Sobre uma nota de apenas duas linhas no The New York Times (seria um lead superficial ou pela metade?), o escritor Truman Capote escreve uma obra-prima do jornalismo literário, o livro “A Sangue Frio”. A nota relatava o assassinato sobre uma família que vivia no interior do Kansas (os Clutter), fazendo com que o autor viajasse até a cidade pequena de Holcomb (juntamente de sua amiga escritora Harper Lee, autora de “O Sol É Para Todos”) para conversar com vizinhos, conhecidos e familiares da família e começar sua “matéria”, que acabou se tornando uma apuração longa, minuciosa, calculista e densa. O livro registra a história dos membros da família Clutter, seu assassinato brutal, a angústia do investigador Al Dewey em não achar os culpados e apresenta profundamente a vida de seus culpados: Perry Smith e Dick Hickcock, os assassinos – até o final de suas sentenças. Se você não leu e pretende ler, melhor não se estender às próximas linhas.
O new journalism feito a sangue gélido
Em setembro de 1965, a revista “The New Yorker” publica o primeiro dos quatro capítulos que faziam parte de umA reportagem intitulada “A Sangue Frio”. Meses depois, em janeiro de 1966, a tensão narrativa do romance de Truman Capote sairia em formato de livro, obtendo um sucesso absurdo de vendas e claro, também de críticas – favoráveis e contrárias. O próprio escritor – que, digamos, não costumava ser muito modesto – definiu sua obra como “non-fiction novel” ou simplesmente “romance sem ficção” e introduziu o jornalismo à literatura, servindo de inspiração para diversos jornalistas-escritores a partir de 1965. Muitos destes autores já escreviam reportagens com uso de recursos literários, mas foi a partir de “A Sangue Frio” que esse estilo obteve respeito e admiração. Algumas obras surgiriam nos Estados Unidos após a obra célebre de Capote: em 1968, Norman Mailer lança “Os Exércitos da Noite”, Tom Wolf aparece com “O Teste do Ácido do Refresco Elétrico” e o ilustre Gay Talese surge com “O Reino e o Poder – Uma história do New York Times” e em 1971 com “Honrados Mafiosos”. Outros nomes célebres do jornalismo literário como Tom Wolfe, Jimmy Breslin, Hunter Thompson e James Baldwin também devem ser lembrados por serem fundamentais na investigação da cultura dos Estados Unidos e no uso de reportagem com o uso de recursos literários.
A história sanguinária é verídica, triste, repleta de minuciosidades: detalhes informativos, descritivos e analíticos, uma apuração que levou nada mais nada menos que seis anos até a obra ser concluída. São informações que foram dissecadas pacientemente, relatadas em mais de oito mil páginas – entre entrevistas, depoimentos, cartas – em uma cidade de 120 habitantes no Kansas, a pacata Holcomb. As imagens quase cinematográficas descritas pelo autor fazem o leitor refletir como o teria feito sem pesar mais por um lado da balança (dos inocentes da família Clutter ou dos assassinos sádicos).
É incrível o envolvimento que se dá, ainda na primeira parte do livro, com integrantes da família Clutter. Parece que o escritor faz isso propositalmente para que, quando o momento exato do assassinato acontece, quase sentíssemos na pele – a pessoa menos emotiva do mundo ainda assim teria pena da família – o horror cometido na casa que teve apenas coisas de pouco valor roubadas e também uma certa indignação pela frieza com que é relatada. O ambiente todo onde a história se passa é narrado detalhadamente: a cidadezinha de Holcomb, sua comunidade religiosa, a vida pacata população, o clima amigável, são informações íntimas – praticamente uma coleta de todos os diários de cada um dos personagens não-ficcionais.
