Política e politicalha não se confundem, não se parecem, não se relacionam uma com a outra. Antes se negam, se excluem, se repulsam mutuamente. (Rui Barbosa)
Tarde de 26 de janeiro, Praça Borges de Medeiros, 33°C. Um cartaz escrito a mão insta: ”por favor, me adote”. Sob o panfleto não há órfão, mas sim uma indignada. Outro cartaz colorido zomba: “R$19.884,00 e nós parcelando o rancho em 12X”. Na volta 300 pessoas entoam palmas, apitam e pedem a anulação de três decretos bolados pelo legislativo, os quais majoram os salários dos partícipes do poder em até 44%. Ernesto, como sempre, presente. Em cartaz, em banner online e em pessoa. Na enciclopédia livre online os dados técnicos sobre a cidade informam que a população, no último censo, não chega a 40 mil. De modo resumido, as informações da Wikipédia cessam sem ilustrar a facécia pulsante da urbe. O último episódio descrito em “fatos históricos” – a primeira edição do festival de música nativa- data, um pouco obsoleto, de 1983. “Por enquanto”, alertam os precavidos.
O espírito de grandeza parece ser marca registrada da pequena Rosário do Sul, no Pampa gaúcho. Numa das portas de entrada percorrem-se quase dois quilômetros sobre uma ponte que liga o centro do estado ao município. Numa das praças, um monumento religioso capaz de causar inveja ao Redentor sobreleva-se às copas das árvores. O tráfego na Avenida Beira-Rio durante os meses de férias põe a Marginal Tietê no chinelo. Para uma alma ostentosa, nada mais justo do que ordenados onerosos para o prefeito, para o vice-prefeito, para os vereadores e para os secretários. A maioria dos habitantes, tranqüilos a sorver seu chimarrão até o recebimento da notícia, não concordou. Os políticos tergiversaram. O coração é grande, mas a algibeira e a resignação da população são rasas.
A condição de descrédito pela qual a perdulária Casa do Povo da ex-rainha da ervilha vem passando não é novidade. Deliberações e votações além do abecedário do cotidiano carecem por lá. Nos últimos três anos os marcos dignos da atenção do povo e da imprensa local reduziram-se a momentos enleáveis.
O dispêndio exorbitante em viagens dos nove representantes é um deles. Cruzando os dados dos gastos dos legisladores pelo número de habitantes, cada rosariense empregou R$5,22 para oportunizar idas e vindas aos pândegos e labutadores vereadores.
“Na Região Central, a Câmara de Rosário do Sul foi destaque”,
apregoava a imprensa em outubro de 2011. Todavia, o laurel de realce não condizia a nenhuma ação política benéfica direta ao município. A partir da classificação corroborada pelo Ministério Público de Contas do Estado, a ex-cultivadora da leguminosa verde postou-se como 5ª classificada na lista das cidades que mais gastaram frações com viagens de edis na rubrica 2010. O gasto chegou a R$ 206 mil. A vizinha São Gabriel, com 65 mil habitantes, gastou R$100 mil a menos com cláusulas dessa ordem.
O então presidente do legislativo, Alson Pereira da Silva (PP), explicando-se como emissário de toda a classe legisladora da cidade, afirmou ter certeza de que os gastos eram revertidos em muitos benefícios para o município, pois majoritariamente as despesas incidiram com viagens a Porto Alegre na procura por avanços e por obras para a cidade.
Não se pode negar que vastas obras ocorreram na cidade nos últimos anos, entre elas, a ainda inacabada construção da nova Câmara de Vereadores, um projeto audacioso de estimado bom gosto. O otimismo popular fundamenta-se em saber que o executor da obra não é parente do magnata do petróleo John P. Rimbauer. No acesso à cidade ergueu-se um pórtico de disposição esportista, lembrando traves e travessão de uma goleira, no valor de R$103.500,00, sendo R$97.500,00 recursos provindos do Ministério do Turismo. Ainda incompleto.
