A LIBERDADE NÃO SE IMPLORA DE JOELHOS

Da esquerda para a diteira, Menna Barreto, Batista Luzardo, Leonel da Rocha, Honório Lemes, Assis Brasil, Cel. Setembrino de Carvalho, Pinheiro Machado, Gal. Zeca Netto, Gal. Felipe Portinho e Estácio Azambuja.

Orgulho de ser gaúcho, a maioria do povo do Rio Grande do Sul tem. No entanto, muitos não conhecem bem a História do estado, nem os nomes de muitos personagens que fazem parte dela. Honório Lemes é um deles, e pode-se dizer que é “um dos grandes”. A História gaúcha definitivamente não é um exemplo de pacifismo, mas as por vezes violentas revoluções serviram para definir as virtudes deste povo, simbolizadas nas atitudes dos heróis que lutaram pela melhoria do estado. Grandes homens cujos nomes deveriam ser lembrados; ou melhor, nunca esquecidos.

O século XIX foi marcado por conflitos sangrentos no Rio Grande do Sul. Em 1835, a Revolução Farroupilha, também conhecida como Guerra dos Farrapos, explicitou a insatisfação da população junto às políticas imperiais, em função dos altos impostos cobrados em cima dos produtores de charque da província (estado). Muitos combatentes gaúchos morreram pela causa, que chegou a defender a abolição da escravatura e, principalmente, a separação do Rio Grande do Sul. A Revolução Farroupilha durou até 1845, concretizando-se como o conflito armado mais longo já ocorrido no continente americano.

Algumas décadas depois, após a Proclamação da República no Brasil, em 1889, outra peleja iria eclodir no estado. Dois grupos antagonizavam a disputa pelo poder político: o Partido Republicano Riograndense (PRR), composto pelos então conhecidos como pica-paus (mais tarde, chimangos, depois da publicação do poema de Ramiro Barcelos, “Antônio Chimango”) e o Partido Federalista (PF) (composto pelos maragatos, grupo marcado pelo uso do lenço vermelho). O clima, que já era de instabilidade política, ficou à ponta de faca quando, em 1892, o republicano Júlio de Castilhos foi eleito para a Presidência do estado (cargo equivalente ao de governador). O PRR era a favor do presidencialismo, e de uma maior autonomia aos estados, enquanto os federalistas defendiam o parlamentarismo e o Brasil como União Federativa. Diante do clima tenso que pairava no solo gaúcho e do crescente atrito entre os grupos políticos rivais, deflagrou-se, em 1893, a revolução.

O “Leão do Caverá” posa para fotografia. Autor desconhecido.

Naquela época, em todos os estados brasileiros, os coronéis exerciam os poderes locais e davam sustentação para que se mantivesse um governo central, normalmente situacionista. No entanto, no livro “Honório Lemes, um Líder Carismático: Relações de Poder no Rio Grande do Sul”, de Mariza Simon dos Santos, no qual a historiadora faz uma análise do coronelismo no estado, verifica-se que os coronéis da fronteira gaúcha eram, ao contrário, em sua maioria, opostos ao governo central do Rio Grande do Sul. E foi, portanto, com o apoio destes coronéis que os seguidores de Gaspar Silveira Martins, fundador do PF, iniciaram a guerra.

Surge o Leão do Caverá

Tendo nascido em 23 de setembro de 1864, em Cachoeira do Sul, Honório Lemes da Silva participou ativamente da Revolução Federalista aos 29 anos. Manoelito Carlos Savaris, presidente do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF) e estudioso da História do Rio Grande do Sul, afirma que “Honório Lemes participou da Revolução, iniciando como oficial subalterno na força federalista de Manoel Machado Soares, que foi quem o cognominou de Leão do Caverá”. A denominação, de acordo com Mariza Santos, foi lhe dada em função do amplo conhecimento que tinha da Serra do Caverá, onde batalhou na Brigada comandada pelo coronel.

De família humilde, com feições mestiças e estatura mediana, Honório Lemes mudou-se aos 12 anos para Rosário do Sul. O menino cresceu ouvindo histórias sobre revoluções e nomes como o de Gaspar Silveira Martins. “Tinha a fala estropiada”, diz Manoelito no texto “Como era chamado Honório Lemes”. Isso porque não teve muito tempo para estudar, pois a vida de tropeiro começou cedo. As habilidades nessa área foram importantes para o seu futuro como comandante militar e já denotavam uma das características de sua personalidade: “A atividade de tropeiro deu-lhe o conhecimento dos campos da região e sua honestidade, a confiança dos fazendeiros”, afirma Mariza.

