Há três anos que a Páscoa no interior de Ibarama não é tradicional como fora nos trinta anos anteriores. Imersa na região Centro Serra do Rio Grande do Sul, a população de pouco mais de 4 mil habitantes – a maioria descendentes de imigrantes italianos – sobrevive da agricultura familiar, cujo principal produto é o tabaco. De olhos atentos à estrada, que orienta a vida de todos e é de onde chegam as principais novidades, sempre, os moradores atucanam-se ao tentar imaginar o que dezenas de perfis atípicos procuram na Cascatinha em plena manhã do feriado de Paixão de Cristo. As respostas, no entanto, só serão apuradas à tarde; por hora, o importante é colher macelas e preparar um banquete italiano com carne de carpas, piavas e jundiás para receber a família e amigos na sexta-feira santa. As dúvidas permanecem até depois da hora da missa, quando enfim há tempo para os ibaramenses comentarem sobre o acontecimento.
O movimento de ônibus e carros particulares denuncia a peregrinação para a Linha Oito. Os diferentes estilos de barbas e cabelos caminham a passo trôpego na estrada de chão batido desfilando calças justas, largas, blazers coloridos, listrados ou xadrez, camisetas de bandas, e a variedade de visuais mais ou menos convencionais compõe um panorama de diversidade que só o rock’n’roll, a psicodelia e os coletivos de arte independente podem agregar. Seria outro movimento messiânico? A barbárie impetrada na década de 1930 aos monges barbudos, no entanto, desencorajaria tal ação no século XXI.
Na realidade, tudo era bem diferente. Os únicos momentos que lembraram a Via Crúcis foram protagonizados pelos organizadores que ergueram a estrutura de palco, a rádio camarim e trabalharam dioturnamente na cozinha, no bar e na limpeza dos banheiros. Os instrumentos musicais e apetrechos para montagem do camping dos cerca de 350 participantes nada tinham a ver com cruzes. Tampouco o 3º Pira Rural Festival de Música poderia ser comparado ao calvário de Jesus Cristo. O que se percebeu nos três dias de evento foram os ouvidos atentos às músicas, a troca de ideias ao redor da fogueira, momentos de paz e tranquilidade na natureza, a gentileza e o respeito que marcaram o comportamento dos visitantes durante os três dias que durou a terceira edição do festival.
Em linhas gerais, o Pira Rural é um festival de música independente realizado na já famigerada Cascatinha de Ibarama, conhecida por ter sediado, além das edições anteriores do Pira Rural, as quatro primeiras edições de outro festival local, o Festmalta. Se buscássemos, entretanto, fazer uma descrição objetiva e atentássemos somente ao que é mais visível e aparentemente elementar para o Pira, talvez deixássemos de apreciar uma parte constituinte e indispensável do festival: os detalhes, o toque caseiro e artesanal que serviram de ornamento, mas, principalmente, ajudaram a constituir a essência do Pira Rural.
As bebidas e os alimentos à venda no espaço, por exemplo, eram em sua grande maioria produzidos por agricultores locais, cozinhados sob o comando atento da proprietária Betty. Que, justiça seja feita, não só coordenava a cozinha mas também acordava às 6 da manhã para colocar a mão na massa. A decoração, que remetia ao campo e à cultura colonial e familiar da região, assim como a estrutura básica do evento – o palco, o camarim, a banquinha da cachaça e até parte da fiação elétrica – foi toda feita e construída pelos organizadores do festival.
As camisetas vestidas pelos anfitriões do Pira Rural – em suma, os músicos da banda local Xispa Divina, familiares e amigos -, além do logotipo oficial do evento, traziam estampadas às costas palavras que indicavam sua condição durante os dias de festival: estavam todos “Na Lida”. As próprias camisetas, aliás, foram feitas pela estilista Liara de Oliveira, que além de ajudar a organizar o evento e a cuidar da cozinha, foi a responsável pela confecção dos vistosos chapéus de duende que, meses atrás, já serviam de meio de divulgação do festival que estava por vir.