O Minha Casa Minha Vida do legislativo rosariense já recebeu numerosos orçamentos. Em 2009 a Licitação nº 005 para tomada de preços a fim de contratar a empresa responsável pela construção da terceira etapa do prédio, 75% do total da obra, estimava como valor máximo admitido a ninharia de R$ 220.000,00.
Na Licitação nº 044 de junho de 2011, a qual visava a contratação da empresa que desempenharia a edificação da quarta etapa – 1ª parte -, quando foi notada a necessidade da inclusão de mais um sanitário por pavimento, o valor máximo admitido foi menor. Míseros R$ 80.562,00. Por caução estética o edital esclarecia que a empresa vencedora deveria também instalar tubos e outros conectores relativos à instalação de esgoto e tubos de queda do esgoto dos novos sanitários […] para que os mesmos tubos não sejam aparentes nas fachadas externas. Depois de concluídos os vãos de abertura dos sanitários do térreo, do 2º e do 3º pavimentos, notou-se a necessidade da redução dos mesmos. Novo reboco e pintura foram solicitados. Esta fase precisaria ser rematada antes da disposição dos vidros temperados na fachada.
O novo plenário infelizmente não carregará em sua estimada biografia noites como a gélida segunda-feira, 17 de maio de 2010, uma data inesquecível na crônica do pulsar municipal, ocasião esta onde, em ato de grandeza, de benevolência e de bravura a Casa do Povo mostrou-se heróica. Com honras de gravidade e mérito proeminente, alguns dos legisladores tomaram o púlpito de uma das sessões ordinárias a fim de alertar dois apresentadores de televisão que seus nomes e suas imagens estavam sendo reproduzidas na página de um “famigerado site” (em expressão ipsis litteris de uma das legisladoras). Os dados espirituosos do sítio de caráter suspeito não foram bem recebidos, gastando o eufemismo, pelos legisladores, que na percepção de serem os tutores da altanaria e da moral rosarienses, levaram o sítio à contenda. A Desciclopédia caiu no desprestígio. Os ânimos se exaltaram. Houve edil que se sentiu ridicularizado em saber que sua zelosa reputação virara chacota notória passível a enodoar os anais da história da cidade.
Mas nem de vidros temperados nem de apreciações à Desciclopédia foram concebidos os discursos das últimas semanas no plenário. Com certificação conveniente para aumentarem os salários dos poderes legislativo e executivo em até 44%, os vereadores de Rosário do Sul entraram novamente para o hall das estrelas da programação jornalística local. “Em cidade pequena, a imprensa não cobra, pois precisa dos ‘amigos’ para se manter viva, o que colabora para que escândalos como esse sejam abafados”, escreveu um jornalista natural da cidade. Mas a imprensa local, tomando a atitude de divulgar a gravidade do que estava por suceder, bancou o atilamento popular e funcionou como braço direito do movimento social.
O que não estava no horizonte da asseveração do aumento da remuneração do prefeito, do vice-prefeito, dos vereadores e dos secretários era a massa de 300 pessoas que na tarde de 26 de janeiro tomaria a Praça Borges de Medeiros, em frente à Prefeitura, usando os degraus da Pira da Pátria como tablado para sermões indignados contra a cruzeta despótica dos legislados contra os cidadãos. O movimento alargou. A Avenida Amaro Souto, endereço tanto da Câmara quanto da Prefeitura virou palco de manifestação histórica. A imprensa local, sobretudo os dois jornais impressos de maior circulação, ao oposto da omissão, abriram suas páginas para promulgar não apenas a manifestação, mas os porquês do descontentamento dos eleitores quanto à atitude de seus governantes.
“Manifestantes ocuparam hoje a Rua Amaro Souto, em frente à prefeitura. A população cobrava, entre outros, a anulação do reajuste que elevava para quase R$ 20 mil o salário do próximo prefeito. Caso o aumento persistisse o prefeito de Rosário do Sul passaria a receber aproximadamente R$2.500 a mais que o governador Tarso Genro”. O salário do vice-prefeito acenderia de R$ 8.200,00 para R$ 10.400,00. Os secretários municipais sairiam dos atuais R$ 3.300,00 para R$ 5.300,00.