“A pequena cidade de Holcomb está situada nas altas planícies de trigo do oeste, área desolada que os outros habitantes do Estado chamam de ‘lá longe’. A cento e doze quilômetros a leste da fronteira com o Colorado, o campo, com seu duro céu azul e o ar límpido do deserto, possui uma atmosfera mais de ‘faroeste’ que de meio-oeste. O sotaque local tem uma farpa do nasal das planícies, uma nasalidade de vaqueiros, e os homens, muitos deles, usam as calças justas das fronteiras, chapéus Stetson e botas de salto alto e bico fino. A terra é plana e as paisagens assustadoramente vastas. Cavalos, manadas de gado, um amontoado de silos erguendo-se grandiosos como templos gregos, são vistos pelo viajante muito antes de a eles chegar…”(trecho do livro)
As definições de “crime”, de “assassino” e de “assassinados” ganham dimensões assustadoras em “A Sangue Frio”, que também aguça a curiosidade de uma maneira questionadora para o leitor (como alguém pode matar o próximo com tamanha indiferença?). No livro, tomamos claramente como crime, algo que alguém – de má índole ou com uma história de vida triste – cometeu. Assassino é alguém, – com uma motivação qualquer, porém com uma história de vida oposta a da vítima – que tira a vida de outrem com indiferença. Assassinados são as vítimas – inocentes que tiveram sonhos e um futuro desfeito – por alguém que não deu a mínima importância para isso. Essas definições são descritas, seguindo a trama do livro, claro (há um choque entre dois mundos opostos, o mundo dos Clutter e o mundo de Perry e Dick). Porém, são estas mesmas descrições que não aparecem nos jornais diários, mas felizmente são relatadas pelo que hoje se chama “new journalism” (que fogem da rigidez insossa do jornalismo, sem deixar de lado a clareza e objetividade requeridas). E foi o que Truman Capote fez.
“Nas primeiras horas daquela madrugada de novembro, porém, sons nada costumeiros subrepuseram-se aos ruídos noturnos normais de Holcomb – a histeria aguda dos coiotes, o arrastar seco das folhas sopradas pelo vento, o lamento distante dos apitos de locomotiva. Na ocasião, não foram ouvidos por ninguém na Holcomb adormecida – quatro disparos de espingarda que, no fim das contas, deram cabo de um total de seis vidas humanas” (trecho do livro)
A descrição dos crimes cometidos e relatados em A Sangue Frio não se prende apenas ao fato em si (“utilize a clareza,a objetividade!”, diriam os manuais de redação de sempre), mas também nas características, nas descrições das personalidades dos personagens – que são verídicos, mesmo que não pareçam (será que ainda não estamos acostumados com o “new journalism”? Estaríamos acostumados demais com o relato superficial de todos os dias?). Tanto os assassinos quanto os membros da família Clutter são observados densamente pelo autor para podermos conhecer, nos emocionar e se envolver na trama, já que os criminosos e as vítimas não se conheciam, mas nós os conhecemos. Nós passamos a conhecer os dois lados, que são opostos.
É como se recortássemos uma notícia de jornal – aquelas notinhas da página policial, sem muito destaque – sobre um assassinato do interior e desvendássemos o que realmente aconteceu, em mínimos e preciosos detalhes. Indubitavelmente a obra de Capote nos faz querer fazer isso, encontrar um fato destes, desenvolver e mostrar para o público – nem que para isso necessitemos de anos apurando para os leitores tudo o que aconteceu, como ele o fez. Esse “tudo” em uma camada não superficial, formada por leads (que,quem,como, onde, quando…) mas sim tomada por uma profundidade que chegaria até o “centro da terra”, onde certamente Capote chegou – mesmo que para isso ele tenha se “queimado no magma pastoso” – se envolvido ao máximo com os asssassinos (teria ele tido um caso com Perry?), tão friamente que poderia ter usado da mentira (falsidade ou omissão?) para conseguir inúmeros depoimentos e incontáveis visitas até o “núcleo terrestre”, o corredor da morte (um ambiente que poderia ser o inferno, onde só ele e o advogado de Perry e Dick podiam pisar). Os assassinos também utilizaram a indiferença e foram sádicos ao aniquilar o futuro dos Clutter: mataram uma família inteira para levar da casa apenas um rádio, um par de binóculos e 40 dólares. Herb, Bonnie, Kenyon, Nancy – os Clutter – todos foram amarrados e amordaçados, depois mortos a tiros de espingarda. O garoto Herb também teve a garganta cortada.