Ainda assim, a organização do Pira Rural admite que a terceira edição do festival foi a maior já realizada e surpreendeu a mais otimista das previsões de público. A estimativa é que a cidade de barracas distribuída ao longo do terreno, nas proximidades da cascata ou à sombra das árvores tenha comportado cerca de 350 pessoas, que vieram em excursões das cidades de Porto Alegre, Caxias do Sul, Pelotas, Santa Maria e Passo Fundo ou em empreitadas individuais de locais ainda mais distantes. Ao longo dos três dias, todos puderam prestigiar as apresentações ocorridas no Palco das Abóboras, participar das oficinas e da trilha ecológica incluída na programação.
Além da possibilidade de conhecer o trabalho concretizado e de alto nível de diversas bandas independentes, o festival proporcionou trocas entre os grupos organizados e a divulgação de trabalhos autorais, muitos dos quais estavam à venda em sua versão física por preços módicos na banquinha mantida pelo Macondo Coletivo, de Santa Maria, e pelo Coletivo Manifestasol, de Caxias do Sul.
Embora possivelmente parte do público sequer tenha percebido, a quantidade de pessoas presentes superou as expectativas dos organizadores e provocou algumas situações de apuros, ou quase isso. “O que foi comprado de comida para três dias foi comido em um”, contou Betty na tarde de sábado, enquanto já calculava a quantidade de pães que seria necessária para a noite que se aproximava. Segundo Marcelo Machado, o Tuíto, tecladista da banda Xispa Divina, os preparativos para o Festival já vinham sendo realizados, aos poucos, desde o fim do ano passado, entre a organização das questões estruturais e a divulgação do evento.
Para deixar a chama acesa
A música da rádio camarim rolava no camping da Cascatinha quando Betty, Franco e Danusa Lazzari, proprietários do terreno e parte da organização do festival, pediram licença da lida para explicar a relação com a Cascatinha e a ideia de organizar um festival de música no interior da região Centro Serra, numa conversa realizada em cima de algumas pedras do arroio que corta a propriedade.
O Pira Rural não é o primeiro festival a acontecer na Cascatinha de Ibarama. O bonito local ganhou notoriedade nos círculos musicais e alternativos do estado com o Festmalta, festival que surgiu em 2007 como uma festa de comemoração do aniversário da banda local Flor de Malta, e teve suas três edições seguintes no mesmo lugar.
O primeiro Pira Rural aconteceu na Páscoa de 2010, depois do quarto Festmalta – a última edição realizada naquele local, devido ao fato de que a estrutura da Cascatinha não suportava mais o tamanho do festival. Segundo Marcelo Tuíto, ao perceberem que o Festmalta deixaria a Cascatinha, os integrantes da banda, amigos e familiares decidiram dar início a um novo festival, para que o lugar não deixasse de ser aproveitado.
Essa transição coincidiu com a aquisição do terreno pela professora de inglês Betty Lazzari, que é mãe de Danusa Lazzari, uma das organizadoras do festival, e de Franco Lazzari, guitarrista/vocalista da banda Xispa Divina, e agente indispensável ao Festival como anfitriã e chefe da movimentada cozinha. Betty conta que a aquisição do terreno foi uma boa oportunidade e que, a princípio, fez isso pensando nos filhos, Franco e Danusa. “Mas eu não sabia que era um lugar tão abençoado”, afirma.
Danusa possui formação em Turismo e Hotelaria, enquanto Franco é músico e vinicultor, focado também nas demais tarefas de âmbito rural. Franco planeja instalar uma adega no local, e Danusa vê a possibilidade de integração com outras propriedades rurais e da utilização do espaço para outras atividades – algo que, aliás, já vem acontecendo. Segundo Betty, além de levar seus alunos para acampar no final do ano no local, já aconteceram na Cascatinha cursos de reiki (filosofia científica baseada no aprofundamento da energia vital dos seres) e, frequentemente, o local é requisitado pela própria comunidade de Ibarama – como na ocasião em que os alunos da escola local subiram o rio realizando a sua limpeza e encerraram a jornada no local com um churrasco.
