DÉBUT DE QUOI?

Sábado, dia 24, centro da cidade de São Vicente do Sul. O Clube Vicentino, em frente à praça, é o clube da ‘sociedade vicentense’ – eufemismo com o qual seus próprios frequentadores se referem a eles mesmos. A noite não é quente nem fria, mas, do lado de dentro do clube, com ventiladores desligados, janelas fechadas e muitas pessoas juntas, os ternos e longos já desregulam a temperatura corporal.

Atraso! Fomos avisados de que o Baile de Debutantes de 2012 começaria às onze; já são quase meia-noite e ainda nada – não por menos temos a expressão ‘fazer cerimônia’. Alguém comenta que faz, no mínimo, doze anos em que não se tinha um baile de debutantes na cidade. As últimas então-gurias a desfilarem aos olhos da ‘sociedade’ já estavam casadas, empregadas e continuavam a ser as filhas de fazendeiros, bancários ou servidores do IFF (Instituto Federal Farroupilha).

Fui convidado porque sou padrinho duma das debutantes. Bailaríamos, eu e ela, uma valsa inteira no melhor estilo de quem não ensaiou (minha mãe, inclusive, comparou-me a uma pedaço de pau no salão). As nossas mesas estão posicionadas de maneira que podemos mirar quem adentra o salão tanto do lado dos convidados quanto do lado das jovens. É um desfile da high society! Esses exemplares da espécie sempre se apresentam socialmente em pares – não há bons olhos para os solteiros, afinal por que não se casaram ainda? Homens de terno e mulheres de longo. Caminham lentamente entre as mesas à procura da sua. Com o nariz na altura dos olhos, cumprimentam-se, miram-se, sorriem.

Chega a hora. Devo comportar-me, já me orientou uma tia. Não planejava nenhuma intervenção – bem pelo contrário. Minha afilhada tivera medo de me convidar para dançar com ela, pois achava que eu nunca o aceitaria. Não concordo com esse tipo de manifestação cultural, mas não sou uma pedra, isolada numa pretensa racionalidade e assepsia. Nunca lhe diria não; ela é minha afilhada, minha prima, faz parte da minha vida e, aparentemente, aquele era um momento que significava algo para ela – o que quer que fosse.

O discurso de abetura começa. Seguro o riso na boca – fora uma reação automática às palavras do cerimonialista. Algo como: “a juventude floresce nessas meninas que, a partir de hoje, abrilhantarão ainda mais nossa sociedade”. A minha primeiríssima indagação é a que sociedade ele se refere? Eu não via ninguém do bairro Novo Horizonte ali nem da Vila Rica nem do Loreto nem do Cavajuretã. A sociedade a que ele se refere não é uma estrutura ampla baseada num grupo de pessoas, mas àquele grupo de pessoas ali. Um modelo: homens, cristãos, tradicionalistas e conservadores.

As gurias começam a desfilar. Foram meses de preparação para fazer o vestido, ensaiar as caminhadas, decorar o salão. Quem debuta são as gurias, nunca os guris. O nome do baile vem do francês début, que significa começo, iniciação. Homens não precisam ser iniciados na sociedade, porque ela historicamente já lhes pertence. Eles estão, ainda na sua forma adolescente, na plateia; desfilando, como princesinhas frágeis, estão as gurias que serão as futuras esposas, donas-de-casa, professoras, enfermeiras, secretárias ou, então, aventurar-se-rão nas profissões mais ‘masculinas’ e trabalharão no banco, serão professoras do IFF – mas tudo com uma certa ‘cautela’.

No entanto, é improvável que quaisquer daquelas seis gurias quisessem se tornar dependentes dum marido, discriminadas, resumidas a seu gênero. Então por que elas e suas famílias ainda se submetem a uma prática que servia como ‘mercado de casamento’, para avisar a todos que suas filhas estavam prontas para o que lhes cabia como mulheres?

As mães choravam, as filhas choravam, as avós e as tias. Os pais se portavam como leões-de-chácara, pois, à sua visão, era o fim dum período de suposta inocência e fragilidade. Improvável, tampouco, que alguma mãe quisesse para suas filhas que elas sofressem de sexismo em qualquer instância de suas vidas, mas, então, novamente, por que elas reproduzem essa prática? Reprodução é a palavra – ninguém para e se pergunta o porquê de expor suas filhas duma maneira tão maqueada, ensaiada, rasa. A prática está simplesmente intrínseca ao fato (ou ao fardo) de se ter uma filha. Aos 15 anos, elas debutam, não é assim?!

As práticas estabelecidas por um grupo de pessoas, que detêm o poder, tornam-se naturais, ou melhor, são naturalizadas. Mas não existe razão para aquilo, há? Nada além dum sentimento, duma procura por emoção, duma celebração. Ninguém dirá que são burros aqueles que celebram suas filhas, mas podemos, no mínimo, abrir espaço para tentativas de desnaturalização das coisas mais óbvias. Minha filha debutará: por que e para quem? O que é esse baile? É a tal iniciação da filha na sociedade, o début? Mas, vamos lá, só por um momento nos perguntemos: début de quoi?*

 

DÉBUT DE QUOI?, pelo viés de Gianlluca Simi

gianllucasimi@revistaovies.com

 

*Começo de quê?

NOTA: a obra que ilustra esta crônica é de autoria de Sarah Charlesworth.

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