Infelizmente não posso dizer que fui amigo de Jorge Amado. Nosso único encontro aconteceu em Paris, já não me lembro se em 1994 ou 93. Lembro que lançava na França a tradução do meu primeiro romance e sabia que Jorge Amado estava por lá.
Ele costumava passar a primavera e o verão em Paris e, antes do outono europeu, viajava para Salvador, de modo que vivia sempre entre o verão e a primavera, entre dois paraísos.
Prometi que um dia iria visitá-lo na Bahia e, por timidez, fui adiando essa visita e nunca mais o encontrei. Leseira minha, porque Jorge Amado nada tinha de pomposo nem de formal.
Em 1989, ele me enviou uma carta muito amável em que comentava meu romance de estreia. Aliás, escrevia cartas a vários autores jovens e desconhecidos. Fazia isso por amor à literatura e também por generosidade, algo que não anda na moda nesta época de competição acirrada.
Até mesmo António Lobo Antunes, com seu jeito áspero e sua prosa de inegável alcance estético – até o Lobo foi amigo de Amado e admirador de seus romances. Sem a obra de Jorge, disse certa vez Lobo Antunes, não haveria neo-realismo na prosa portuguesa.
A mesquinharia e a inveja passavam longe da alma desse baiano universal. Eu não via nele nenhuma gota de ressentimento, apesar das críticas que faziam à sua obra, algumas justas, outras cruéis e inconsequentes. Inconsequentes porque, na ficção de Jorge, as falhas não apagam, muito menos anulam a dimensão social e histórica: a densa dimensão humana de sua obra.
O espaço evocado nos romances de Amado ― a capital da Bahia, o coração de Salvador, de Ilhéus e outros lugares ― é tão vivo quanto os personagens que os habitam. O leitor pode quase tocar esses lugares e personagens.
Na extensa e variada obra amadiana há, por certo, uma excessiva recorrência de frases e situações, mensagens ideológicas explícitas, desajustes entre a voz dos narradores cultos e a dos personagens populares. Mas, e daí? Jorge Amado preferiu o prolífico e o monumental à exatidão de uma obra exígua.
Na história da literatura não são muito numerosos os romances perfeitos, cujo objetivo de seus autores é construir uma obra estética, sem frouxidão, sem deslizes, em que as peças se encaixam com precisão, tal uma máquina perfeita. Nenhuma palavra ou frase fora do lugar.
Essas obras perfeitas existem: A volta do parafuso, O coração das trevas, A morte de Ivan Ilitch, São Bernardo, Grande sertão: Veredas e não sei quantas mais. Vamos dizer, com otimismo, que há noventa e nove livros perfeitos nas estantes de uma biblioteca imensa. Uma parte da obra de Jorge encontra-se nessa biblioteca e, nem por isso, ele pode ser considerado um escritor mediano.
Porque é muito raro uma obra mediana sobreviver meio século ou setenta anos. É o que aconteceu com Jubiabá e com Capitães da Areia ― livros que Albert Camus admirava ― e com tantos outros, desde Gabriela, cravo e canela até A descoberta da América pelos turcos.
Num consistente ensaio sobre a arte da ficção, o escritor inglês Edward Foster escreveu que o romance é uma narrativa “encharcada de humanidade”. Não há melhor definição para os romances de Amado, cuja obra será relançada a partir de meados de março.
Espero que os leitores a leiam com interesse e olhar crítico, mas sem preconceito. Porque o preconceito, na literatura e na vida, é uma fonte de cegueira e de veneno para a alma.
JORGE AMADO UNIVERSAL, pelo viés do escritor Milton Hatoum*
*Hatoum é escritor, tradutor e professor brasileiro. É considerado um dos maiores escritores vivos da literatura brasileira. Diplomou-se em arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, trabalhou como jornalista cultural e foi professor universitário de História da Arquitetura e estudou literatura comparada na Sorbonne (Paris III). Em 1989 seu primeiro romance (Relato de um certo Oriente), ganhou o prêmio Jabuti de melhor romance.
O texto foi gentilmente cedido por Milton Hatoum para a publicação. Originalmente publicado no Terra Magazine, em janeiro de 2008.