“Pouco antes de tapar a boca do Sr. Clutter – foram suas últimas palavras – ele me perguntou como estava a mulher dele. (…) Disse pro Dick segurar a lanterna, colocar o homem em foco. Daí apontei a espingarda. A sala explodiu. Ficou toda azul. Era um clarão só. Nunca vou entender como não ouviram o barulho a quilômetros de distância.” (trecho do livro, depoimento de Perry para o investigador Alvin Dewey)
“A sangue frio” não é apenas um título que remete ao crime cometido por Perry e Dick, mas também como foi escrito o livro, literalmente frio e imparcial (alguns críticos acham que Capote teria dado ênfase a Perry, com quem supostamente teria um caso, mas isso não pode ser levado em conta, pois não aparece na obra explicitamente). Contudo, os assassinos não sabiam o que Capote estava escrevendo. Em certa carta ao escritor, Perry – que era humano e também era monstruoso – escreveu : “Disseram que o livro só vai ser vendido depois da nossa execução. E que o título é ‘A Sangue Frio’. Quem está mentindo? Parece que alguém está. Francamente, ‘A Sangue Frio’ é de chocar qualquer consciência”. E sem dúvida alguma chocou.
“A execução anterior (de Dick Hickock) não o pertubara, pois nunca dera muita importância a Hickock, que lhe parecia apenas ‘um ladrãozinho’ ordinário, que saíra de sua categoria, vazio, não valia nada. Mas Smith, embora fosse o verdadeiro assassino, despertava outra espécie de reaçao, pois Perry possuía a alma do animal ferido, da criatura exilada que o detetive não podia menosprezar. Lembrou-se do primeiro encontro com Perry, na sala de interrogatórios em Las Vegas: o menino-homem, quase anão, sentado na cadeira de metal, os pés em botas mal tocando o solo. E foi o que viu, quando abriu de novo os olhos: os mesmos pés infantis, tortos, balançando [na forca]”. (trecho do livro)
Por fim, a grande qualidade deste livro – obra clássica do jornalismo literário – é o distanciamento jornalístico do autor, que acaba utilizando a corrida da apuração em ritmo de reportagem policial para chegar ainda com fôlego até o final do percurso – a finalização da obra – que se prolongou por 6 anos, só podendo ser concluída quando Perry Smith e Richard Hickcock (Dick) foram executados (a tensão narrativa nos leva a ler euforicamente até o grande dia…). O poder de observação perpassado por Capote certamente é uma das melhores habilidades do autor ao finalizarmos a leitura desta obra fundamental do jornalismo literário do século XX. A única certeza é a de que nenhum leitor acaba imune à obra genial de Truman Capote, por mais indiferente que seja – não há quem não se questione (ou se comova, se irrite, reaja de alguma forma!), com a frieza de ambos, autor e assassinos: é uma leitura literalmente repleta de frieza, escrita a sangue gélido.
ASSASSINATO NA PACATA CIDADE DE HOLCOMB, pelo viés da colaboradora Gabriela Gelain*
*Gabriela Cleveston Gelain é acadêmica do 5º semestre de jornalismo – UFSM e confessa que no final das contas, ainda teve um pouco de pena de Perry Smith. Ela também escreveu para a revista o Viés os artigos ZINES, VÍDEO, MÚSICA, ARTE, SKATE: SESPER e A CONTRACULTURA DO MUNDO SUBTERRÂNEO.
Como e estreito o fio que sustenta a existencia humana.