Honório Lemes, que foi presidente do diretório do PF em Rosário do Sul, teve, durante a Revolução Federalista, a possibilidade de se engajar ainda mais politicamente e, por ser um bom combatente, chegou ao posto de coronel das tropas ofensivas. O conflito terminou em 1895 e foi marcado pela violência: cerca de 10 mil pessoas morreram, e a degola foi estabelecida durante o confronto como prática comum dos dois lados adversários.

Mesmo depois do fim da guerra e da entrada no século XX, o clima político no Rio Grande do Sul continuava tenso. O PRR permanecia no governo do estado. Depois da morte de Júlio de Castilhos, em 1903, estabeleceu-se no poder o também pica-pau Borges de Medeiros, dando início ao longo período que seria marcado pelo “borgismo”.

O PF continuava fazendo oposição ao governo do estado, porém de forma branda, até o início da década de 20. Segundo o professor de História da UFRGS Luiz Alberto Grijó, os anos 20 foram conturbados em termos políticos no país, refletindo no estado e piorando as já existentes questões ideológicas locais. “Depois da década de 20, há muitas lideranças importantes do PRR que se tornam oposicionistas, aliando-se ao PF”, afirma o historiador, ressaltando a gravidade da crise que aqui se desenhava.

No país, a acirrada disputa entre os candidatos a Presidência da República Artur Bernardes e Nilo Peçanha dividia os grupos políticos nos estados da nação. Aproveitando o momento de ânimos exaltados no Rio Grande do Sul, também, segundo Mariza Santos, em função da crise da pecuária que colocara os fazendeiros contra Borges de Medeiros, o PF lança a candidatura de Assis Brasil, um ex-republicano, ao governo do Rio Grande do Sul, contra o então governador, que disputava o 5º mandato.

A campanha do PF foi forte pelo estado. Os maragatos achavam que este era o melhor momento para derrubar o PRR do poder. As eleições foram conturbadas, tanto no estado quanto no Brasil. Artur Bernardes foi eleito presidente, o que era favorável aos federalistas, já que Borges havia apoiado Nilo Peçanha. No entanto, o cargo acabou ficando novamente nas mãos do candidato republicano, derrotando os “libertadores” (como eram chamados os federalistas). Os líderes do PF não aceitaram o resultado dessa votação considerada um tanto quanto nebulosa, argumentando que as eleições haviam sido fraudadas. Na verdade, conforme conclui Mariza no livro, em função do coronelismo estabelecido, as eleições da época acabavam sempre sendo fraudulentas.

Grijó acredita que o argumento foi apenas uma desculpa dos federalistas, que há tempos buscavam uma forma de acabar com as seguidas décadas de governo republicano no estado. “Isso foi um pretexto para que eclodisse, no interior do Rio Grande do Sul, um movimento armado contra Borges de Medeiros.”

A Revolução de 23 e a estratégia de Honório Lemes

“Os lenços colorados – maragatos – contra os lenços brancos –chimangos”, descreve Manoelito. “A revolução de 23 tem a seguinte característica: dificilmente a gente pode encontrar nela o objetivo de tomar o poder pelas armas, porque a disparidade era muito grande”, afirma Grijó. Isso porque, conta o professor de história, o governo do estado contava com uma brigada militar (que era uma espécie de exército do estado) muito bem armada, tanto em termos de equipamento e treinamento quanto em quantidade de oficiais. “O que os federalistas buscavam era conturbar o estado, de forma que viabilizasse uma intervenção federal”, completa Grijó.

Então, o cenário se desenhou da seguinte maneira: um exército completo do estado contra uma frente revolucionária composta por várias colunas. Entre elas, a mais eficiente foi a que estava sob comando de um maragato de coração e tropeiro e comandante por vocação: Honório Lemes. Aquele homem já com 59 anos, de poucos estudos, mas inteligência de sobra, levando consigo para o combate os cinco filhos homens já crescidos, assumiu a frente das Forças Rebeldes da Fronteira Sudoeste. “Assim, ele acaba se tornando, dentre as lideranças oposicionistas, a mais importante sob o ponto de vista do comando propriamente militar”, conta o professor Grijó.

