Uma hora e meia. Para quem não conhece Esteio, esse é exatamente o tempo que se leva, saindo de Porto Alegre, para se chegar à Rua B nº 15, na periferia da cidade, onde mora Tony da Gatorra – um sonhador que construiu um instrumento que mistura percussão e sintetizadores para mostrar ao mundo o que pensa sobre a boa e velha politicagem brasileira.
Nunca pensei que em um município com pouco mais de 81 mil habitantes pudessem existir tantos logradouros com o mesmo nome. Na área onde Tony vive pude contar três Ruas B – isso porque consegui achar a residência na terceira tentativa – e, é claro, em todas existia o tal do nº 15. Mas, para tristeza dos mais supersticiosos, isso não é coincidência. As casas são humildes, as vias são estreitas, não há calçamento de qualquer tipo e a sinalização praticamente inexiste, isso porque as ruas ainda não têm um nome oficial e os moradores – muito prestativos, um deles até desenhou um mapa no chão. Graças a Deus! – ainda esperam receber da Prefeitura local as escrituras dos terrenos há anos por eles apropriados.
A entrevista estava marcada para as três da tarde. Quando cheguei Tony já me aguardava no portão sem a sua faixa vermelha no cabelo comprido e o seu colete – visual inspirado no estilo hippie que ele mesmo mandou fazer. “Foi difícil de achar?” – perguntou. “Um pouco.” – respondi. Eu liguei duas vezes para ele na tentativa de encontrar o caminho certo, mas a única coisa que entendia era que eu tinha que dobrar à direita em algum lugar. “É comum quem não conhece aqui se perder.” – disse ele. Não era a primeira vez que Tony da Gatorra recebia um repórter. O inventor e também músico já deu várias entrevistas: Fantástico, Rolling Stone e, até mesmo, algumas publicações internacionais. Ele guarda com muito orgulho todos os exemplares que publicaram algo sobre seus feitos. Mas, não para por aí. Das paredes da sala Tony fez um grande mural com fotos tiradas por e com amigos, fotos antigas de família e cartazes dos festivais dos quais participou – tudo coberto com plástico transparente, daqueles que se põe sobre as toalhas de mesa para não sujar ou estragar.
Antônio Carlos Correia de Moura, nome verdadeiro deste homem de 59 anos, começou a pensar em fazer música em 1996, quando teve a idéia de construir um instrumento de percussão usando apenas sucata. “Eu gosto muito de percussão. Eu toco bateria, sabe? E como eu fiz curso de eletrônica e gostei do que eu aprendi, eu tive a idéia de fazer um instrumento para passar uma mensagem […] para conscientizar as pessoas.” – contou. De origem humilde, Tony da Gatorra faz música como uma espécie de desabafo com relação à pobreza e as injustiças sociais.
Existem muitas informações desconexas sobre Tony circulando na Internet. Mas, conforme o próprio, natural de Cachoeira do Sul, ele chegou em Esteio com três anos de idade. A mãe havia morrido e seu pai se mudado com os seis filhos para a cidade em busca de uma vida melhor. Mas, o músico não passou toda a sua infância lá. Quando tinha oito anos, Tony foi mandado para um Patronato Agrícola em Taquari. Muito comuns na época, os Patronatos eram instituições que tinham como objetivo abrigar e educar menores. O pai havia conseguido duas vagas, uma para ele e outra para um dos seus irmãos, falando diretamente com Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul.
Com 12/13 anos ele deixou o Patronato e foi morar com uma tia/madrinha em Porto Alegre, onde começou a trabalhar como office-boy. Antônio Carlos não concluiu o ensino fundamental (antigo 1º grau), estudando até a 6ª série. “Logo que terminei o primário [de 1ª a 6ª série] eu sai. Era o tempo previsto. Só se ficava até [no máximo] os 14 anos no colégio [Patronato]. Depois, já era considerado adulto, tinha que trabalhar. Era diferente de hoje.” – conta. O ginásio, os quatro anos que sucediam o primário, era considerado um ensino mais especializado. Dividido entre científico e magistério, geralmente, era procurado por famílias com maior poder aquisitivo. No entanto, o pouco estudo não o impediu de, algum tempo depois, dedicar-se à metalurgia, que viria a exercer por 15 anos em Porto Alegre, no Vale dos Sinos e em São Paulo, para onde foi por conta própria e morou em uma pensão barata com mais um grupo de pessoas durante dois anos (quando tinha 19) e mais um ano (aos 22).
