A DIVINA PRAÇA DE DANTE

tempo é para quem sabe seu valor.

“Pois perder tempo desagrada mais a quem mais conhece o seu valor”. Dante Alighieri, il sommo poeta italiano, é autor dessas palavras, escritas séculos antes do nosso. Antes até mesmo do surgimento de uma espécie de pressa, correria e euforia do tempo, sintomáticas do que vivemos. A pressa, na Itália renascentista de Dante, nada tem a ver com a pressa de hoje. Mas a calma, ah a calma!, das praças e das tardes permanece em uma espécie de transe histórico – semelhantes ao tempo de Dante.

Ali, residindo no meio do furor comercial do centro de uma cidade, com tons de colônia italiana e lembrando os pequenos centros gaúchos com praças simplórias, repletas de senhores, pássaros e convivência pacífica, está a Praça Dante Alighieri, em meio aos transeuntes, apressados, com sacolas imensas de compras, buzinas de carros, cotovelos atravessando-se nas ruas que seguem o centro comercial de uma das principais cidades da serra gaúcha. Caxias do Sul é a terceira maior cidade do Rio Grande do Sul, fica na serra e é conhecida pela colonização italiana. Parte do comércio e do turismo se beneficia do “sobrenome” italiano, vendendo uma porção de produtos que lembram “uva”, “nono e nona”, “massas”, “Fuliculi e Fulicula”.

O centro comercial citado acima é um furor comercial, recheado de pessoas incansáveis de vender e de comprar. Alguns senhores rodeiam a rua principal, Júlio de Castilhos, com placas grandes pelo corpo, formando espécies de tabuletas: “Compro Ouro – tratar com Sr. Tal”. Diversos panfletos são entregues entre a Rua Júlio e a Praça Dante: churrascarias, negócios, salões de beleza, farmácias, cartões de telefone e chips, cartomante (uma, inclusive, avisa no próprio panfleto que existe outra, impostora, entregando panfletos e dizendo-se passar por ela, a Mãe Lolita: “não confunda Mãe Lolita com outras videntes de panfleto parecido na cidade”).

Ao todo, são quatro ruas que cortam a Praça Dante: a Rua Júlio de Castilhos, horizontal à praça e paralela a Sinimbu e, verticalmente, as ruas Dr. Montaury e Marquês do Herval. Muitos prédios são antigos, permanecendo com as antigas fachadas. Dois deles foram remotos cinemas de rua, que acabaram virando lojas de eletrodomésticos. Nas ruas que cobrem os quatro cantos da Praça, prédios residenciais antigos, o famoso Clube Juvenil, a Catedral Diocesana, com escadarias laterais amplas. Um pequeno ponto acobreado no chão, no lado da Praça em que passa a Rua Marquês do Herval, indica o Marco Zero da cidade, quase despercebido em meio aos pombos.

No meio da praça, uma barraca de tapioca (além dos tradicionais churros, pipoca e algodão doce). De longe, escuta-se o som de flauta boliviana, mas sem bolivianos. Agora são apenas CDs, rodando com o auxílio de grandes caixas de som, sem a necessidade de alguém tocando flauta presencialmente.

A Praça Dante Alighieri provém dos tempos da colônia italiana, lá pelos anos de 1875. O que antes era um espaço para pequenos chalés deu lugar, aos poucos, com o processo de urbanização, a um local de confraternização da comunidade: surgiram banquinhas de comércio, quitandas e até, vez ou outra, espaço para o circo visitar a cidade. Em homenagem ao poeta italiano que empresta seu nome à praça, um busto alto, esculpida na forma da face de Dante e com os dizeres abaixo, em uma placa: “ I caxiense per onorare l’altissimo poeta”.

o busto de dante, homenagem na praça.
o busto de dante, homenagem na praça.

