“Eu tô te explicando pra te confundir, eu tô te confundindo pra te esclarecer. Tô iluminado pra poder cegar, tô ficando cego pra poder guiar”. Tom Zé parece ter sentado ao nosso lado na poltrona do cinema após pagar o ingresso de partida para um mundo às avessas de ‘Elvis & Madonna’, ou da vida “torta” de Elvira e Adaílton. Quem é Elvis (Elvira, olha nos meus olhos!)?. Quem é Madonna (calma, Madonna, calma, Madonna, calma Madonna)? O que podemos debater após uma sessão de Elvis & Madonna? Trocentos assuntos que embarcam desde a sexualidade, viajando até a intimidade, desvirginando tabus, cunhando charadas sociais de concepção sobre quem são determinados seres humanos do século XXI, esclarecendo dúvidas, questionando certezas, sugestionando sentidos.
Elvis é uma garota ex-burguesa que, para dar conta da vida, assume o emprego de entregadora de pizzas enquanto sua paixão, a fotografia, estabelece sua vontade de viver, de ser alguém que faz o que ama. Madonna é um homem que, derrubado pela vida dura, assume o papel de travesti de boate para arcar com o sonho de estrear seu próprio show. Contudo, a vida mostra aos dois que o show iniciou bem antes, ainda no passado pelo qual ambos optaram para sobreviver. Optar seria o termo errado se levarmos em conta que sexualidade e individualidade num mundo mais plural não sejam produtos a serem adquiridos pelas esquinas da vida. Madonna não quer sofrer nas mãos de seu ex-parceiro de tentativas frustradas e tristes de angariar um dinheirinho fazendo “arte” por fora de seu emprego de cabeleireira em um salão um tanto hilário.
Simone Spoladore novamente mostra porque é uma das melhores atrizes que o Brasil viu brilhar nos últimos anos. Longe de seus personagens televisivos, ultimamente na TV Record, Spoladore entra em cena para arrancar do público a vontade de aplauso no silêncio da sala escura do cinema. Ao contrário dos filmes nacionais que colocam Globais nas telas como se estivéssemos sentados frente à TV de casa, Simone encarna uma lésbica que foge de Ana, de Lavoura Arcaica, do mesmo modo como o Diabo foge da cruz. Já Igor Cotrim, ainda no processo de aceitação popular, merece muito mais do que admiração enquanto carrega pelas ruas de Copacabana uma cabeleira loira, unhas enormes e roupas brilhosas. Madonna é uma personagem inigualável frente aos tantos travestis da cultura do vídeo: sofre, ri, apanha, mas tem o seu “quê” de única.
Se apenas ambas as personagens podem parecer curiosas, não se assuste se você ler os créditos finais aparentando ser mais bizarro, cotidianamente, do que as próprias figuras dramáticas em cena. O texto e o enredo conseguem embaralhar-nos como um bom mestre de cassino faz com as cartas e as roletas enquanto tentamos fugir. Frases dúbias, situações confusas, reações inesperadas, mas, além de tudo, é desconcertante iniciarmos a película chamando-os de “eles dois” ou “elas duas” e, passados alguns minutos, não sabermos mais denominá-los. Uma métrica de frases trocadas como se falhas de gravações tivessem invadido nossas mentes. Almodóvar está afogado e presente em Marcelo Laffitte, diretor deste delírio. Rótulos foram desordenados. E é neste primoroso mote que a fita captura a plateia entorpecida de visões. Desfaça-as. Vá ao cinema acessível consigo mesmo, assole pensamentos pré-estabelecidos pela sociedade prosaica, mas adentre à sala com todos os seus conceitos e opiniões para que, ao fim, Madonna lhe faça querer saber o sexo dos anjos e Elvis, mesmo masculinizado, questione-lhe se padrões, mesmo os atualmente decadentes, são reais.
Um filme para abrir, aos que propostos a isso estão, a imagem do homem e da mulher em décadas em que ser si próprio encaminha-se para tornar-se lei das pessoas: quem realmente somos, quais são nossas possibilidades de viver em paz com as diferenças. Mesmo que as diferenças, agora, pareçam tão cotidianas.
Filme: Elvis & Madonna (clique aqui e acesse o sítio oficial do filme) Ano: o mesmo “O palhaço“ Direção: o mesmo assistente de produção de “Bete Balanço” Elenco: Simone Spoladore, de “Lavoura Arcaica“, Igor Cotrim, formado pela Escola de Arte Dramática da USP, e Maitê Proença, do renomado “Onde andará Dulce Veiga”.
É AZUL OU É LILÁS?, pelo viés de Bibiano Girard, Gianlluca Simi e Liana Coll.
Muito bem escrito, e toca em todos os pontos pertinentes e impertinentes da condição humana e dá uma razão muito bem embasada para ver o filme.
Agradeço de coração, fiquei feliz