A eletrônica, que, de certa forma, foi o primeiro passo dado por Antônio Carlos em direção a Tony da Gatorra, veio só em 1975. Por volta dos 24 anos, ele decidiu estudar eletrônica por correspondência pelo Instituto Universal Brasileiro. Tornou-se técnico e atuou na área por mais ou menos 30 anos, até o momento em que decidiu criar um instrumento elétrico de percussão que lembrasse uma guitarra pelo formato e tivesse efeitos de sintetizador. “Como foi construir a primeira gatorra?” – perguntei. “Em 1996 eu comecei a construir. Foi difícil. Não tenho recurso, sou pobre mesmo, né. A nº 1 eu fiz toda de sucata, com peças que eu comprava no ferro velho. Ela [também] é toda de madeira [a base]. Eu não sabia como eu ia fazer, ai eu fui cavoucando para colocar o circuito. Ela tem uns 2kg. É diferente das outras que são de alumínio, ocas e eu fechei com fórmica. […] E a minha companheira [da 2 ª união que durou uns 15 anos] me largou por causa desta gatorra aqui [segura a nº 1]. Ela disse que eu tava louco, que só botava dinheiro fora. E ela disse “ou a tua gatorra ou eu” e foi embora. Me admira ela. Uma coisa em que eu acredito é que mulher a gente consegue outra, mas uma oportunidade pra realizar aquilo que tu acredita não. O teu trabalho é único. Imagina eu deixar uma coisa que eu acredito por causa de um simples romance, não tem lógica.” – lembra e explicita Tony da Gatorra.
A divulgação do seu trabalho começou dois anos depois, em 1998. O inventor gravou algumas músicas de sua autoria e distribuiu demos pelas rádios da capital gaúcha. A primeira resposta que ele obteve foi do radialista Eduardo Santos, que trabalhava na rádio Ipanema e também apresentava o College na TV.
E – pasmem! – quem foi uns dos principais divulgadores do trabalho do Tony da Gatorra em São Paulo foi nada mais nada menos do que o músico e produtor Carlos Eduardo Miranda – isso mesmo, o Gordo Miranda, que ficou conhecido em todo o país pelas duras críticas dadas aos participantes do programa Ídolos, uma cópia abrasileirada do SBT do American Idol líder de audiência nos Estados Unidos. Tony da Gatorra não faz um som de fácil digestão, ele mesmo reconhece que suas músicas não são do tipo que caiam facilmente no gosto do povo. “Aqui no Brasil o pessoal não gosta muito de coisa séria. Gostam de música para dançar. […] O meu trabalho é uma coisa diferente. Não faço música para divertir ninguém. É música mais como uma mensagem.” – argumenta.
O que tu tem/Estão dizendo que o Brasil/Deve pro estrangeiro/Eu aprendi na educação/Quem faz a compra/É quem deve pagar/Mas, veja bem/O que é que eu tenho?/O que tu tem?/O que é que eu tenho?/O que tu tem?/O que é que eu tenho?/O que tu tem?/Nos hospitais/Nunca tem leito/Segurança/Não existe/O trabalho/É negado/Os Sem-teto estão desesperados/Dormindo no relento/Os Sem-terra estão assassinados/O que é que eu tenho?/O que tu tem?/O que é que eu tenho?/O que tu tem?/O que é que eu tenho?/O que tu tem? […]
(Parte da letra escrita por Tony da Gatorra)
Mas, fato é que Miranda acabou mostrando o trabalho do Tony da Gatorra para alguns amigos como Guilherme Barella da Peligro Discos – que, segundo Barella, é catálogo de venda de discos por e-mail, especializado em música alternativa, com uma queda forte para o experimental – e Eduardo Ramos dono da Slag Records e atual empresário de Tony. “Quem me mostrou o Tony foi o Miranda, ele é de Porto Alegre e tinha os CDs do Tony, e eu fiquei completamente louco. Daí, uma vez o Tony veio para São Paulo fazer um programa de TV sem dinheiro nem nada, na loucura. Eu acho que eu estava do outro lado da cidade e o Gui [Guilherme Barrela] estava tranquilo de tempo e foi encontrar o Tony e comprou todos os CDs dele para ajudar. Então, ficamos conhecendo ele pessoalmente, e isso levou a lançar a primeira compilação dos trabalhos do Tony [Só Protesto pela Peligro]. Sempre achei a música do Tony muito inovadora e avançada. Pelas referências culturais dele, em teoria, ele nunca poderia gerar esta música e isso sempre me intrigou. O Tony é uma das pessoas mais simples e puras que eu já conheci, e cada momento do lado dele é uma lição.” – conta Eduardo Ramos.