Esta relação com a comunidade é um ponto de convergência, não só entre os membros da família de sangue, mas também entre os membros da família maior que é a organização do festival. Segundo Marcelo Tuíto, “a Cascatinha pode ser um dos atores para mudar a realidade da comunidade, atuar junto com a comunidade para ajudar a cuidar do rio. Não adianta cuidar só da Cascatinha para baixo, temos que conscientizar de que é necessário cuidar de tudo”.
As características naturais e peculiares da Cascatinha não poderiam, de forma alguma, engendrar uma relação de propriedade convencional. Para um festival que se propõe a transformar e ressignificar relações de cultura, consumo e integração, nada mais justo que isso ocorra em um local que subverte, à sua maneira, o próprio conceito de propriedade privada. “São quatro anos que temos isso aqui com tudo aberto, e por que eu vou fechar um lugar em que o pessoal se criou indo e voltando, achando que era público, apesar de nunca ter sido? Não tem como fechar”, conta Betty. Franco concorda com a mãe, e explica o forte vínculo da comunidade local com o lugar. “Isso aqui é delicado, não é um lugar qualquer. O pessoal mais antigo de Ibarama tem paixão por isso daqui – eles vinham aqui tomar água, e dava para tomar essa água. Eles adoram vir aqui assar uma carne, não podemos botar um cadeado na entrada, entende? Temos uma área que não podemos cadear”, afirma.
O estreitamento das relações com os moradores de Ibarama é intensificado durante os dias de festa na Cascatinha. A relação com a vizinhança vem sendo estabelecida aos poucos, à medida que um festival de rock realizado justo no feriado de Páscoa vai recebendo a aceitação das famílias mais tradicionais. Mesmo que alguns olhem às avessas e que poucos procurem o lugar durante o Pira Rural, todos acabam integrados devido ao comércio de produtos coloniais vindos de todos os cantos do município. Queijos, salames, pães, conservas de pepinos e pimentões, além da carne e de todo o estoque de vinho e graspa são exemplos das relações de trabalho que foram fortalecidas pela preocupação do Pira Rural em dar retorno à comunidade por meio da aquisição de seus produtos. Por isso, como afirma Danusa, “o Pira Rural é um festival cultural não só na questão da música, mas também na questão da alimentação, dos valores, da relação com a natureza. Toda a estrutura é uma questão bem cultural, na alimentação principalmente, e faz com que pessoas que vêm das grandes cidades possam entrar em contato, conhecer e valorizar o que existe no interior”.
Apesar da conformidade entre Franco, Danusa e Betty na maior parte dos assuntos, quando a questão é a origem da paixão pela música e da atividade familiar pouco casual de ajudar a realizar um festival musical, existe certa divergência. “A mãe tem as loucuras dela”, ri Franco. Danusa e Betty afirmam que essa aproximação vem da própria amizade que existia entre os membros da banda Xispa Divina e os demais organizadores, sempre relacionada e próxima à música. “Eles trouxeram a gente para esse mundo também”, afirma Danusa, ao que Franco pondera: “elas já orbitavam o nosso planeta, só que ainda não tinham aterrissado”.
Se, no caso de Franco, Betty e Danusa, a origem familiar aponta para a relação com o campo, a afinidade com o meio rural já era há muito tempo uma unanimidade entre os amigos. “Nosso sonho é ser agricultor”, afirma Tuíto. “O Franco já é agricultor, o Samambaia [Tiago Maieron, baterista da Xispa Divina] também, aos poucos. Para mim, só falta me desvencilhar das minhas atividades, já tenho meu pedaço para fazer minha casa e ir para lá”. E aí está a origem do próprio nome do festival: “foi essa coisa de gostar do rural. Uma coisa que nós curtimos. E depois, de fazer a loucura que é organizar um festival, de pirar”.
