Para se organizar um exército, é necessário que existam pessoas que aceitem lutar. Para lutar, é necessário acreditar em uma causa e é necessário que se abdique de toda uma vida, pois esta passa a fazer parte de um sonho, e não mais de um ser humano.
Aceitar entrar para as fileiras de um Exército Farroupilha não exigia grandes abdicações por parte de grande número de seus soldados, pois, em maioria, eram pessoas pobres com poucas perspectivas para o futuro. Mesmo assim, não fora menor seu desejo de sobrevida, bem como seu desejo de vitória.
A Revolução Farroupilha precisava de um ato inicial vitorioso para que fosse deflagrada com sucesso, e o foi com a conquista de Porto Alegre em 20 de Setembro de 1835. Porém, caros senhores, nenhum homem sozinho conseguiria render uma cidade. Foram muitos homens, estes homens pobres e tantas vezes sem família que fizeram vingar a causa de seus generais. Foram os peões que deram voz ao movimento dos farrapos. Talvez, não tivessem nada mais a perder, mas ao ganhar algo pelo qual lutar, foram os senhores da guerra de uma história que lhes negou qualquer reconhecimento.
Já os Lanceiros Negros formaram a grande e honrada frente de escravos e libertos, tendo a lança como seu principal armamento. Lutaram por promessas de honrarias e de liberdade, que não conquistaram, mas foram guerreiros, foram soldados. Na conquista de Santa Catarina, por exemplo, quando se buscava difundir os ideais separatistas em outras províncias brasileiras, formaram a grande massa de lutadores que conseguira efetivar a tomada de Laguna.
Mas foram dizimados por líderes imperialistas e farroupilhas no Combate de Porongos, para que não ganhassem a liberdade após a Revolução, para que o espírito abolicionista não se espalhasse por um Brasil comandado por Senhores Escravistas.
Ainda, dentre a sociedade gaúcha do século XIX, constavam famílias pobres sem grandes expectativas. Em outros casos, algumas pessoas sequer família constituíam, mas se uniam a seus iguais e formavam grupos que permeavam o Rio Grande do Sul. Entre esses grupos, as Vivandeiras, talvez embrutecidas devido às provações que a vida lhes apresentava.
Os grupos de vivandeiras fizeram parte da Revolução Farroupilha. São mulheres que se tornaram combatentes sem jamais terem alcançado qualquer tipo de patente militar, sequer sendo consideradas “soldados”. Seguiam em carretas, acampavam junto aos Farroupilhas e, além de seus préstimos militares, serviam-lhe os prazeres como mulheres, e suas companhias eram indispensáveis por parte de guerrilheiros e generais. Sem elas, os Farroupilhas teriam número maior de baixas, devido aos cuidados médicos que prestavam. Teriam maiores dificuldades para se alimentar e ainda, o número de combatentes seria amplamente menor, pois elas também se envolviam nos confrontos. Assim, além de combatentes, seus préstimos ainda se dividiam entre o preparo da comida, o cuidado com armamentos, a organização dos acampamentos.
Todo Setembro (desde 1991, quando a lei fora instituída), busca rememorar os feitos destes Farroupilhas que lutaram com garra e com honra. Desta forma, pode ter sido estranho ler um texto sobre o 20 de Setembro ou sobre o Movimento Farroupilha que não fale de forma comovida e emocionada sobre Bento Gonçalves, David Canabarro ou Anita Garibaldi, e outros tantos.
Desculpem-me, mas eles não me comovem. Podem ter sido líderes respeitáveis, por terem grande poder de mobilização e organização. Mas simplesmente não me comovem.
É preciso se ter em mente que, neste Movimento Farroupilha, outras pessoas estiveram envolvidas. E lutaram ludibriados pelo ideal de liberdade. Os negros lanceiros esperavam viver numa região livre das amarras da escravidão. As vivandeiras lutaram por acreditaram que a vida seria melhor após a vitória daquela guerra, que não conseguiram. Os peões soldados que morreram, morreram pela causa de seus patrões que desejavam manter seu sistema de poder onde, neste sistema, estes mesmos peões continuariam peões. Mas eles lutaram, e eles morreram. Foram leais aos homens que, talvez, não tenham tido tamanha honra.
E não é difícil entendermos muitos pesquisadores e interessados no assunto que não aceitam a glorificação dada ao Movimento Farrapoupilha diante de sua derrota e se nada mais fora do que a movimentação de uma elite estancieira e charqueadora que formara exércitos para que lutassem a favor dos seus interesses. E foi isso. Mas convenhamos, não apenas…
Resignifico (e convido todos que desejarem a o fazerem) o 20 de Setembro. Como um movimento que, se não fora liderado e deflagrado pelo povo, teve nele seu principal sustento para existir. Se a derrota na Guerra não fora ainda motivo para se questionar o orgulho e se rememorar os estancieiros que explodiram um movimento em prol de seus próprios negócios, se esta situação não carrega consigo valores que um povo deva preservar, é porque a história fora mal contada nestes anos todos.
O 20 de Setembro pode gerar orgulho. E está na hora do Rio Grande do Sul abrir novamente as páginas da história para localizar seus heróis. O que tem sido feito é o que chamo de injustiça histórica. Se o presente for contado no futuro sobre o mesmo viés que o presente conta o passado, nós não estaremos na história. Nós que não fomos presidentes ou políticos, nem abastados senhores e senhoras da sociedade. A história será deles.
E nós somos agentes sociais, somos escritores da história. Somos o povo, enfim. Só não façamos mais com o passado aquilo que não queremos que o futuro faça conosco.
O 20 DE SETEMBRO E OS LANCEIROS, AS VIVANDEIRAS, OS FARRAPOS, pelo viés de Tainá Severo Valenzuela*
*Tainá Severo Valenzuela é Mestranda do PPG em Patrimônio Cultural – UFSM, Historiadora e Licenciada em História – UFSM/2010. Também faz parte da Diretora do Departamento Jovem da 13ª RT 2011 e é Capataz do DTG Noel Guarany – UFSM.
Na quinta-feira passada, a propósito, mantive uma conversa com colegas, profesores, exatamente sobre a passagem, da Revolução Farroupilha, que trata da participação do Lanceiros Negros e sobre o Combate dos Porongos, em que foram, covardemente lançados à morte, para que não precisassem ser cumpridos os “acordos” de libertação e tratamento igualitário, entre os negros e os demais combatentes nã-negros!
Parabéns bela belíssima reflexão, futura Mestra. Tainá!
Abçs, deste humilde companheiro tradicionalista de Dom Pedrito
Parabéns, pela linda matéria! Concordo totalmente e, acho que está na hora de todos começarem a valorizar os verdadeiros heróis desta luta, ou pelo menos, respeitá-los. Acho que é preciso que existam mais textos como estes. Mas este já é um grande passo. Parabéns também a revista O Viés pela publicação! Sempre buscando textos e depoimentos irreverentes e que procuram mostrar o outro lado da questão.