Assim, o músico gravou dois álbuns (um pela Peligro e outro pela Slag, com quem tem contrato) e fez alguns shows pelo Brasil. Mas, nesse ínterim, ele ganhou fama mesmo vendendo gatorras, uma delas, inclusive, para Nick McCarthy, guitarrista da banda escocesa Franz Ferdinand. “Eu já vendi onze. Em São Paulo eu vendi seis, duas aqui no Rio Grande do Sul, uma em Curitiba, eu vendi também nos Estados Unidos uma para a [Luísa] LoveFoxxx da [banda paulista] Cansei de Ser Sexy e uma para o Nick da Franz Ferdinand, é a nº 7.” – conta Tony. Os instrumentos são feitos em sua casa uma área estreita onde fica uma bancada com tintas e ferramentas e vários desenhos do interior do instrumento afixados na parede onde também está pregado o certificado de técnico. Cada gatorra demora em torno de dois meses para ficar pronta, chegando a custar R$ 2.000,00. “Eu sempre quis que alguém patrocinasse a montagem em série. Baixaria o custo e diminuiria o trabalho, dá muito trabalho. Mas, aqui no Brasil ninguém se interessa.” – explica o inventor. Além disso, Tony as pinta com cores diferentes e numera cada uma para evitar falsificações.
O nome gatorra vem de guitarra. Fã de Raul Seixas, Tony gosta de um rock com letra de protesto. “Eu vejo muita repetição hoje. A maioria dos músicos só pensa em fazer sucesso, em ganhar dinheiro. Eu admiro muito as pessoas com conteúdo.” E ele se descreve como um hippie pós-punk. “O som que eu faço é pós-punk. […] É mais eu gosto das coisas bem naturais. Eu sou um hippie natural.” – divaga. Mas, quando a pergunta é sobre o uso de drogas ele é direto: “Sim, maconha. Mas, eu não considero maconha droga. Pra começar, não vicia. Eu fui viciado em cigarro. Sofri mais de dois anos pra largar. Droga é essas coisas que viciam, deixam louco. Pra mim foi até várias vezes remédio pra depressão e é bom antes do almoço.” – afirma. “Desde quando você usa?” – pergunto. “Quando eu era guri com 16/17 anos, usava bastante.” – responde. “E você já usou alguma coisa que provocasse alucinação?” – pergunto novamente. “Não, essas farinhas eu nunca usei. É prejudicial à saúde. […] Tudo que foge do natural eu não gosto. Tatuagem e piercing eu não sou contra, mas também não gosto.” – diz Tony.
Uma resposta bem interessante levando em consideração o artigo “Expect to come away from The Terror of Cosmic Loneliness nursing a very sore head indeed” (que poderia ser traduzido como “Espere sair de O Terror da Solidão Cósmica com uma grande dor de cabeça”) publicado no site da emissora pública de televisão e rádio do Reino Unido, a BBC. Mas, antes de se saber mais sobre o que dizia a tal resenha é preciso saber que, em 2007, durante o festival Troca Brahma, que promove um intercâmbio cultural entre músicos brasileiros e ingleses com shows em Glasgow, Liverpool e Londres, Tony da Gatorra conheceu Gruff Rhys, vocalista da Super Furry Animals e conhecido no País de Gales por suas experimentações musicais. Os dois tocaram juntos algumas vezes e em junho deste ano lançaram na gringa um álbum em colaboração, o “The Terror of Cosmic Loneliness”, comentado nos mais variados periódicos. E voltando a resenha que saiu na página da BBC, o texto começa mais ou menos assim: “É estranho o que quantidades industriais de drogas irão fazer a um homem, dependendo de onde e quando ele as estiver usando. Por outro lado, a colaboração de Gruff Rhys com o reparador de VCR brasileiro Tony da Gatorra funciona como uma celebração da improvisação casual do poder unificador das drogas e da excentricidade desenfreada.”