Vinil, rurais e coloninhas
Muito da peculiaridade do ambiente do festival resultou da valorização dos detalhes, pequenos e relevantes como o uso corrente de expressões como “bom dia”, “com licença” e “por favor”. A culinária, a decoração, a rádio ao vivo que rodava discos de vinil e mesmo o cuidado prévio com a diminuição da quantidade de formigas no local nos dias que antecederam o festival foram exemplos de detalhes que fizeram a diferença no final.
No Pira Rural, os alimentos e bebidas eram vendidos em moeda própria: os Rurais (equivalentes aos reais) e as Coloninhas (equivalentes aos centavos). Ao desembolsar três rurais, por exemplo, era possível adquirir uma dose de graspa com mel ou uma tigela de caldinho de feijão. Conforme a organização, a finalidade era concentrar as transições em dinheiro em um único lugar, uma espécie de casa de câmbio, ao lado da copa, onde era possível trocar reais por “notas” de Rurais ou centavos por Coloninhas. Além disso, o equivalente geral da Cascatinha apresentava a evidente vantagem – breve, porém significativa – de não estar submetido aos desígnios da especulação financeira, da acumulação de capital ou do entesouramento, exceto para aqueles que pretendiam consumir grandes quantidades de graspa, absinto ou vinho sem precisar ir muito longe da Butique da Cana.
No intervalo entre as apresentações das bandas, a rádio ao vivo, controlada na maior parte do tempo por Gustavo Steiernagel, atendia a pedidos e alternava a programação musical – fossem faixas digitais executadas a partir de um notebook ou bolachões de vinil que rodavam diretamente da vitrola para o sistema de som – com entrevistas ao vivo, brincadeiras e até uma seção de achados e perdidos, acionada a cada vez que algum objeto era encontrado pelo acampamento ou sua falta fazia-se notar.
Em um momento no qual as organizações culturais independentes buscam espaço e delineiam-se novos paradigmas nas relações de produção e consumo cultural, o clima de afetividade despertado no Pira Rural foi um dos pontos positivos destacados pelos membros do Coletivo Manifestasol, de Caxias, um dos grupos organizados presentes no festival. A parceria com o coletivo da Serra – que, além das cinco bandas que subiram ao Palco das Abóboras, estava representado por oficineiros e artistas de outras áreas e chegou a Ibarama em um ônibus lotado – serve não só como forma de intercâmbio musical, mas também como troca de experiências, já que os caxienses também organizam um festival homônimo ao coletivo, o Manifestasol.
Para Breno Dallas, membro do coletivo caxiense e integrante das bandas Pindorália e Greek van Peixe, a principal vantagem de um festival como o Pira Rural é a imersão das pessoas em uma relação na qual a proximidade com a natureza serve como catalisadora. Marcelo Moojen, também membro do Manifestasol e guitarrista da banda Mindgarden, aponta a proximidade entre os participantes como uma das vantagens apresentadas pelos festivais pequenos, o que permite o estabelecimento de trocas e relações de afetividade.
Independentemente de se tratarem de festivais distantes do ambiente urbano ou não, Dinarte Paz, músico da banda Pindorália, acredita que a presença dos coletivos em festivais envolve a busca de novos espaços para uma cultura de questionamento. “Essa questão do independente é atravessada por uma questão social e política também, que é de questionamento da própria sociedade”, afirma. “A partir do momento em que temos que reinventar a mídia para que ela passe a nos abranger, o próprio festival passa a ser uma mudança da lógica do mercado. Essa é a proposta do cenário independente: reinventar, questionar”.
