Cineasta relevante
Lars Von Trier talvez seja o mais relevante cineasta em atividade. Mas, certamente, não o é pelo fato de soltar declarações polêmicas aqui e ali.
Trier, o artista, se destaca pela qualidade de sua obra.
Em 1995, em companhia de Thomas Vinterberg, criou o Manifesto Dogma 95. Em linhas gerais, o intuito era a produção de um cinema menos comprometido com o capital e que, portanto, abordaria de forma mais livre – e crua – as mazelas humanas.
“Festa de família”, dirigido por Vinterber, e “Os idiotas”, por Trier, ambos de 1998, foram os primeiros frutos do manifesto.
Lars Von Trier viria a dirigir depois, entre outros, os indispensáveis “Dançando no escuro” (2000) e “Dogville” (2003).
Desde “Dogville”
É possível que, desde “Dogville”, o cineasta não tenha realizado um filme tão plasticamente belo e reflexivo quanto o recente “Melancolia” (2011).
Como de costume, a câmera lambe os corpos que enquadra; sucessivos cortes em um mesmo plano são bastante utilizados; o jogo com os elementos fora de campo, que rapidamente vêm e vão, focados e desfocados, tampouco dá trégua – a não ser na (primorosa) sequência de abertura.
A trama divide-se em duas partes. A primeira é dedicada à protagonista Justine – papel que rendeu a Kirsten Dunst a Palma de Ouro. A segunda, à Claire, irmã de Justine.
Na primeira parte, durante um casamento, o olhar de Trier vai fundo nas relações intersubjetivas. Em muitos aspectos, a metade inicial do filme dialoga com o já mencionado “Festa de família”, de Vinterber.
Na segunda parte, o palco se esvazia (porque vazio já estava) e as pequenas – porém agudas – explosões abrem literalmente espaço para o que pode ser a maior de todas elas.
Melancolia
Em “Luto e melancolia”, ensaio escrito em 1915 por Sigmund Freud, o psicanalista afirma que “a melancolia se caracteriza, em termos psíquicos, por um abatimento doloroso, uma cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e diminuição da autoestima” (trad. Paulo César de Souza, Cia. das Letras).
O melancólico padece de uma perda, podemos dizer, desconhecida. Perda que, diferentemente do que ocorre no luto, não pode ser elaborada, isto é, curtida, curada. Daí a aura de enigma que a envolve.
Daí, também, as analogias que se fazem entre a melancolia e o espaço, com suas galáxias e astros.
Há uma força, uma energia que não se sabe bem o que é (por mais que se tente defini-la pelos cânones da ciência) e que, imprevisível, pode irromper “do nada”.
O cinema, sobretudo o hollywoodiano, é pródigo em explorar essa aura – ao mesmo tempo encantadora e aterrorizante – que paira sobre o espaço sideral.
Trier, contudo, muito embora trabalhe com o encanto e o terror – não seriam atributos precisos para descrever Justine? –, o faz em sentido inverso.
Planeta, olho, câmera
O imenso planeta Melancholia, que observa (e ameaça) o pequeno grupo de personagens na segunda parte, poderia ser os olhos de Justine. Ou o olho da câmera. Ou ainda, quem sabe, trata-se de diferentes feições de uma coisa mesma.
E é por isso que, se Trier aborda a temática de explosões espaciais, ele o faz, como disse, em sentido inverso do que, por exemplo, um Spielberg.
Os mocinhos (ou mocinhas) de Lars Von Trier são aqueles que a sociedade mastiga e descarta. Para utilizar uma expressão conhecida, seus mocinhos são anti-heróis (não custa lembrar mais uma vez de “Dogville”).
Nessa medida, retomando a analogia entre o planeta Melancholia e o olho (ou a câmera), o enigma que interessa a Trier não é aquele que a lente de Hollywood amortece e digere num bolo alimentar de pipoca com manteiga e refrigerante.
Seu cinema não é divertido. Talvez sequer entretenha. A aposta não se foca (literalmente) em explosões (ilusórias) impossíveis. O que se vê, através da engenhoca criada pela criança, são os próprios olhos. A explosão é violentamente possível. Concreta.
Mas, com o toque de alguns gênios – o próprio Trier, atriz e personagem principais e, por que não?, a infância – ela pode nos levar até onde o pensamento jamais penetrou. Cure-se quem puder.
A MELANCOLIA DE TRIER, pelo viés do colaborador Renato Tardivo*.
