“Não imagine que seja preciso ser triste para ser militante,
mesmo que a coisa que se combata seja abominável.
É a ligação do desejo com a realidade
(e não sua fuga, nas formas da representação)
que possui uma força revolucionária”
Michel Foucault
CENA 1
Cidade Universitária, zona oeste de São Paulo. Quinta-feira, 27 de outubro de 2011. Três estudantes da faculdade de geografia da USP são flagrados pela Polícia Militar (PM) preparando um baseado no estacionamento. Confiscam seus documentos pessoais e desejam levá-los para a delegacia. Um grupo de estudantes se mobiliza, cerca os policiais e os estudantes flagrados numa atitude de resistência à ação policial. A PM, então, chama reforço e desloca um enorme aparato (14 viaturas, dezenas de policiais e motos). Os estudantes resistem deixando claro que ninguém será levado à delegacia.
Os policiais lançam mão do armamento dito “menos letal” para tentar dispersar, sem sucesso, as centenas de estudantes que se juntaram em solidariedade. Tentam entrar no prédio da faculdade de Ciências Sociais em busca dos estudantes flagrados que se retiraram dali, mas são expulsos do prédio pelos estudantes. O confronto continua com bombas de gás lacrimogêneo, gás de pimenta e balas de borracha. Os estudantes retrucam com paus e pedras e, depois de mais de quatro horas, a PM se retira do local. Os rapazes flagrados foram espontaneamente à delegacia e liberados após assinarem um termo circunstanciado pelo delito de porte de entorpecente.
O episódio é a gota d’água de um processo de ocupação intensiva da Polícia Militar no campus da USP desde a assinatura de um convênio, há quase dois meses, entre a Reitoria e a PM para intensificar a “segurança”, após um estudante ter sido morto no campus. Desde então, relatos de revista dos estudantes, patrulha comportamental a casais gays e abordagens constantes sem justificativa em diversos espaços do campus (CRUSP, ECA, POLI, Letras, Biblioteca etc.) dão conta de que, como previsto pelo movimento estudantil, a PM não está na USP para garantir sua segurança, mas para ameaçar e coibir qualquer manifestação contrária às práticas e atitudes dos alunos, sob pensamento fascista, voltando-se contra os estudantes. Vale lembrar o ocorrido em 2009, quando a polícia invadiu a USP e transformou o campus numa praça de batalha, para reprimir uma greve de funcionários.
A iluminação no campus e a abertura para a comunidade em volta, fazendo desse um espaço habitado todo o tempo, com uma guarda universitária bem treinada, não-terceirizada e com aumento no efetivo, seriam maneiras alternativas de melhorar a segurança no campus sem a sua militarização pela PM. Essa “operação saturação” no campus parece ser o que mobilizou e juntou centenas de pessoas, entre estudantes, professores e funcionários, no estacionamento da faculdade de História e Geografia naquela noite.
A morte do estudante de Ciências Contábeis, na verdade, serviu de pretexto para a instalação de uma política fascista que tomou força ultimamente na sociedade brasileira. O reitor Grandino Rodas, indicado pelo ex-governador José Serra, é criticado desde sua gestão como diretor da faculdade de Direito do Largo de São Francisco, por suas atitudes truculentas como, por exemplo, convocar a tropa de choque para expulsar militantes do MST e estudantes do Largo que promoviam um ato na faculdade. Sua gestão na reitoria, igualmente autoritária, é marcada pela absoluta falta de transparência, ausência de diálogo e aparelhamento da estrutura da universidade por setores reacionários.
É evidente que a PM não é bem vinda no campus da Universidade de São Paulo por aqueles que historicamente lutaram contra a ditadura militar e conquistaram a autonomia universitária. Como o professor de história da USP, Henrique Carneiro, nos lembra, “A PM no Brasil é um entulho autoritário do período da ditadura militar, é uma polícia militarizada com foros privilegiados que se constitui na força policial mais violenta do mundo.” Vale lembrar que é uma instituição que, em seu site, manifesta orgulho de ter participado como órgão de repressão política na ditadura militar.
E o que as drogas têm a ver com isso tudo?
A política de guerra às drogas tem se revelado, desde sua origem, como artífice para perseguição de determinados setores da sociedade, justificada pelo discurso da segurança e saúde. Na onda da reorganização de setores neofascistas a que temos assistido nos últimos tempos, o reforço de práticas e discursos punitivos encontra terreno fértil para se estabelecer. Assiste-se, então, à constituição de um Estado Penal, de um fascismo em trajes democráticos.
A reação estudantil à apreensão dos três colegas volta-se para a defesa da autonomia universitária e revela os desatinos dessa política de segurança pública que tem, na proibição das drogas, o caminho para a intervenção punitiva e para o controle político de corpos e condutas. O uso da cannabis sativa (nome científico da maconha) ao ar livre, conduta que não afeta ninguém, exceto quem a usa e que já não é punida com prisão pela lei brasileira, é prática disseminada há milênios entre milhões de usuários, não apenas na USP, mas em todo o mundo.