Junto a essa preocupação com o questionamento, a transformação e a ressignificação de valores, a qual converge com as pretensões e os planos do Pira Rural para o futuro da Cascatinha e de sua relação com a comunidade local, Breno reflete sobre a importância de uma maior articulação entre as diferentes áreas que circundam e se relacionam com a cultura. “Quando focamos em uma pauta, geralmente, outras ficam para trás e vão se perdendo no caminho, mas acho que cada setor deve desenvolver sua área. Constituir uma rede é um trabalho feito a várias mãos, que cada mão trabalhe um pouquinho no seu nicho. Claro, é interessante a articulação de pautas, da cultura com os movimentos de educação, a saúde, a moradia. Não é a realidade atual, mas acho que a tendência é espalhar essas ferramentas de subversão da sociedade, é por aí”.
Natureza, preservação e diversidade
Atento à vegetação e à fauna, o biólogo e guia Tobias Gonçalves, responsável pela trilha ecológica, notou a presença de uma espécie de bromélia em condição de vulnerabilidade – risco real de extinção – habitando os paredões rochosos dos morros que cercam a Cascatinha. Ele entende que, mesmo que haja a ação do homem há décadas, o local está relativamente preservado. “Aqui é um lugar rico mesmo, apesar da antropização [transformação do homem] de parte do trecho”. Tobias aponta que o lugar é pouco utilizado pelos moradores, e apresenta a particularidade de ser uma zona de transição ecológica e congregar dois ambientes, caracterizados respectivamente por araucárias e árvores semideciduais, que perdem as folhas durante parte do ano.
Para ele, o grande desafio da comunidade de Ibarama é conseguir preservar o local. Além de espécies não nativas ocuparem a mata, como é o caso dos eucaliptos, a falta de saneamento básico nas residências é um determinante à poluição do arroio. O biólogo, complementando as ideias já levantadas pelos organizadores do Pira Rural, acredita que o festival pode trazer para a comunidade noções de preservação. “O objetivo é a educação ambiental. A forma de exploração hoje utilizada pelos moradores não é a correta, mas é a única que se conhece. Temos que trabalhar para apresentar alternativas, é complicado chegar para um morador e dizer que ele deve fazer tudo diferente do que aprendeu com os pais e faz há décadas”, explica. A esperança é que estes debates orientados podem, em princípio, auxiliar na descontrução do paradigma da monocultura do tabaco que caracteriza a região Centro Serra.
O biólogo Tobias, que participa pela segunda vez do Pira Rural, resume a importância do contato direto com a natureza por meio do contraste na experiência dos visitantes, a maioria oriundos de ambientes urbanos: ele acredita que, em atividades assim, os visitantes voltam para as cidades com outras impressões e têm uma dimensão mais clara da importância da preservação da biodiversidade.
Um indicativo de que diversidade, em si, não era de forma alguma um problema para os presentes no festival foi a convivência, durante os três dias, de pessoas de diversos lugares – dentre eles, talvez o mais distante fosse o Acre, representado pelo índio Ash Tawantisuyo, que se identificou como pertencente à etnia Ashaninka, natural da floresta entre os estados do Amazonas e do Acre. Ash está radicado em Porto Alegre e ajuda a explicar a maneira como se vive por meio da oposição entre a cosmologia do deserto e da floresta – natureza pachamama wiracocha cósmica. Segundo Ash, a floresta vive em nós, enquanto o deserto seria a maneira ocidentalizada na qual imperam as doutrinas do capitalismo selvagem. “É parte de um sistema que monopoliza a mente, a vida, o andar de algumas pessoas. A floresta é o inferno para a cosmologia do deserto, que impõe sua arrogância e hipocrisia ao mundo e às pessoas”, avalia.
