O outro 11 de setembro

Selo da Alemanha Oriental em homenagem a Allende (1973).

A ideia de um “outro” 11 de setembro pode parecer incrível para algumas pessoas. Numa terça-feira, dia 11 de setembro de 1973, no Chile, sob as ordens de Augusto Pinochet, os militares chilenos derrubaram o governo de Salvador Allende. O presidente foi morto em circunstâncias não esclarecidas e Pinochet instaurou uma ditadura militar. Deu-se início a uma das ditaduras mais duras e cruéis do final do século XX.

Em junho de 1973, Pinochet foi nomeado comandante-em-chefe das forças armadas, porque Allende pensava se tratar de alguém de sua confiança. Pinochet liderou o golpe de Estado meses depois, e como conseqüência de sua posição hierárquica, é nomeado líder do regime militar.

Era época da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a então União Soviética. Na América Latina, Cuba apoiava as guerrilhas. Os EUA, que tentaram em 1961 derrocar Fidel Castro, preocupavam-se com a vitória de um presidente socialista no Chile. De acordo com antigos documentos secretos, hoje acessíveis, o então presidente americano, Richard Nixon, ordenou explicitamente a organização de “um bloqueio econômico” como forma de derrubar o governo. Foi criado um processo de pressões e bloqueios com sabotagens internas, articuladas de comum acordo com setores das Forças Armadas e da sociedade civil chilena.

Sob a liderança do general Augusto Pinochet, iniciou-se o que foi considerado o período mais negro da história do Chile. Dias depois do golpe, o general Pinochet afirmou que “o Chile recuperaria todas as suas liberdades quando se acabasse com o tumor maligno do marxismo”.

Milhares de pessoas começaram a sofrer a repressão exercida pelo novo governo, foram torturadas e forçadas ao exílio. Mais de vinte e dois mil estudantes foram expulsos das universidades. O Estádio Nacional de Santiago foi transformado em cárcere e centro de torturas.

Sabe-se que pelo menos 30 mil pessoas foram torturadas. Segundo dados divulgados pela Comissão de Verdade Justiça e Reconciliação, houve um saldo de 3.197 mortos, dos quais 1.192 teriam sido presos desaparecidos. A ditadura de Pinochet realizou uma profunda transformação e reforma administrativa no país. Em 1980 promulgou uma constituição e criou as condições para que sua influência fosse duradoura.

A ditadura militar chilena durou oficialmente 17 anos. Em 1990, Pinochet deixou a presidência do país, mas continuou no comando das Forças Armadas até 1998. Só deixou o cargo para assumir como senador vitalício, com direito a imunidade parlamentar. Em outubro de 1998, durante uma viagem à Inglaterra, Pinochet foi preso a pedido da justiça da Espanha, para que respondesse pelo desaparecimento de cidadãos espanhóis que viviam no Chile. O general foi posto em liberdade em janeiro de 2000, sob alegação de que seu estado de saúde era precário.

O ex-ditador faleceu aos 91 anos, sem jamais prestar depoimento sobre os crimes cometidos durante a ditadura.

28 anos depois, Nova Iorque. Numa também terça-feira, 11 de setembro de 2001. As pessoas correndo, o olhar perdido extasiado diante do cenário de terror, a procura por familiares desaparecidos. Os EUA viveram em poucos dias o que haviam sido os quase vinte anos da ditadura no Chile.

Os Estados Unidos foram imprescindíveis no golpe de 11 de setembro do Chile, por intermédio de financiamento e trabalho de bastidores na desestabilização do governo do presidente Salvador Allende. Foi provado pelos historiadores que os militares chilenos estavam assessorados pelos EUA, que temiam a eleição de um presidente socialista em plena guerra Fria. Como numa lamentável e tenebrosa armadilha, o destino colocou os cidadãos estadunidenses numa realidade tão próxima àquela vivida pelos chilenos. Um sofrimento paralelo, uma dor parecida, uma desorientação semelhante.

Após 1973, Pinochet adotou medidas para camuflar o passado, fazendo com que os jovens chilenos permanecessem ignorantes da história de seu país. Portanto, para muitos, o confronto com a triste realidade da época é uma conquista recente. O Chile foi acometido por uma obscuridade da qual ainda hoje se recupera. As repercussões do golpe de 73 ainda se sentem no país.

O golpe de Pinochet visto por um militante

Em entrevista concedida ao Pravda.ru, o economista Manuel Lajo relata o período em que esteve no Chile, onde presenciou o golpe militar que colocou Augusto Pinochet no poder.

Manuel Lajo, de 58 anos, nasceu no Peru. Durante os anos 1960, esteve no Chile, onde atuou como militante de base nos anos em que, sob a liderança de Salvador Allende, o povo chileno tentou construir o socialismo por uma via legal – com organização, consciência e mobilização das massas populares.

Participou da Fundação do Mapu (Movimento de Ação Popular), na década de 1960 e na Unidade Popular do Chile em 1969. É doutor em economia, autor de vários livros sobre política econômica e agrária e ex- congressista da República no Peru.

 

Pravda.ru: – Como foi para você o dia 11 de setembro de 1973?