Uma vez no comando do que seria sua participação mais importante para a História do Rio Grande do Sul, Honório Lemes assume uma estratégia que evitava o confronto direto. “A forma melhor que ele teria para perder de uma vez era bater de frente com os republicanos”, explica o professor de História. Honório Lemes sabia que seus adversários estavam muito bem armados e em maior número. Por isso, planejou batalhas sem combates, a chamada “guerra de mobilidade”. Antes de as tropas rivais chegarem no local onde sua coluna estava, o Tropeiro da Liberdade desocupava as terras, escolhendo um outro lugar para ficar. E, lá, esperava pelos republicanos. Assim foi sucessivamente, e essa tática, possibiliatada pelo conhecimento do território que tinha adquirido como tropeiro, foi que colocou Honório Lemes na história das coxilhas gaudérias.

Mas não foi só de fugas que se fez a coluna do tropeiro. Ele partiu da Serra do Caverá, seu porto seguro, em direção a Alegrete. Em 23 de março de 1923, invadiu a cidade. De lá rumou, junto a 2 mil rebeldes, ao município de Uruguaiana. Nessa investida, encontrou resistência por parte das tropas de Flores da Cunha que ocupavam o lugar, e teve de recuar. Pressionado pelo exército inimigo, o leão voltou para o Caverá, de onde lutou em mais alguns conflitos.

“Depois de vários meses de escaramuças, inclusive com uma marcha até a região missioneira, Honório Lemes reúne-se com os demais comandantes revolucionários em Pedras Altas, município de Pinheiro Machado, para tratar da proposta de pacificação apresentada pelo Marechal Setembrino de Carvalho, enviado ao sul pelo Presidente da Republica”, conta o tradicionalista Manoelito.

A guerra não durou muito e não foi tão violenta quanto as que a antecederam. “Percebe-se que a mobilização teve uma finalidade propriamente simbólica dentro da disputa política, diferentemente das anteriores”, afirma Grijó. “Em termos políticos se faz o acordo, ou pacto, de Pedras Altas, no qual Borges de Medeiros se comprometia em não se candidatar mais”. Com isso, as lideranças políticas antagônicas se apaziguaram, mas os comandantes não queriam aceitar o acordo, considerando-o injusto. No país, acontecia o chamado movimento tenentista, de jovens oficiais descontentes com a situação política do Brasil. Identificando-se com a insatisfação militares, Honório Lemes decide participar da revolta e continuar em combate. O movimento impulsionaria, mais tarde, o surgimento e a luta da Coluna Prestes, um movimento de abrangência nacional que pretendia depor o Presidente da Republica, Arthur Bernardes. Honório Lemes chegou a conhecer Luís Carlos Prestes, que era admirador do comandante.

O herói carismático

“Em 1925 o caudilho tentou nova revolução, mas, sem apoio, seu intento durou somente 10 dias e lhe custou a prisão”, conta Manoelito sobre a prisão de Honório Lemes. Contando com a chegada de mais combatentes para sua frente, Honório Lemes preparou-se para enfrentar as tropas governistas. No entanto, os homens que esperava não conseguiram chegar, pois foram descobertos e presos. Ao se ver encurralado com os seus cem homens pelos mais de mil inimigos, o comandante não teve dúvidas: rendeu-se para salvar seus seguidores e garantir-lhes a vida. Flores da Cunha, comandante das forças que por muito tempo tentaram derrotá-lo, no fundo, guardava pelo guerreiro uma profunda admiração e escreveu depois do episódio em que recebeu a rendição de Honório Lemes: “Honório estava esperando a faca e eu o abracei. Honório arrancou do revólver e do espadim para entregá-los a mim o que não aceitei e disse-lhe: ‘Guarde as suas armas general, um homem como o senhor não deve andar desarmado’. E abraçamo-nos e os olhos de Honório umedeceram. Falou-me então: ‘Como quer que eu lhe chame? De doutor ou de general?’ E respondi-lhe: ‘Sou bacharel em Direito. Pode me chamar de doutor, se quiser!’. ‘Está certo’, disse-me Honório, ‘porque general até um índio rude e grosso como eu pode ser’”.