A serviço da tribo, Ash disse que coleta documentos que retratam a discriminação e cobra o respeito da tradição e cultura dos povos originários étnicos e nativos. “Eu sou representante e fui posicionado não pelo meu querer, mas pelo cosmos e pelos caciques, que observam como eu me comporto, a forma de falar, os estudos”, afirma. A maneira mais eficaz encontrada por Ash para confrontar questões comportamentais e explicar um pouco sobre a cosmologia foi utilizando o próprio corpo. Enquanto a maior parte dos visitantes do festival procurava cobertores e se agrupava em torno da fogueira, Ash postava-se nu em uma temperatura inferior a 10ºC. “Tentei mostrar como é o natural, como dizer para mente que ela não existe, e quando ela não existe, ela não tem força. O espíritual está em todos, você começa a se habituar. Eu não estava com frio”, explica.
O Ashaninka também utilizou o microfone após o encerramento das apresentações das bandas, no sábado, para falar sobre a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Segundo Ash, trata-se de uma obra ilegal que não pode haver continuidade. Ele defende a interrupção dos trabalhos e o ressarcimento das famílias que foram retiradas do local. Quanto à experiência colhida no Pira Rural, o representante indígena foi enigmático. “O festival foi demais, cara. Pessoas bonitas. Vários tipos de cultura, várias formas de pensar, isso foi fantástico para mim, porque eu faço uma antropologia auto-didata, a qual eu estudo vocês, todos vocês. Gosto de ver como se comportam, gosto de experimentar as sensações e os sentimentos de vocês mesmo, para eu poder entender mais”, disse.
Os três dias de festival
O primeiro dia de programação iniciou oficialmente com o show da anfitriã Xispa Divina, que com seu autodefinido “Rock Ruraldélico” já indicava a vibração que estava por tomar conta do Festival. Em seguida, subiram ao palco o leopoldense Luciano Alves e a também local Rock’n’Live, de Sobradinho, especializada em covers de clássicos do rock, mas que trouxe uma canção própria e inédita como “trunfo” para os presentes no festival. À medida em que caía a noite, a temperatura diminuía progressivamente e fazia os acampados retornarem às barracas em busca de agasalho.
A quarta banda a se apresentar foi a caxiense Greek van Peixe, a primeira representante da trupe de cinco bandas vindas com o coletivo artístico e cultural Manifestasol, que mostrou seu som autoral com influências do rock progressivo e das trilhas polifônicas de vídeo-game de 8 e 16 bits (que, inclusive, servem de referência ao nome e à arte do CD da banda, “8 Bit Wonder”). Enquanto muitos já buscavam enfrentar o frio com o auxílio de um dos sucessos da Butique da Cana, a graspa com mel (três rurais e cinquenta coloninhas), subia ao palco o power trio pelotense Os Brutais, que apresentou seu rock’n’roll de inspiração sessentista e aproveitou o festival para realizar o lançamento de seu primeiro EP.
Já era oficialmente sábado quando a penúltima banda da noite, a também caxiense Mindgarden, apresentou sua música autoral – cujo registro, em um álbum auto-entitulado de seis faixas, teve a masterização realizada no histórico estúdio Abbey Road – com letras em inglês e um som magnético que, como a maior parte dos trabalhos apresentados durante o Festival, transcende qualquer possibilidade de categorização rígida. O encerramento das atividades da primeira noite ficou por conta do trio porto-alegrense Sopro Cósmico, que, na interação entre piano, bateria e sax, sintetiza as influências que vão da formação erudita dos três músicos ao gosto pelo rock e pelo jazz.
O sábado começou com uma caminhada até a parte superior da Cascatinha. Quem decidiu acordar um pouco mais cedo depois da primeira noite de festival pôde ter uma vista inusitada da parte superior da queda d’água que dá nome ao lugar. A mata fechada e que até hoje apresenta trechos com características originais devido à pouca exploração do homem era um convite à caminhada, após uma longa noite de muita música e temperaturas baixas.