O busto que o homenageia é hoje uma pista de pouso para pombos e pombas de todos os tamanhos. E por julgar a capacidade intestinal desses pássaros, tanto o busto quanto os bancos da praça permanecem pintados de branco. Em alguns, não é nem possível sentar. Aliás, essa tem sido a polêmica do momento com relação à praça: os habitantes de Caxias do Sul respondem aos questionamentos do principal jornal da cidade sobre se as pombas devem sair ou se devem permanecer na praça. Apesar das reclamações constantes dos dejetos, quase 90% dos que responderam ao questionamento permanece favorável a permanência das aves. O lado da rua Dr. Montaury é o mais afetado, inclusive, conjuntamente com os bancos da Rua Marquês do Herval, que mantém um reduto de senhores que são contrários às pombas. Um deles, inclusive, manifestou-se no jornal dizendo: “quem for a favor das pombas, que leve elas para casa!”.

De acordo com o jornal, a espécie que existe em Caxias é a Columbia livia, também conhecida como pombo-doméstico. O jornal também informa aos moradores que os bichos se alimentam de frutas e sementes. E ainda completa: “adaptados ao meio urbano, são oportunistas ao se alimentar do que o homem oferece”. Os contrários a permanência das pombas exigem da Secretaria de Saúde uma solução: quem sabe uma limpeza nos bancos? Os dejetos das pombas podem causar doenças em pessoas com baixa imunidade, podendo, inclusive, provocar meningite (tudo isso segundo o que está no jornal). Biólogos da cidade reforçam: pensar em formas de acabar com as pombas (como a criação de falcões, tinta repelente nos bancos ou barreiras) pode ser considerado crime, enquanto os bichinhos não forem avaliados como nocivos à população.

Porém, não são todos os que desprezam a presença das aves: as crianças são as entusiastas das pombas da Praça Dante. Em uma destas tardes, uma delas aguardava, sorridente, um senhor dar migalhas de pão a milhares de pombos, que formavam exatos aglomerados de penas e de burburinhos (prrrr, prrrrrrr). A menina observava o conglomerado se formar e partia na direção dele, afugentando os pombos do seu lanche, fazendo algumas penas voarem, sua risada ecoar, e os ‘prrrrr’ aumentarem ainda mais. O senhor parecia ligeiramente indiferente, e, sem hesitar, continuava a partilhar o pão nas próprias mãos e a atirá-lo aos pombos que, após o susto, retornavam ao mesmo local, a fim de mais umas bicadinhas. A menina então, ligeiramente sádica, aguardava tudo recomeçar, para ela mesma também reiniciar a sua corrida em direção aos pássaros, provocando outra arrevoada barulhenta, com bater firme de asas.

As pedras de origem portuguesa que enfeitam o calçamento são originais. Formam desenhos de uva e de parreira. Porém, os monumentos que cercam a praça foram sendo acoplados ao longo das décadas. Nem mesmo o próprio nome foi possível manter: Dante, durante o período da II Guerra Mundial, em que a ojeriza e o ódio aos italianos e alemães era comum no Brasil, passou a se chamar Praça Rui Barbosa – um político. Praças, ruas e prédios com nomes de político são mais comuns, claro. Porém, a administração municipal, só na década de 90, retomou o antigo nome italiano da Praça, mantendo a antiga homenagem ao poeta, com busto, nome e tudo mais.

as migalhas, a menina, o senhor e as pombas.
as migalhas, a menina, o senhor e as pombas.

Um grupo de moradores de rua agrupava-se a fim de espantar o frio. Quatro deles sentados no banco de madeira, enquanto os demais, de pé ou sentados no chão, permaneciam em uma roda. A conversa era alta, animada, sem pudores. Sorridentes, esfregavam as mãos e riam de um integrante que espirrava sem parar. O grupo, anteriormente animado, parou de sorrir ao se deparar com a presença de dois policiais da Guarda Municipal. Os dois chegaram perto do grupo e fizeram sinais com as mãos para que o mesmo dispersasse e, principalmente, saísse da praça. Um integrante do grupo tentou peitar os policiais, mas foi desencorajado pelos demais. “tâmo indo, tâmo indo pra não se incomodar, né”. Os policiais reforçam o pedido ligeiramente agressivo, insinuando com as mãos o “caminho para fora” da praça. O grupo então se levanta e, ainda fazendo piada e sorrindo, retira-se coletivamente do banco e da praça naquela tarde. Um deles ainda diz: “Tenho até vergonha…”.

