O silêncio. O que é isso? Qual a implicação no cotidiano de milhões de pessoas? Esta é a aventura que iremos percorrer. A reportagem tenta desvendar o submundo do silêncio. É uma tentativa de oferecer aos leitores uma nova perspectiva à ausência de sons.
A descoberta dos diversos significados atribuídos ao silêncio possibilita entender melhor os impactos que a falta de sons causa nos indivíduos e na sociedade. É uma aventura que vai nos levar por um passado repleto de jogos interessantes.
A biblioteca São 17h de um dia chuvoso. Ao entrar e descer as escadas para o subsolo da Biblioteca Central da UFSM, lê-se a palavra “silêncio”, escrita em letras maiúsculas numa folha de papel envelhecida pelo tempo que está colada na parede. A palavra silêncio expressa a conduta de como se comportar no ambiente de leitura.
O barulho das pessoas descendo as escadas e a digitação do computador, somado à conversa discreta dos frequentadores da biblioteca, dão a impressão de que o silêncio talvez seja apenas um papel colado na parede e não uma regra absoluta. Sem mencionar o papo descontraído entre os funcionários da própria biblioteca.
Nem sempre o hábito de leitura esteve ligado ao silêncio, como nos confirma Alberto Manguel, no livro “Uma história da Leitura”, no qual descreve de maneira fascinante as várias etapas dessa prática.
Na obra, o autor descreve a história de São Ambrósio narrada por Santo Agostinho. São Ambrósio foi o primeiro homem a ler em silêncio ou, pelo menos, é o primeiro com autenticidade histórica.
Nas palavras de Agostinho: “Quando ele lia, seus olhos buscavam as páginas e seu coração buscava o sentido… quando chegávamos para visitá-lo nós o encontrávamos em silêncio, pois jamais lia em voz alta”. É nesse momento que se concretiza uma revolução nos hábitos ligados ao exercício da leitura. Tal prática, desde os seus primórdios, fazia-se em voz alta mesmo em seus templos: as bibliotecas.
A partir de Santo Agostinho, as palavras faladas não necessitavam mais acompanhar a leitura. A leitura silenciosa passou a estabelecer uma ligação sem restrições entre leitor e obra.
No sécilo IX, através dos padres copistas dos conventos, surgiram os primeiros regulamentos sobre o silêncio. Até então, eles liam em voz alta o texto que estavam copiando.
Portanto, o silêncio não é o ‘nada’ como podemos pensar em um primeiro momento, mas um espaço cheio de significações. Podemos nos aventurar a encarar o silêncio como uma produção humana que nos revela como o homem atua na sociedade.
O hospital São exatamente 15h de uma quinta-feira ensolarada. O pronto-atendimento do Hospital Universitário de Santa Maria não está muito cheio. Na recepção, a TV exibe uma série de comerciais. Cerca de uma dezena de pessoas estão à espera de atendimento ou à espera de algum parente que precise de atendimento médico.
O clima de tranquilidade destoa daquele esperado em um setor de emergência. As pessoas conversam animadamente, mesmo com seus problemas de saúde. Há um burburinho entrecortado pela entrada e pela saída de novos pacientes e médicos.
Num dos bancos, na parte externa do pronto-atendimento, está a senhora Celi Oliveira Alexandre, que veio a Santa Maria para fazer os curativos da mão machucada num acidente doméstico. Ela caiu dentro de casa. O vilão neste caso foi o tapete. O acidente ocorreu há um mês, o que obrigou vir todas as semanas à cidade para cuidar da fratura.
Tudo estaria bem para Celi, não fossem duas coisas. A primeira é o engano cometido pela Secretaria de Saúde de São Francisco de Assis, que marcou sua consulta para aquela quinta-feira, quando, na verdade, seria para o dia seguinte. O segundo percalço é a duração da jornada entre São Francisco de Assis e Santa Maria. Uma viagem de três horas de ida e mais três de volta, sem contar que o ônibus que trás Celi só sai da cidade depois que todos os demais passageiros (principalmente pacientes) já consultaram, isto é, no final da tarde.
