Escutei certa vez de um sindicalista a seguinte afirmação (que não é literal, porém mantém seu sentido): “Fui questionado pelo meu patrão o motivo pelo qual eu ainda lutava pela redução de minha jornada de trabalho, uma vez que já havia conquistado as 30 horas semanais. Respondi a ele que, tendo as 30 horas, seguiria lutando pelas 25. E se um dia eu tivesse as 25, lutaria por 10, lutaria por cinco…”.
Para alguns, o dito logo acima não faz o menor sentido. Aliás, é compreensível que não o faça. E por um motivo principal: o fato de que, em nossa atual sociedade – articulada sobre as bases da meritocracia provinciana – não existe espaço para contestar a ordem vigente do trabalho. O trabalho é visto como braço aliado do mérito. O esforço, o empenho, a capacidade intelectual e física. Não apenas a capacidade enquanto seres humanos de nos organizarmos e de nos fazermos agentes sociais a partir do nosso trabalho – mas a equiparação cada vez mais latente de nos assemelharmos às máquinas, a uma imensidão de exércitos treinados para levantar peso, esforçarmos-nos mais para levantar mais peso e receber pouco por isso. Não poder contestar.
Aliás, qual o crime em querer trabalhar pouco? A frase do nosso caro sindicalista nos parágrafos acima traduz o receio entranhado em uma sociedade produtivista: não é admissível, e nem mesmo possível, que eu não produza. Que eu não renda. E são esses mesmos termos utilizados em nossa linguagem cotidiana de trabalho. Não é parte do meu ofício, da minha capacidade, da minha habilidade humana em construir, em trabalhar – mas o meu aspecto mais mecanicista, produtivista – o retrato da minha linha de montagem. Sair da linha é perigo na certa. E não apenas porque o dinheiro do aluguel, do pão e do leite, ou até quem sabe o supérfluo, porém prazeroso, poderá faltar. Mas porque eu serei, a partir do momento em que cair fora da linha de montagem, o retrato da miséria, do vagabundo, do desajustado social. Alguém que não tem talento. Que não se esforça. Alguém sem mérito.
A ilusão dos lucros em um mundo com olhares diversos a respeito deste mesmo mérito: aos doutores, estudados por anos nas melhores universidades, a ideia disseminada aos quatro cantos de que os anos de seus estudos automaticamente deveriam se converter em anos de lucro e recompensas. Porém, aos mesmos doutores os anos em que um trabalhador passa ao calor do sol, as horas em que ele simplesmente vê sumirem em seu dia, dissiparem em frente aos seus olhos, as horas em que o mesmo está sentado em uma cadeira de um caixa de supermercado, ou mesmo levantando a carga – todas essas horas, que consequentemente serão anos – não contam como investimento. Não são aplicáveis, rentáveis. São imediatos – assim como vêm, vão.
E o que seria senão os mesmos “investimento e esforço” as horas em que um trabalhador braçal dedica ao seu trabalho? Não menos válidas as horas que um estudioso aplicará ao seu trabalho (e nem os quatro, cinco, seis, sete anos que um estudante leva para concluir seu ensino superior). O confuso é que, atualmente, o esforço intelectual produzido pelos estudiosos de nosso tempo corre o mesmo risco de desgastar, acabar por apertar até a última gota de suor do intelecto no mesmo nível em que é possível apertar o suor braçal. O produtivismo, que tanto atacou os trabalhadores da base social, agora atinge também os intelectuais, os trabalhadores do intelecto, os pensadores. É possível, então, que um professor universitário e um operário “chão-de-fábrica” sintam-se, na mesma medida, valorizados? Recompensados? Como é possível calcularmos o valor do nosso esforço, do nosso trabalho? Ou melhor, o que é de fato justo trabalharmos? O que é mesmo necessário?
Questiono a imposição da produção, das horas intermináveis, da criminalização das greves. Dias atrás, o cabo Benevenuto Daciolo, do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, recentemente preso e enviado para Bangu 1, tal qual um estuprador ou criminoso de mesma ordem, falava aos grevistas que, ainda que o governo decidisse lhes pagar 4 mil reais, ao invés dos solicitados 2 mil, não seria de comum acordo que eles sairiam do movimento. Querem mais, que não é mais, mas é o justo: o fim de um governo que recrimina seus trabalhadores e os incrimina por desejarem mais, por lutarem pelo que merecem. Aos olhos da sociedade, o que parece? Motim. Se vão pagar o que é justo, por que reclamar? Mas, afinal, o que é justo receber?
Todos nós despendemos tempo de nossas horas sadias em tarefas, exercícios, obrigações diárias que carecem de nosso empenho. Do contrário, não sustentaremos nosso “padrão de vida”, seja esse mesmo padrão o que for – alto, baixo, médio, intolerável, insignificante.
Não existe espaço para todos. Existe? Todos os que ocupam os cargos mais bem remunerados do mundo são, de fato, os melhores? Desemprego é sinônimo de incompetência?
Eis a crise europeia para nos provar que o desemprego não é sinônimo de incompetência. Que a incompetência provém do próprio sistema capitalista, vigente há séculos (e, nesse sentido, pode ser considerado competente), porém desigual, desestruturado ao tratar de seres humanos. De tudo o que pertence a nossa humanidade.
Não caiamos no ato falho do senso comum, acreditando que o desemprego é sinônimo da incompetência de nossos pares. Tampouco acreditemos que todos aqueles que não possuem a sua ocupação o fazem por falta de oportunidade. Podemos escolher, mas também não podemos. Somos menos livres nesse quesito do que imaginamos ser.
Ninguém precisa inventar desculpas para si mesmo. O mundo do trabalho não está do seu lado, trabalhador. Por mais que você se esforce, e eu sei que você se esforça, a ordem do dia é “faça mais e receba cada vez menos”. Quantas pessoas, das mais diferentes ocupações, podem levantar o braço em resposta afirmativa quando perguntadas se são valorizadas em sua profissão? E quantos da corja desonesta, incompetente, pode receber mais e ainda alegar que é porque merece, que é porque tentou?
Meritocracia, a ilusão dos incompetentes. Sinceramente, diante de toda essa flexibilização e ajustes no mundo do trabalho, quem ainda pode dizer que tem o que merece? Patrão não é amigo. Greve não é crime. O trabalhador não pode ser acuado por ter direitos.
*O título desta crônica é também o título da canção de Nicolás Guillén (letra) e Daniel Viglietti (música), eternizada na voz de Viglietti.
ME MATAN SI NO TRABAJO, Y SI TRABAJO ME MATAN, pelo viés de Nathália Costa
nathaliacosta@revistaovies.com