A filha
Dizia que havia dias que estava mais para Greta Garbo: pirada, calada, querendo ficar sozinha, não confiando em mais ninguém. Mas também dizia que havia dias em que estava mais para Audrey Hepburn, angelicalmente linda. E outros, estava mais para Bette Davis. Linda e má: não mijaria em quem não gostasse nem que este ou esta estivesse em chamas. Alias, dizia que começara a fumar por causa de Bette Davis (esquecia que esta frase era da Marisa Paredes em um filme do Almodóvar). Era assim. Só dizia que tinha o gênio dessas atrizes para sentir-se bonita, pra esquecer que tinha uns joelhos magros e ossudos e que por isso só usava calças. Não tinha um rosto feio. Mas a boca parecia um borrão rosado no rosto, um rosa apagado, velho. Não era feia. Não era bonita. Era fumaça de cigarro enquanto se encostava na parede e fitava os boysinhos na rua que também fumavam e fediam a cigarro e suor, ou fediam a cigarro e perfume bom. Haviam os cheirosinhos. Mas era difícil encontrar um cheirosinho heterossexual. E andava cansada de bancar pose de fumante sensual nas ruas. O pai também não queria que ela andasse por aí fumando e bebendo, porque isso não era coisa de mulher. Depois ficaria com fama de puta. Olhava pela janela e respirava uma umidade fria e cheirosa que vinha do jardim escondido na escuridão da noite. Não tinha muitas ideologias. Quem sabe fosse uma rebelde sem causa dos anos 50 enquanto o pai dizia que ela seria uma puta se continuasse na rua fumando e namorando na segunda década do século XXI. Deitou na cama e pensou em escrever alguma coisa, mas escrever e escrever e escrever e escrever, até… quem sabe lançar um livro. Um livro de alguém que parece uma rebelde sem causa dos anos 50 enquanto a pai a chama de puta por sair na rua fumando e namorando. Escrever uma coisa assim: hoje eu tenho um desejo para vestir… não, não iria escrever porra nenhuma. Não sabia continuar. Acendeu um cigarro lembrando que os dentes já estavam com muito tártaro de tanto fumar e que os joelhos continuavam ali, magros e ossudos. Arre! Detestava perder-se pensando. Era só pra se achar mais feia. Fumou o resto do cigarro e dormiu.
O filho:
Tentou fumar um cigarro da irmã mais velha. Não gostou daquele fumaça invadindo a garganta, do cheiro que ficou na boca. Achou aquele vício estúpido. Colocou o cigarro no lixo, deitou na cama e cobriu-se. Também já tinha tentado beber cerveja. Mas tinha gosto de mijo. Sentia que a casa ia silenciando aos poucos, dormindo. Os colegas na escola já saíam para as festas e ele ficava sábado a noite lendo algum livro da Lya Luft , como aquele em que um menino que chorava embaixo da mesa da cozinha se lançara do alto de uma pedra, a pedra da bruxa e saiu voando. A mãe não acreditou até o final do conto que o filho tinha morrido ao lançar-se da pedra. Mas o que realmente tinha acontecido com o menino? Morrera? Voara? E a Velha que sumiu em um dia de trovoadas? Entrou naquela portinha que talvez desse para o inferno? Os irmãos que brincavam de morte no quarto fechado? No sábado a noite, ao invés de sair beber com os colegas que já se achavam maduros, ele ficava ali, enlouquecendo com as personagens de Lya. É que ele sentia-se melhor ali. E tinha vontade de explicar para os pais que ele ia até a janela ouvindo Nara Leão e ficava olhando para as luzes lá fora e pensava dobrando a língua, conversando em voz baixa e pensando no corpo do colega soado que jogava bola, na boca rosada do menino que trabalhava na livraria perto da escola e que ele não ia lá apenas pra comprar um livro, mas pra vê-lo, poder conversar com ele e ver as mãos de dedos longos dele lhe ajudando a encontrar o livro que procurava. Queria dizer que estava faltando um beijo gay nas novelas que mãe assistia, dizer pro pai que ele aprendera nas aulas de biologia que a homossexualidade era apenas uma das facetas da sexualidade humana, assim como a heterossexualidade a bissexualidade e mandar todos a puta que o pariu se não acreditassem assim. E se acreditassem lhe diriam para não pensar essas coisas e que ele tinha apenas 15 anos e que estava em desenvolvimento e que por isso não sabia de nada e que ele iria mudar, e que era só uma fase…
Quando a fase passasse, ele deixaria de roer as unhas antes de dormir.
O Pai:
Para os outros, sabia-se apenas que respirava. Não, mentia. E agora pensava ele deitado ao lado da esposa que eles sabiam mais. Sabiam do silêncio que crescia entre eles como cogumelos venenosos. O silêncio crescia entre ele e a filha, as palavras de reprovação cresciam no silêncio com o filho. A apatia crescia com a esposa, longe, oca, inexiste, carente de cor. Cresciam as ervas daninhas de uma falta de tato e olfato para sentir qual rumo seria que cada um deles traçaria dentro daquele silêncio. Culpava-se sabendo exatamente onde tinha errado.
A mãe:
Casou. Pariu duas crianças. Sentia-se velha e consumida. Ralou um joelho ao cair na calçada. Um moço a ajudou. Ficaram amigos. Se encontraram várias vezes. Transaram dentro do banheiro público. Culpava-se. Culpava-se pelo sono ao lado do marido, pois já não queria mais estar ali. Culpava-se pelo silêncio doente entre os dois que a cada dia falava mais alto. Culpava-se por não ser capaz de ter levado a frente o que construiu quando casou , pariu dois filhos e deixou que fosse tornando-se côncava aos poucos, a ponto de consumir-se para dentro, mas ora oca, ora grave, funda.
O avô:
“A poesia está em tudo, tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas.” Manuel Bandeira poderia estar certo quanto aos chinelos, quanto as coisas lógicas e disparatadas. Mas a poesia não estava em tudo, não mais. Não havia poesia nas dobras de suas pele, nos dedos enrugados que não sentiam mais o frêmito de existência, nos olhos que lacrimejavam sem vontade de choro, na melanina envelhecida. Mas não sentia peso algum sobre os ombros. Não sentia nada, que não fosse um falta diária, súbita e calorosa de outra mão que roçasse na sua mão, como um encontro de rugas, como um encontro de velhos corpos, de dedos que se conhecem a tempos, que não se tocam a tempos, mas que por impulso dos olhos, vão se aproximando, se entrelaçando, e fazendo, com que por frágeis segundos-cristais, lépida e festeira imaginação, alcançam algum refrão de poesia. Estava velho, sabia bem. Doíam-lhe as costas ao levantar, doía-lhe as pernas ao caminhar. Setenta anos de idade e uma amor para mudar alma de casa, porque lhe perdoem os de 17 anos e os de dedos jovens, mas ele ainda tinha jovialidade enraizada dentro do peito, mais que o filho, nora e netos que iam se afastando com a mesma força que sua pele ia ficando marcada por rugas fundas. Queria dizer pra eles, e quem sabe dissesse antes que o verão findasse, que como Cecília, ele desenvolvera dentro do tempo, a sua canção. Quem não tem invejas às cigarras. Que também vai morrer de cantar. E que eles, também deveriam sentir-se assim. Diria isso antes que o verão findasse, antes que mais uma ruga na sua pele desse sinal do fim do verão.
VERÃO EM TEMPO DE POESIA, pelo viés do colaborador Dieison Marconi*
*Dieison é Estudante de Comunicação Social-Jornalismo/UFSM-campus de Frederico Westphalen.