*Renato é Escritor e psicanalista. Mestre e doutorando em Psicologia Social da Arte (IP-USP); autor do livro de contos Do avesso (Com-Arte) e de Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê/Fapesp). E-mail: rctardivo@uol.com.br
Tratado sobre o suicídio
Decididamente: eu não admiro os enforcados.
Estar ali, pendurado
instalação surreal
arte macabra, inusitada
lentos movimentos
cronometrando o tempo
emulando pêndulos
que não estimulam o gênio
de Galileus ou Galileis.
Afora o trabalho que dá
muitos elementos a considerar
precisa-se de uma corda
um banquinho bem alto
uma viga para amarrar a corda.
Massa corpórea
vezes altura do banquinho
vezes comprimento da corda
vezes pressão atmosférica
vezes força da gravidade
vezes alinhamento de Marte com Saturno
vezes cotação do dólar:
haverá na física uma fórmula
que possa livrar o suicida
da tortura do último cálculo?
Não, essa forma não me cabe
imagino o desconforto
não gosto que nada aperte-me o pescoço
afrouxo a gravata nos dias ensolarados.
Um tiro na cabeça é outra forma de despedir-se
os neurônios remanescentes nem tem tempo de reagir
mas… descarto…
meu ouvido é sensível
não quero levar para o além o cheiro da pólvora
nem o eco do estampido
do último tiro
disparado próximo ao ouvido.
Outros preferem saltar de edifícios
executam evoluções aéreas até que mergulham em lagos de granito
A turba está agitada,
não é todo dia que se assiste um suicídio
A área é isolada,
alguém empunha uma faixa
“Por favor, não pule !”
Chegam a imprensa, os bombeiros, o celular com a voz de um amigo
A multidão quase não pisca ou respira
Oh, meu Deus! Tomara que não pule! Ele não pode pular!
Mas lá no fundo, bem no fundo, torcem pelo pior,
para que possam chegar em casa e anunciar em primeira mão:
“Eu estava lá, eu vi, foi horrível ! …”
Eu gostaria de frustrar essa gente que não torce por nós
que põe holofotes sobre nossas tragédias
que assentam-se em arquibancadas
e assistem nossa vida como se ela fosse um picadeiro de circo.
Eu iria lá no fundo do prédio,
onde ninguém estivesse olhando e,
sem nenhum sinal ou aviso,
pularia e diria bem baixinho: good bye.
Mas … não … não faria isso…
poderia cair sobre um passante, um transeunte.
E… se jogar na frente de um carro?
Não, também não, muito deselegante
estragaria a lataria do carro alheio
e não ficaria por aqui para pagar o conserto…
há de considerar-se, ainda,
que o atropelado não pode ser tocado
até chegar a perícia
torna-se um morto inconsequente
ao causar um dos maiores suplícios das grandes metrópoles:
tráfego – de – veículos – interrompido.
Não concordo com isso ou aquilo
A morte deve causar o mínimo de consequências possíveis
para aqueles que não tem nada a ver com isso
não pode atrapalhar o trânsito de veículos ou destinos.
E… queimar-se?
Sem chance, só se o cérebro morresse primeiro.
lanço a polêmica: incinerar-se não é suicídio, é auto-punição
o corpo arde enquanto o cérebro
fica protegido, blindado,
dentro da caixa craniana
cada segundo é eterno
e a mente consciente espera
uma morte tão lenta que parece que nunca chega…
Então… afogamento? Sufocamento? Tipo, morte por asfixia?
Nem pensar, já tô ficando com falta de ar…
Todas as formas são horríveis
tudo causa angustia, dor, sofrimento…
Ah… quem dera…
morrer sem sofrer
morrer sem sentir dor
morrer uma morte suave
morrer com beleza, com poesia…
como estar assim,
sentado sobre o piso de azulejos
a água quente caindo do chuveiro
uma névoa branca de vapor
perfumada, por misturar-se ao cheiro
de sabonetes e xampoos
e um líquido vermelho, viscoso, jorrando
do corte profundo no pulso
diluindo-se na espuma branca
e criando belos degrades
que vão do vermelho sangue ao rosa-bebê
esvaindo-se pelo ralo junto com a água, junto com a vida
e essa dormência, e esse torpor, e essa tontura…
e essa deliciosa… vontade… de dormir…
byClaudioCHS – http://progcomdoisneuronios.blogspot.com
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