz que as reivindicações dos professores são uma motivação justa para agir, isso é plenamente compatível com criticar a ação dos professores, a greve. Ora, mesmo que as reivindicações sejam justas, a greve pode ser injusta! Não há nenhum pingo de contradição nessa frase.
É um clichê em filosofia mas é uma verdade: a linguagem engana, às vezes parece que estamos diante de contradições, mas não estamos. Talvez simplesmente nós não estejamos vendo claramente as coisas.