O que faz Celi acordar antes das 5h da madrugada e permanecer até o final da tarde esperando voltar para casa? O que faz com que ela continue vindo todas as semanas a Santa Maria, além do desejo de reestabelecer sua saúde e a crença no poder da medicina para tratar e curar suas doenças?
Não estamos questionando que a medicina não possa cuidar dos problemas de saúde da população, mas que as pessoas permaneçam horas a fio sem reclamar, numa silenciosa e cansativa espera até o seu atendimento. Ou, no caso de Celi, de voltar para casa.
O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera, simplesmente, pela consciência ou pela ideologia, mas no corpo e com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. Essa é uma das ideias fundamentais com que trabalha Foucault [Michel], no livro ‘A Microfísica do Poder’.
O silêncio dos pacientes seria a representação de sua subordinação não só ao conhecimento médico, mas também à engrenagem no Estado. Foi um dos muitos métodos que a medicina criou para estabelecer-se e legitimar sua eficácia perante a sociedade.
A partir do século XVIII, a medicina começou a elaborar um vocabulário para tratar das questões de saúde, já que era uma área recente que necessitava de uma série de procedimentos ‘científicos’ para sustentar sua prática.
A igreja As igrejas são um bom exemplo de como se criou a instituição do silêncio, e de como ela modificou a relação do homem moderno com o seu mundo. Nesses lugares, podemos entender como a aparente ausência de sons fundou um novo olhar sobre a realidade.
O silêncio não é só privilegio dos hospitais e bibliotecas, mas também das igrejas, principalmente as católicas. Nas práticas do Cristianismo, está a intenção de que a ausência de ruídos possa organizar uma série de práticas para a reflexão.
Para o padre Bonini, da Catedral de Santa Maria, o silêncio é o momento da reflexão, da introspecção, por isso a sua necessidade dentro da Igreja Católica. O silêncio é a interiorização para dar voz à consciência. “É o momento de escutar a voz de Deus”, afirma Bonini. O silêncio é uma regra para que os seus participantes pudessem buscar o sentido para suas vidas e entendessem a si próprios através do olhar interior.
Os padres anacoretas são um belo exemplo disso. Eles pertencem a uma Ordem da Igreja Católica, criada no Egito Antigo, onde os sacerdotes buscavam o refúgio e a reclusão em monastérios, vivendo solitariamente no deserto. Os anacoretas dedicavam-se às rações a fim de alcançar um estado de pureza da alma através da contemplação. São esses sacerdotes os primeiros cristãos a buscar o isolamento social para a salvação da alma.
Segundo o padre Bonini, Santo Antão é considerado o fundador do monaquismo cristão (vida em reclusão) e o primeiro anacoreta. Santo Antão, cristão fervoroso, com cerca e 20 anos tomou o Evangelho ao pé da letra e distribuiu todos os seus bens aos pobres, partindo em seguida para viver no deserto. O monaquismo cristão nasceu e adotou-se o silêncio como instrumento fundamental para o seu exercício.
A prática do silêncio não está somente na base do Cristianismo, mas também em diversas outras religiões. No Budismo temos o que se chama de ‘Nobre Caminho Óctuplo’, as oito práticas necessárias para o exercício dessa religião.
O sexto mandamento refere-se à prática de autodisciplina para obter a quietude e atenção da mente, para evitar estados de mente maléficos e desenvolver estados de mente sãos. Nesse sentido, temos a prática da meditação, um dos fundamentos do Budismo.
A meditação tem o objetivo de libertar a mente das emoções perturbadoras, buscando uma visão pura dos fenômenos. E dessa maneira expressar amor e compaixão imparciais por todos os seres.
Da próxima vez que conseguir (sabemos que não será difícil) permanecer num refúgio sem ruídos, pense que o significado do silêncio não é o mesmo para distintos lugares. Na biblioteca, no hospital, na igreja: uma sugestão, uma conquista e uma prática.
SILÊNCIO, POR FAVOR, pelo viés do colaborador Carlos Orellana*
*Carlos Orellana é jornalista formado pela Universidade Federal de Santa Maria e é Pós-Graduando em Comunicação Midiática na mesma instituição.
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