O papel da polícia na coerção de práticas culturais recreacionais e de estilos de vida característicos da juventude e das camadas populares a torna um veículo de distúrbio da paz social e uma fonte de corrupção devido às extorsões comumente praticadas contra usuários de substâncias ilícitas. É descabida a intervenção do Estado na autonomia individual. A história mostra que, quando o Brasil criminalizou a cannabis, em 1830, visava a coibir uma prática associada a escravos negros em rituais religiosos, o que escancara mais uma faceta dessa política de drogas: ela é racista! Embora discursos reacionários e moralistas tentem difundir o proibicionismo por um mundo “livre de drogas”, sabemos que se trata de um artifício, de uma cortina de fumaça para esconder a questão de fundo, que envolve toda uma rede de interesses dos setores conservadores, representados pelo sistema financeiro, a indústria farmacêutica, a chamada indústria de controle do crime (armamentista e de segurança), setores religiosos etc.
Longe do que a imprensa-marrom faz parecer, não se trata da defesa de um “território livre” fora da lei, mas de uma luta política contra o totalitarismo das forças de segurança contra certos grupos. O discurso midiático que tenta se mostrar como neutro (isento de ideologia) busca apenas legitimar esse avanço conservador sobre o território sempre resistente da universidade. Fenômeno esse correlato ao que W. Reich observou em seu Psicologia de Massas do Fascismo: parte da população desejava o fascismo e constituiu o caldo fértil para a ascensão de Hitler na Alemanha.
Nesse sentido, é lamentável a avaliação de parte da esquerda moralista no sentido de que ainda não é o momento para uma luta política sobre o tema das drogas. As drogas são o grande dispositivo de poder que viabiliza estratégias de guerra contra pobres, adolescentes, jovens adultos, punks, mulheres, gays, estudantes, grafiteiros, rebeldes e marginais do nosso tempo. O que aconteceu na USP rememora o que Raul Zibechi disse sobre a guerra às drogas e a América Latina: “Não importam as drogas, como não importava o comunismo”. O que importa é a possibilidade de controle e repressão de determinados grupos sociais pelo medo, pelo achaque, pela constante vigilância.
CENA 2
Casa de Cultura Palhaço Carequinha, Parque América (Grajaú), extremo sul da cidade de São Paulo. Sexta-feira, 29 de outubro de 2011. O Coletivo DAR, o Coletivo Imargem, o CDHEP e o CEDECA Interlagos promovem um cine-debate sobre o documentário Cortina de Fumaça com jovens do bairro. O espaço cultural e a praça que fica em frente são rodeados por várias escolas públicas. O local, então, é ponto de encontro e espaço público de convivência de adolescentes e jovens estudantes, onde se reúnem para se divertir.
No debate, os jovens manifestaram os efeitos perversos que a política de guerra às drogas produz sobre a periferia territorial dos centros urbanos. Mostraram ainda o quanto o assunto é veiculado como tabu pelas famílias, pela mídia e até mesmo nas escolas, no que pode servir de exemplo o PROERD – Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência, apontado como único programa público que se propõe a debater questões relacionadas; entretanto, por meio de policiais militares fardados que entram nas escolas para falar sobre drogas. Os jovens sentem falta de mais debate e informação sobre o tema, pois veem nas fontes mencionadas um discurso moralista e alarmista.
Acabada a discussão, por volta das 22h, saímos à praça e nos deparamos com o ensaio da bateria de uma escola de samba local. A praça estava, como de praxe, lotada de jovens bebendo e conversando descontraidamente. Por volta das 22h30min, os grupos rapidamente se dispersaram num sentido único, o que causou estranheza para alguns de nós ali presentes. Ao buscar saber o que acontecia, vimos policias militares “tocando” os jovens como se fossem gado aos gritos de “vai pra casa!”, “saiam daqui!”. Tratava-se de um verdadeiro toque de recolher promovido pela polícia militar a fim de “resguardar a ordem e a salubridade públicas”, palavras essas do comandante da operação, que segurava uma espingarda calibre 12.
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Estarrecidos e indignados com a cena, fomos depois descobrir detalhes sobre o que se passava. Um morador relatou que há algumas semanas o clima piorou bastante na região, depois que a policia militar intensificou ações supostamente para coibir o uso de álcool e outras drogas entre os adolescentes que se reúnem ali. Numa sexta-feira, dia em que o local está mais cheio de jovens, a polícia militar chegou dispersando os grupos de jovens com o uso de bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha. Mandaram também fechar o comércio, ameaçaram e achincalharam moradores que afirmaram: “a gente sabe lidar melhor com os noias do que com esses aí”, referindo-se aos policiais. Desde então, a polícia se faz presente ostensiva e diariamente, por meio da GCM e da PM, de forma a transformar a praça pública num espaço vazio, “limpo”, nas palavras dos PMs. Questionados sobre a arbitrariedade da ação, o tenente respondeu: “não foi usada violência, não demos nenhum tiro, a simples presença física foi suficiente para limpeza da área”.