Do outro lado, próximos à Catedral, uma dupla de trabalhadores, vestidos com um traje laranja bem forte, passava uma segunda mão de tinta em um dos prédios que cercam a praça. O sol quase que não existia mais na Praça, o trabalho continuava. Equilibravam o peso sobre o andaime de madeira e sorriam. O prédio ia ficando mais escuro. Um senhor passa, com pôster do Internacional embaixo do braço. Não vende muitos. A vitória do Internacional e o título de Campeão Gaúcho de 2012 foi em cima do Caxias, o time grená da cidade. Apesar dos colorados, a empatia com o Caxias é maior, e os pôsteres não fazem muito sucesso. Outro senhor passa com um carrinho de sorvete – apesar dos quase cinco graus. As crianças adoram e pedem mais um pouco da buzina do carrinho – buzina que desperta um senhor da sua soneca no banco, com o jornal nas mãos.

E as praças são redutos de senhores. De rodinhas deles. São sempre conversadores, sorridentes. Comentam o tempo, o movimento da rua, o jogo do Caxias no dia anterior, a Mega Sena, os jornais e o sangue nos jornais. Jogam xadrez ou atiram pão aos pombos. Apesar dos grupos, alguns são exemplos solitários. Acompanhados de um radinho de pilha ou de um jornal do dia, ou mesmo apenas de si próprios, tirando um ligeiro cochilo no banco à luz do sol ou apenas observando a paisagem.  Um senhor, solitário e em silêncio, observa o grupo de moradores de rua que está saindo da Praça naquele momento. Come um pastel frito de carne e os observa devagar. Comenta que não está exatamente confortável na cidade, não é daqui, entende italiano, mas é português. Tem filhos que moram na serra, não está “morando” em lugar nenhum. Apenas transita pelas cidades dos filhos e, agora, quer ir para Florianópolis. É aí que confessa estar esperando que uma de suas namoradas se pronuncie. Vai levar uma delas com ele. Explica, ponderadamente, o motivo pelo qual cada uma delas ainda não aceitou definitivamente que iria: uma, sua maior paixão, é uma linda italiana, com tatuagem na perna. De acordo com ele, uma linda italiana – mas que some, de repente. A outra, mais “recheadinha”, tem um filho e é uma alegria só – mas tem um filho. A terceira, triste, abandonada pelo amante (que era casado com outra e tinha dois filhos) não consegue se decidir se vai ou se fica. Após um acidente com a mulher oficial, e do retorno do amante agora como oficial, com a esperança de que ela ajudasse a criar seus dois filhos, ela não sabe mesmo se vai embora. “Sumiu para sempre…”.

o chão de pombos.

Os passos são apressados. Até mesmo senhores de bengala conseguem se movimentar com rapidez. Casais de mãos dadas. Crianças com uniforme de escola. Escoteiros. Moradores de rua em grupo, ou solitários, nos bancos. Os pombos, em grupo ou solitários, nos bancos. As caixas de som. Os vendedores e as cartomantes. Os senhores. Carros, atravessando as quatro ruas. Pois o tempo perdido, a quem reconhece seu valor, nas tardes de praça, nas conversas de praça, é um tempo suprimido por outro: pelo tempo da compra, da pressa, do aproveitamento. E, tentando aproveitar ao máximo o tempo para as compras, para os shoppings, para o estacionamento das lojas, para os cartões de crédito, para os restaurantes de comida rápida – todo o tempo economizado e diluído nas tarefas de lazer modernas – é um tempo que ficou parado nas praças, nos senhores, nos resquícios. O valioso tempo para quem sabe que não o gasta em vão.

A DIVINA PRAÇA DE DANTE, pelo viés de Nathália Costa
nathaliacosta@revistaovies.com

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