A trilha ecológica, como estava prevista na programação, não chegou a ser muito extensa, conforme explicou o biólogo e guia Tobias Gonçalves, porque os participantes não estavam com equipamento e roupas adequadas para adentrar à mata. Um diálogo à sombra das árvores esclareceu sobre os principais riscos de uma trilha. Outras orientações acerca da organização, segurança, montagem de abrigo e preservação foram passadas ao grupo.
Como o acesso à parte superior da cascata pelo meio da mata não poderia ser realizado pelo grupo de cerca de 50 pessoas, o jeito foi subir pela estrada, atravessar a propriedade da família Passarinho, vizinha do local onde ocorria o festival, e costear o leito do arroio até chegar a sequência de quedas d’águas. Era possível vislumbar alguns acampados acordar, e ainda dispersos, iniciar a organização da área das barracas. A visão era realmente deslumbrante, os participantes acomodaram-se em pedras e puderam observar o horizonte, circundados pelos sons emanados da cachoeira, do trepidar das árvores e do cantar de algumas aves que talvez estivessem a fazer o mesmo que as pessoas ali presentes.
Depois do primeiro almoço do final de semana, a variada programação musical começou com a apresentação do músico Mateus Costa, egresso da banda Ávalon, que buscou no teclado a intersecção do rock com o erudito, intercalando, por exemplo, a execução de uma peça de Chopin com um cover de Rita Lee. Na sequência, apresentou-se a banda Bardoefada, de Santo Ângelo, que mostrou sua produção própria no show Cabaré Bardoefada.
Ainda durante o dia, apresentaram-se a banda Auditiva, formada em 2008 no Rio de Janeiro e radicada em Sobradinho (RS), com um som autoral que professa o “espírito livre” e alia baladas rock e referências a cantigas e histórias fantásticas, e Renato Velho e Fluxo Piroclástico. A lua já havia tomado o lugar do sol quando a caxiense Pindorália subiu ao Palco das Abóboras para apresentar seu som, uma síntese de influências que aliam a sonoridade tradicional do rock com a presença de elementos eletrônicos e sintetizadores. Em seguida, outra banda caxiense e veterana de Pira Rural, a Cucastortas, fez um show instigante, com músicas próprias de temática política, ácida, falando sobre luta, resistência e liberdade, sobre uma base musical marcada pela influência do manguebit e regionalismo.
Se a psicodelia e a experimentação foram constantes durante todo o festival, atingiram seu ápice na noite de sábado, quando subiu ao palco a pelotense Vãn Züllatt. A música predominantemente instrumental e experimentalista atraiu olhos e ouvidos em uma performance impressionante, em que a conjugação de teclado, um sintetizador que resgatava a sonoridade dos Moogs de décadas atrás, uma flauta transversa – executados pelo músico Eugênio Bassi – com a bateria, o contrabaixo, a guitarra e até mesmo o uso de samples de voz proporcionou uma impressionante experiência sonora.
Em mais uma noite muito fria, as pessoas eram aos poucos vencidas pelo frio, e os que não tinham cobertores ou casacos suficientes para resistir a ele retornavam às suas barracas. Depois de um show impecável da banda Velho Hippie, que contou com a participação do saxofonista da banda Sopro Cósmico, Pedro Medeiros, chamado a improvisar em um bonito “duelo” com o tecladista Felipe Balen, ocorreu a apresentação do trio porto-alegrense Quarto Sensorial, um dos momentos mais eletrizantes do festival. Apesar do frio que se intensificava madrugada adentro, o trio instrumental, que não se apresentava desde novembro do ano passado, foi capaz de trazer muitos dos acampados de volta às cercanias do palco, em uma apresentação cheia de técnica e, principalmente, muito intensa, capaz de fazer qualquer um sentir-se privilegiado.
A segunda noite terminou em tom de celebração, com a apresentação da Espora Elétrica, quinteto de Passo Fundo que, além de apresentar canções próprias, executou um repertório de covers que incluía, entre outros, Belchior, Secos & Molhados, Mutantes e Janis Joplin, todos com a marca cativante da interpretação da vocalista Meli.