O toque de recolher é prática que vem ganhando força nos últimos anos na esteira do recrudescimento do estado penal. Em 2005, na cidade de Fernandópolis, no interior de São Paulo, um juiz da infância e juventude, com base no alegado poder discricionário, estabeleceu, por meio de uma portaria judicial, o “toque de recolher” dos jovens nos espaços públicos urbanos a partir das 22h. Justificando-se através da prevenção da ocorrência de crimes, entre os quais o do uso de drogas, a prática é ancorada num discurso hipócrita da tutela, de “proteção” dos jovens, quando busca, de fato, o controle político dos corpos jovens e de suas condutas marginalizadas na periferia do capitalismo.
No estado de São Paulo, a prática foi copiada por diversos outros municípios, tais como: Ilha Solteira, Itapura, Mirassol e Cajuru. Há, hoje, na Assembleia Legislativa, um projeto de lei que pretende estender a medida para todo o estado. Ora se utilizando da via judicial, ora de leis municipais, sabe-se que a medida já foi posta em prática em outros 19 estados brasileiros, em pelo menos 72 municípios.
Um breve inventário de tal prática nos levaria à Alemanha nazista, à Itália fascista, ao apartheid estadunidense e sul-africano, bem como às recentes ocupações de praças públicas na Tunísia e no Egito, além da ocupação da Palestina pelo Estado de Israel. No Brasil, a única situação permitida constitucionalmente para a restrição da liberdade de locomoção com medidas dessa natureza consiste na decretação de estado de sítio pela Presidência da República. Ou seja, estão tratando os adolescentes como inimigos do Estado.
Vê-se então que a política de guerra às drogas serve de justificativa para a ampliação do Estado Penal e o estrangulamento dos direitos civis em nome das ditas “segurança e salubridade públicas”. Como diz Nilo Batista a respeito da proibição das drogas, a noção de certas coisas como ilícitas remonta à própria inquisição, um “caminho para o poder punitivo chegar mais rapidamente ao corpo do sujeito criminalizado”. Atualmente, servem à prática corriqueira da polícia militar de enquadrar jovens pobres e negros como traficantes de drogas ou perturbadores da ordem pública, portanto, como inimigo público que deve ser encarcerado – se não exterminado.
Além do campus da Universidade de São Paulo e da praça pública no Grajaú, bem como em tantas outras quebradas da cidade, as consequências desastrosas da política neofascista de segurança pública e de guerra às drogas pode ser vista no centro da cidade, no território conhecido como ‘cracolândia’. Celebrando a união da Associação Brasileira de Psiquiatria e setores reacionários da medicina com especuladores imobiliários, o governo municipal e o poder judiciário ensaiam, cada qual a seu tempo, a implantação da medida que ficou conhecida na cidade do Rio de Janeiro como internação compulsória. Visam a retirar e enclausurar jovens miseráveis, usuários de crack e a população de rua como um todo.
Usando também da falácia da tutela, julgam todos os frequentadores daquele espaço como incapazes e sem discernimento para tomar as próprias decisões, devendo, por isso, ser encarcerados para tratamento em comunidades terapêuticas. Aqui, o discurso penal se traveste de proteção da saúde dos jovens, mas não passa de um novo intento higienista. Segundo os ditames da Reforma Psiquiátrica, a prática da internação é o último recurso a ser utilizado, quando os extra-hospitalares tiverem se mostrado insuficientes. A internação em massa, assim, não protege a saúde pública, mas esvazia o território da cracolândia para a ocupação do setor imobiliário e esconde o problema da precariedade das políticas de atenção àqueles que abusam de drogas. Tal como o toque de recolher, a internação compulsória é prática que mobiliza o uso de drogas para colocar em prática o estado de exceção, a criminalização e punição de populações marginalizadas.
A discussão sobre a legalização de todas as drogas não é uma luta menor de uma juventude burguesa: é questão que precisa entrar na pauta dos movimentos sociais e na luta cotidiana de todos nós. Trata-se daquilo que disse a juíza aposentada carioca, Maria Lucia Karam: “Muitas pessoas estão abdicando do desejo de liberdade. Há propostas que vêm sendo crescentemente aceitas de troca da liberdade por segurança. Quando uma sociedade aceita trocar a liberdade por segurança, está aceitando trocar a democracia pelo totalitarismo”. Por drogas e pessoas livres, nem prisão, nem manicômio!
DA USP AO GRAJAÚ, O FASCISMO EM DOIS ATOS, pelo viés dos parceiros da revista o Viés, Coletivo Desentorpecendo a Razão – DAR.