Após algumas horas de ato, os manifestantes se achegaram pacificamente ao prédio amarelo onde está localizado o gabinete do prefeito Ney Padilha (PSB). Como o decreto fora aprovado pela Câmara e sancionado por ele, Ney Padilha, em confissão de deferência, constrangido também pela desaprovação popular e pela propagação barulhenta sobre os fatos efetivada pela imprensa, abriu a porta do prédio, foi ao meio dos manifestantes e reconheceu o equívoco: “Os políticos ouvirem a comunidade que os elegeu, tomarem atitudes pedidas por quem os elegeu, é a verdadeira democracia. Voltar atrás não é vergonha. Vergonha seria ter a soberba de persistir no erro”. Os nove vereadores, durante sessão extraordinária, derrubaram por unanimidade a elevação dos próprios salários. A decisão de aumento, anteriormente, tinha sido benquista igualmente pelos nove vereadores.
Segundo uma das organizadoras do movimento, o qual ganhou a alcunha de Primavera Rosariense – em alusão às centenas de protestos ocorridos em alguns países árabes durante a estação, uma nova votação deverá acontecer na Câmara em abril: “Esperamos o abril chegar. Sinceramente sinto esperança de que uma atitude decente e racional seja tomada, estamos apostando nisso!”, escreveu Lenise Severo, estudante de História.
Em abril os vereadores votam um novo aumento.
“Todos os nossos atos são políticos. Foi-se o tempo em que o chefe de família era o homem, que os políticos eram intocáveis. Fizemos um ato, fizemos um ato com crianças, com jovens e com adultos. E o mais importante: houve um resultado palpável, perto de nós, o movimento aconteceu e os próprios manifestantes viram o resultado na sua frente”, disse a professora do ensino público Vera Lúcia Nascimento. “O que não podemos deixar acontecer é o movimento desandar. Precisamos fazer uma nova cidade, uma nova sociedade. Não podemos confundir política com politicagem. Agora é hora de a Primavera Rosariense entrar nas escolas”, completou a professora. “Uma pena que muitos professores do ensino público municipal se sintam acuados a participar deste movimento pela educação da cidadania. Muitos têm medo de represália”, lembrou outro manifestante. Nas palavras de um conselheiro senhor, o advogado e professor da cidade, Dr. Rubens Vianna, preso durante o Regime Militar, “O estudante tá subjugado, ele aceita sem questionar. Por que chegamos a este ponto? Precisamos fazer contatos com os movimentos estudantis. Onde está a União Nacional dos Estudantes? No meu tempo, estudante era recebido por qualquer autoridade sem esperar uma audiência. O estudante tem que se ver como autoridade. Só assim se muda essa história”.
VEREADORES EM APUROS, pelo viés de Bibiano Girard
bibianogirard@revistaovies.com
É contagiante ler este artigo e visualizar essas fotos que demonstram o interesse da população pelas questões públicas. Fico esperançoso e levemente entusiasmado com a possível melhora na conscientização política nas pequenas cidades.
Nasci e atualmente resido numa cidade do interior de São Paulo. José Bonifácio, conhecida na região como “cidade amizade”, se deteriora pela expícita falta de interesse dos representantes públicos e contribuintes. Poucos meses atrás, os próprios vereadores aumentaram os salários de sua classe em 88%. A discussão política é sinônimo de ofensas, a ponto de um vereador, numa das sessões da camâra chamar um jornalista da cidade de nazista, por uma opinião divulgada em seu perfil do facebook sobre o corte de árvores, no mínimo supeito, de uma praça tradicional e relevante da cidade (http://aldeia-mundus777.blogspot.com.br/2012/03/vejam-os-elogios-que-recebemos-do.html).
Uma retribuição nada amiga para o povo, enquanto o mesmo segue calado.
Acredito que a ausência de uma imprensa incisiva contribua para essa situação.
Aos poucos surgem nformações e vagos blogs que não possuem força para uma mudança de opinião e atitude do cidadão bonifaciano.
A população de minha cidade, cerca de 75.000 habitantes, deveriam ter algumas aulas com o cidadão rosariense. Faria muito bem ao meu município.
Parabéns rosarienses!.