Manuel Lajo (ML): Às 6.30 AM escutamos que o Golpe de Estado teve início há vários meses, especialmente depois da primeira tentativa de golpe militar, em 29 de junho de 1973, mais conhecido como o “tancaço”. Nesse dia, Allende se opôs a uma boa parte de seus partidários, que queriam submetê-lo a um asilo político.

Na universidade, reunidos com nossa célula, comprovamos que Allende pretendia defender-se, mas não sacrificar-se. Quer dizer, Allende havia decidido evitar a guerra civil e milhares de mortes morrendo no Palácio da Moeda esse dia para que anos depois outros líderes e novas gerações voltassem a abrir os caminhos para o socialismo. Nesse dia, às 11:30 AM, vimos com assombro, desde nosso edifício, o bombardeio ao palácio da Moeda e decidimos nos inscrever nas tropas de Carabineros (instituição policial), como pediam os militares fascistas.

Isso foi o que nos salvou a vida, pois em 15 de setembro, quando nosso edifício foi invadido pelo exército de Pinochet, essa inscrição evitou que nos fuzilassem.

Na tarde de 11 de setembro a tristeza tomou conta do povo chileno.Era possível escutar as balas por toda a cidade de Santiago e todos os dias seguintes aos fuzilamentos dos que resistiam ao golpe. Os que resistiam ao golpe eram fuzilados ou perseguidos casa por casa. Era o terror fascista no Chile.

Como foram para você os dias que se seguiram ao golpe?

ML: Esperávamos que nossa casa fosse invadida a qualquer momento, o que aconteceu na noite de 15 de setembro. A tortura diante das metralhadoras do exército era o anúncio da morte. Sem embargo, estamos vivos por pura casualidade.

Em sua avaliação, que coisas contribuíram para tornar possível o golpe de Estado no Chile?

ML: Em primeiro lugar foi a ação do governo de Nixon y Kissinger, que através da CIA e de enormes recursos conseguiram quebrar o profissionalismo das Forças Armadas do Chile e alimentaram milionariamente os setores sociais que se opunham ao programa da Unidade Popular. No Chile desenvolveu-se um dos mais intensos combates das forças globais dentro da Guerra Fria.

Apesar dos erros de incoerência no desenvolvimento do Programa da Unidade Popular, tentou-se estabilizar a economia enquanto as reformas estruturais profundas faziam impossível qualquer estabilização. Quando o Ministro da Economia, Vuskovic, foi substituído no início de 1972, iniciou-se um período de desentendimento que permitiu a direita aproveitar para converter as reformas profundas como desordem e caos.

Como foram os anos de ditadura após o golpe militar de 11 de setembro de 1973?

ML: Terrível para a maioria empobrecida, humilhada e perseguida. É falso dizer que Pinochet foi responsável pelas bases do auge econômico que viveu o Chile sob os governos da ditadura. Foram as reformas anteriores a Pinochet que permitiram uma economia competitiva e que explicam o crescimento econômico.

A ditadura de Pinochet foi um legado de tortura, morte e repressão. Fale sobre as violações dos direitos humanos durante o regime militar.

ML: A ditadura estabeleceu um sofisticado sistema repressivo com alcance internacional. O povo chileno resistiu a uma gigantesca pressão política e ideológica. A liberdade de imprensa foi abolida e a repressão continua sendo desmontada até agora. As Forças Armadas foram o partido hegemônico de uma aparente democracia e milhares de patriotas morreram ou foram torturados por não aceitarem essa farsa. Há uma leitura vasta sobre esse período negro da história do Chile.

Qual era a situação da liberdade de imprensa?

ML: Os meios de comunicação foram um aparato à disposição do regime, e uma cultura do terror se implantou para manter a repressão, mas a sociedade chilena soube reverter todo esse cenário de mentira e hipocrisia.

Quantas pessoas morreram ou desapareceram durante a ditadura de Pinochet?

ML: Morreram umas quatro mil pessoas no primeiro mês da ditadura.

Depois de 1973, Pinochet tratou de apagar o passado para que os jovens chilenos continuassem ignorantes da história de seu país. Como foi o processo de confronto dos jovens com a real história do golpe?

ML: Bem cedo se soube a verdade. A juventude chilena sempre foi lúcida e não se deixou enganar. A música e a arte cumpriram o papel extraordinário no combate à mentira e ao engano oficial. O êxito dos prisioneiros, por exemplo, foi uma das muitas expressões de liberdade e criatividade da juventude chilena.

34 anos depois do golpe, o Chile até agora não supera o trauma de seu ataque terrorista. As repercussões do golpe ainda se sentem no país?

ML: Sem dúvida. O Chile moderno, cosmopolita, globalizado e universal só se explica pela gestão popular do 11 de setembro e seus anos prévios de luta. Para o mundo contemporâneo, o 11 de setembro chileno é mais importante que o 11 de setembro das Torres gêmeas de Nova Yorque.

Qual é a situação atual a nível de direitos humanos no Chile?

ML: É inquestionável a expansão econômica, mas houve aumento da desigualdade. A conquista de direitos sociais continua sendo uma tarefa difícil diante do modelo dos monopólios globalizados e cultura neoliberal. É um desafio a luta por uma sociedade que não esmague a igualdade sob o pretexto da eficiência e da competitividade.

“O outro 11 de setembro”, originalmente publicado no sítio PRAVDA.RU. A entrevista foi concedida a Rebeka Holanda.

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