Despertou tarde, muito tarde esta manhã e viu que as margaridas do vaso sobre o criado-mudo já estavam todas murchas. Ganhou o ramo quando mesmo? Talvez num dia de desculpas esfarrapadas de primavera soturna. Aliás, o inverno é que parece ser soturno, mas os dias sempre parecem soturnos quando trazemos o coração neste estado. Fim de outubro, fim de mês qualquer. Não começa e nem termina o ano. Não marca passagem de nada a ninguém. Margaridas já fétidas sobre o criado-mudo. Ela não quer memórias, cartas, flores ou versos. Presentes inúteis em fim de tarde depois de um longo dia chato de escritório. Depois de um longo dia chato amarelado com cheiro de incenso barato da companheira de sala.
Quando recebeu as margaridas, teve vontade de se transformar em pá e cavar o buraco da própria sorte, infestada de vergonha e rigidez de sentimentos. Jurou na frente do espelho oxidado do banheiro que nunca iria abrir a porta do miocárdio para mais ninguém. Fechada, dali em diante, oxidada junto com espelho barato e intoxicada com incenso de canela nas narinas. Sonhava com margaridas, príncipes sem cabeça ou sapos com dentes. Mastigar a própria sorte e cuspi-la no bueiro mais próximo não era tarefa fácil.
Empacotaria os sentimentos todos chegados em uma caixa de tamanho médio e despacharia para distante. Mas usar e descartar, essa poderia ser uma lógica procriadora dos bons frutos. Isso ela não jurara defronte do espelho oxidado. Passar a língua sem compro misso. Usar de artifícios…
Ela salta da cama e joga as margaridas pútridas na lixeira do banheiro de espelho oxidado. Está horrível no reflexo. Apareceram rugas novas. Não vale a pena pensar em príncipes sem cabeça ou sapos banguelas. Precisa tingir o branco teimoso do cabelo. Precisa parar de pensar na porta do miocárdio, com tranca ou sem tranca.
Toma café amargoso e pensa em trocar o espelho oxidado do banheiro. Vê o telefone bege amarelado sobre a mesa e pensa na conversa com a amiga do incenso de canela. Se ela recebesse margaridas no trabalho, dissera,
morreria de emoção, ou vaidade, ou surpresa, ou imodés tia, ou sei lá o que mais que ela falou. Mas ela, ela não se derrete. Não se rende. Não se vende. Mas pensando bem, usar e des cartar é uma boa ideia. Ela prefere as hortênsias, mais raras e caras. Ainda se lembra da voz melada da companheira. Tomara que ela não tenha o hábito de acender incenso de canela no quarto enquanto copula.
ESPELHO OXIDADO, pelo viés da colaboradora Munique Duarte*
*Munique é jornalista e escritora.