No domingo, o nascer do sol trouxe de volta a temperatura amena, e em clima de partida, foram realizadas as últimas apresentações, refeições e oficinas, que incluíam realinhamento dos Chakras, Cura e confecção de carteiras com caixinhas de leite. No início da tarde, em apresentação acústica, Giancarlo Oliveira mostrou a sonoridade distinta de sua técnica percursiva no violão. Enquanto alguns buscavam suas roupas, desmontavam barracas ou ajudavam no mutirão de recolhimento de lixo pela Cascatinha, rolava uma jam session, para quem quisesse subir ao palco e interagir. Oficialmente, o Terceiro Pira Rural foi encerrado com a especial apresentação acústica da anfitriã Betty e de seu parceiro Arno Prade. Foi a segunda apresentação da dupla no local – a primeira havia ocorrido durante o verão e serviu, inclusive, como maneira de angariar fundos para o Pira Rural.
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Embora os organizadores do festival não constituam um coletivo organizado nem o Pira Rural figure oficialmente nos grandes circuitos alternativos de festivais independentes, o Terceiro Pira Rural representou um exemplo de organicidade no trabalho coletivo de todos aqueles que estiveram “na lida” e de harmoniosa convivência entre as pessoas que passaram pelo local durante os dias de Páscoa. É exemplar que a “lida” não tenha abrangido apenas aqueles envolvidos desde o ano anterior na estruturação do evento, mas também os que auxiliaram eventualmente a descascar batatas ou a coletar o lixo que acabou aparecendo pela propriedade.
Os dias de muita música e contato com a natureza, assim como o resgate de valores positivos e da simplicidade da vida colonial só foram possíveis pela sinergia que se estabeleceu entre as pessoas e destas com o lugar especial em que aconteceu o festival. O Pira Rural, assim como o local onde ele acontece, ainda é um reduto, um espaço reservado que, por suas características naturais, tem seus limites para que o ambiente seja preservado e a acomodação garantida. Ainda assim, aspira longa continuidade, seja como Festival propriamente dito ou por meio dos frutos que pode render ao fomentar a criatividade, a simplicidade, a interação com a comunidade local e a transformação das relações humanas, que saem dali renovadas.
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O PALCO DAS ABÓBORAS: MÚSICA, NATUREZA E DIVERSIDADE NO TERCEIRO PIRA RURAL, pelo viés de Tiago Miotto e do colaborador Calvin Furtado*
tiagomiotto@revistaovies.com
*Calvin Furtado é jornalista. Leia mais de Calvin Furtado na revista o Viés.
satisfação indescritível! sempre invejei o Viés, agora, finalmente, me sinto parte. Go ahead Cascatinha! #XispaDivina
Pow galera, meus parabéns. Poxa que bela reportagem, toda cuidadosa com os detalhes e a história do local, do Festival, da Filosofia, além dos relatos…
Adorei a “comparação” com um novo movimento messiânico….Os Barbudos da Cascatinha..ehehe
O Palco do Pira tem uma riqueza, são as abóboras e os artistas, ou são os mesmos.
É Palco Ricas Abóboras…hehe
Gente, nossa gratidão e ano que vem vamos projetar em conjunto o programa da Revista o Viés na Rádio Camarim!
Abraço.
Baita matéria!!! Parabéns pela cobertura 2.0 aos jornalistas 2.0 d’O Viés!!!
Poxa vida, Baita matéria mesmo. Parabéns pro Tiago e pro Calvin, e que venham os Piiiiraaaaaaasss!!!!!!!!!!!
Ótima matéria. Muito cuidadosa e atenta, o olhar dos jornalistas está permeado de sutileza. Prêmio GraspaMel para vocês!
huauhahuahuahuahuauh… Boa; prêmio graspa mel pra eles mesmo… aaahuhuauha
Mas tche…o Dinarte lançaste uma baita idéia.
vô querê!