Contudo, essa não foi a primeira vez que Tony recebeu duras críticas. E para aqueles que o chamam de louco ele responde: “Cada um tem direito de pensar aquilo que quiser. Posso ser maluco, mas eu sou consciente. Louco mesmo são os covardes que ficam roubando a consciência dos outros e aqueles que só acreditam no material e não acreditam em Deus.” – Tony tem uma formação católica bem forte resultante dos anos no Patronato, onde padres ministravam aulas.
E apesar de toda a estranheza que “The Terror of Cosmic Loneliness” possa ter causado em alguns críticos, o disco foi um sucesso em matéria de vendagens com 2 mil cópias vendidas em duas semanas. O álbum contém cinco músicas de autoria de Tony da Gatorra e cinco de Gruff Rhys que foram gravadas, em 2007, no estúdio Paulo B, em São Paulo, sem muita pretensão. “Nós nem sabíamos que estava sendo gravado, foi mais ao vivo, ensaio mesmo. Aí, o pessoal gostou e resolvemos lançar.” – revela Tony. Das várias versões que os músicos executaram ao longo de 12 horas de ensaio foram escolhidas as melhores e o mais interessante disso tudo é que nem Tony fala inglês nem Gruff fala português. A comunicação ficou a cargo de Eduardo Ramos, o que não foi possível durante a turnê de lançamento do disco no Velho Continente. Eduardo estava doente e Tony teve que ir sozinho. “Não tinha interprete, mas deu para eu me comunicar bem. A gente usava um tradutor do computador e eu encontrei uns portugueses lá que me ajudaram.” – conta o inventor de Gatorra.
Tony gostou tanto de tocar fora do Brasil que pensa em se mudar para São Paulo para ficar mais perto das oportunidades que estão surgindo. “Eu quero ir para São Paulo. Não adianta ficar aqui. Onde eu trabalho mais é lá e estando em São Paulo facilita muito [o contato com as pessoas]. Agora, estão para acontecer shows no Canadá, nos Estados Unidos, no Japão e em Portugal.” – informa. Tony já colocou a casa a venda e tem boas expectativas com relação a uma possível carreira fora do país: “Eu nunca pensei tocar na Europa. Eu já tinha pensando em tocar em São Paulo e no Rio de Janeiro, que eu já toquei. Eu toquei em quase todo o Brasil. Mas, aqui no Brasil, a maioria das pessoas tem uma idéia muito errada sobre o músico. Eles acham que é vagabundo, que tá perdendo tempo, que tá só curtindo, sei lá. E na Europa eles valorizam muito a cultura, principalmente a musical.”. Com relação a maneira como Tony é visto em geral nos outros países, Eduardo Ramos também se posiciona: “Ele fez bons shows fora do Brasil. Tocou em lugares que respeitaram ele como músico e pessoa, o que raro no Brasil. O Tony não é visto as vezes como músico e isso é um erro. O som que ele criou com a gatorra desafia a razão, porque é um instrumento único e o Tony, apesar de ter influências de rock clássico, conseguiu criar algo do zero, que tem muito mais ligação com o pós-punk e a música eletrônica primitiva dos anos 70 do que qualquer outra coisa. Então quando ele toca em São Paulo e fora, este som é reconhecido.”
Ainda este ano, Tony da Gatorra deve lançar on-line um disco ao vivo com duas gatorras. E quem pensa que acaba por ai se engana. O cineasta Binho Miranda, que também conheceu Tony através de Carlos Eduardo Miranda, está produzindo um documentário sobre o técnico em eletrônica que virou músico. O longa ainda não tem previsão de lançamento, mas Binho garante que vai mostrar ao público até onde uma boa dose de perseverança pode levar um homem. Para ter uma prévia, basta buscar em vimeo.com por “Meu Nome é Tony. Eu construí um Instrumento”. E essa não foi a única participação do “gatorreito” na sétima arte. Quem digitar “Gruff Rhys + Separado” na página do You Tube vai encontra o trailer do documentário produzido pelo galês que conta a história de alguns dos seus parentes que vieram morar na Patagônia e, no qual, Tony faz uma ponta.
TONY DA GATORRA, pelo viés da colaboradora Paula Vieira*
*Paula Vieira é blogueira e mantém o endereço “Aleatório”