O sentimento de Flores da Cunha, que reconhecia tanto suas características como pessoa, quanto suas habilidades militares, expressa o que Honório Lemes significou. A humildade, modéstia e honestidade que sempre manteve, além de um dom que lhe era natural, descrito por Mariza Santos como “carisma”, fez com que fosse reconhecido já na época como herói. Segundo Grijó, além de ser um grande líder que mobilizava tropas inteiras, em termos sociológicos, ele se constitui como herói, porque as pessoas acreditavam que ele era capaz de ações extraordinárias. “A sua liderança política e militar foi sendo desenvolvida, e os participantes da coluna comandada por ele lutavam pelo fato de estarem do lado dele, pois realmente acreditavam que Honório Lemes era capaz de fazer algo por eles, pela população e até pelo país.”

O fato de ter a mesma origem e, segundo seus próprios companheiros, ter “fala simples” e vestir-se “como os outros gaúchos” fez com que o povo se identificasse com ele, aderindo à sua luta. Doavam-se aos seus comandos sem restrições, por um bem que sabiam, seria comum a todos.

Depois de ficar preso por dois anos, Honório Lemes foi exilado no Uruguai com a família e vivia da venda de leite e queijo. Mas a sua situação era menos importante que a dos combatentes que ainda estavam presos; entre eles, alguns de seus filhos. O maragato articulava-se para que fossem libertados e, nessas alturas, já se mostrava inconformado com o rumo que seus companheiros políticos haviam tomado.

Jazigo com os restos mortais do “Leão do Caverá” no cemitério São Sebastião, Bairro Antenor Rocha, Rosário do Sul. Foto: Bibiano Girard

No entanto, ainda estava do lado do bem do estado e do país, fato demonstrado em 1930, quando já havia voltado para Rosário do Sul, ao aceitar o convite de Flores da Cunha para comandar tropas na Revolução que levaria Getúlio Vargas ao poder. Honório Lemes reuniu amigos e antigos companheiros para a luta, mas, três dias antes de eclodir a revolução, o lendário federalista faleceu acometido por uma grave pneumonia. Não pode pelear desta vez, mas sua história de lutas já estava, na verdade, completa. Quem conhece as façanhas desse gaúcho, com certeza não as esquecerá. Ele é hoje um herói de outros tempos, mas que nos serve de exemplo em uma época em que políticos legislam apenas pelo egoísta objetivo de autofavorecimento. Na sua lápide, em Rosário, a frase de sua autoria revela as causas pelas quais tanto lutou: “Quero leis que governem homens e não homens que governem leis”.

Placa expõe a célebre frase de Honório Lemes. Foto: Bibiano Girard.

Guerreiros de 23

“Quando a morte arrebatar-me
Fica meu pedido cá
Que escrito deixarei já
Para oficial ou soldado
Que eu quero ser enterrado
Nas grotas do Caverá”

Décima de autoria do próprio Honório Lemes mandada publicar no jornal A Plateia de Livramento por Rui Fernandes Barbosa, que recebeu os originais de Cacílio Lima, morador do Batoví, distrito de São Gabriel.

A LIBERDADE NÃO SE IMPLORA DE JOELHOS, pelo viés das colaboradoras Clarissa Londero e Jaqueline Crestani*.

*Clarissa Londero e Jaqueline Crestani são Jornalistas.

3 comentários em “A LIBERDADE NÃO SE IMPLORA DE JOELHOS

  1. Gostaria que revisassem este texto principalmente esta data.

    Diante do clima tenso que pairava no solo gaúcho e do crescente atrito entre os grupos políticos rivais, deflagrou-se, em 1983, a revolução.

  2. Gostaria de adquirir a biografia de Honório Lemes da Silva, O Leão do Caverá, mas a página que informa sobre ela, a biografia, está inacessível. Como devo fazer para obter informações precisas sobre ilustre Lemes. Certidão de Nascimento, Casamento e Óbito seriam muito importante para o meu conhecimento. Obrigado, Lemes ( Antônio Lemes de Oliveira, Jales, SP)

  3. Honório Lemes foi um herói que combateu com o coração, assim como o General Neto na Revolução Farroupilha, por este motivo é que na minha opinião foram diferenciados!

    Viva os maragatos, viva o lenço colorado!

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