A relação das elites civis com os ditadores militares foi íntima desde o começo da ditadura brasileira. O Golpe de 1964 foi amplamente apoiado por diversos setores da sociedade civil – a Marcha da Família com Deus pela Liberdade é um bom exemplo –, incluindo os principais jornais do país, que, no dia da derrubada do governo popular – reformista – de João Goulart, estamparam manchetes que celebravam o fim do “perigo comunista” e a reação dos militares.
Nos primeiros dias de abril de 1964, O Globo, Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, Estado de Minas e muitos outros jornalões publicaram manchetes como “São Paulo parou ontem para defender o regime” (Folha de S. Paulo) e “Fugiu Goulart e a democracia está sendo restabelecida” (O Globo), “Só há uma coisa a dizer a Goulart: saia!” (Correio da Manhã), “Democratas dominam toda a nação” (Estado de S. Paulo), “Lacerda anuncia volta do país à democracia” (Correio da Manhã), “Multidões em júbilo na Praça da Liberdade” (Estado de Minas). “Heroísmo”, “democracia”, “glória”, “patriotas” e “bravura” foram algumas formas pelas quais os primeiros movimentos dos militares golpistas foram referidos.
Durante os 20 anos de trevas, de censura e de gritos sufocados – sim, porque haviam muitos que gritavam – o apoio continuou. Grandes empresários de todos os ramos deram sustentação financeira, social e político aos militares que se abancaram no poder, e os barões da mídia não tiveram atitude diferente. Os episódios de uso de carros da Folha de S. Paulo por agentes da Ditadura e da mentira da TV Globo na cobertura do comício das Diretas Já são exemplos gritantes do que acontecia em silêncio cotidianamente: a colaboração entre militares e empresários da comunicação.
Enquanto isso, jornalistas eram calados pelo governo e pelos patrões, e buscavam formas de contornar a censura. Dentro das próprias grandes redações o jornalismo intelectual e comprometido com o leitor – substituído hoje pelo jornalismo de tarefas comprometido com a empresa – era uma realidade. O patrão andava de braços dados com os generais, mas os jornalistas cuspiam na cara da ditadura. Porém, de formas diferentes – às vezes a censura, às vezes a tortura, outras vezes o assassinato – muitos acabaram pagando por desejarem liberdade.
Paralelamente, a mídia independente tornava-se imprescindível, e ganhava corpo, com o nascimento e a ascensão de veículos como O Pasquim – de Tarso de Castro –, o Coojornal – mais importante iniciativa de jornalismo formalmente cooperado na história brasileira – e O Movimento. Com personagens, ideários e condutas variadas, a imprensa alternativa – especialmente nos anos 70 – teve um caminho comum: o combate à ditadura.
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Em 2008, quando o governo federal trouxe à tona o debate sobre a abertura dos arquivos da Ditadura Militar, boa parte da imprensa dominante brasileira alinhou-se aos militares de pijama e aos mais diversos setores da direita brasileira para dizer que se tratava de revanchismo. A gritaria foi tanta, fortalecida pelo discurso conservador da grande mídia, que os setores mais combativos do governo arrefeceram. A revisão da Lei da Anistia não saiu, os arquivos da Ditadura continuaram fechados, todos nós continuamos cegos, surdos e mudos, continuamos ignorantes, o conhecimento sobre o passado brasileiro está logo ali, mas ninguém pode tocá-lo. Index Librorum Prohibitorum.
A cada vez que esse debate ganha corpo, ou a velha mídia brasileira se esquiva ou fala em revanchismo para descaracterizar a simples e óbvia luta pela verdade e pela punição de criminosos do mais alto grau. As razões também são simples e óbvias: além do suporte dado por alguns desses veículos aos militares e seus aliados civis, também muitos atuais patrocinadores da grande mídia injetaram muito dinheiro para manter o regime ditatorial no Brasil. E também lucraram com isso. Ainda temos atuantes na cena política muitos nomes que colaboraram direta ou indiretamente para reprimir violentamente qualquer voz dissonante ao Regime, para torturar e assassinar uma grande quantidade de pessoas dos mais diversos tipos. No exército, na política institucional, no alto empresariado e na mídia, torturadores, assassinos e cúmplices destes crimes ainda têm seus lugares cativos.
Também questões factuais ligadas ao tema da Ditadura Militar são omitidas ou desviadas constantemente: os julgamentos dos assassinos militares argentinos e as discussões sobre o tema no Uruguai não são relacionados com o caso brasileiro. Ícones da repressão, como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, têm artigos publicados nos nossos jornais. Um ex agente do DOPS processando um jornalista não é notícia. Jornalão chama ditadura brasileira de “Ditabranda”.
A revisão da Lei da Anistia e a abertura de todos os arquivos da Ditadura Militar são ações essenciais se quisermos construir uma sociedade democrática. O silêncio e a impunidade alimentam a corrupção, o autoritarismo, a violência policial e outras mazelas presentes desde sempre na sociedade brasileira, mas tornadas rotineiras, quase moralizadas, no período ditatorial.
Conhecer nossas origens é fundamental para que nos reconheçamos como sujeitos da História. Conhecer as origens da nossa sociedade é pressuposto para entendermos quem somos. Todos temos o absoluto direito à verdade. Negar esse direito ou não punir quem o negou é ser, também, um braço ainda vivo da Ditadura.
Cabe aos comunicadores alternativos gritarem ainda mais alto em defesa do verdadeiro fim da Ditadura. A sociedade organizada e a mídia contra-hegemônica têm obrigação moral de encampar essa pauta em defesa da verdade e da história brasileira. É a defesa da sociedade, a defesa de quem lutou das mais diversas formas pelo fim da ditadura, a defesa do passado e do futuro. Bastião teórico da liberdade e da transparência, a velha mídia apoiou a Ditadura Militar e agora tenta impor-se como barreira à verdade histórica que o povo brasileiro tem direito de conhecer: sua própria história. Isso só acontecerá quando enterrarmos nossos mortos e deixarmos de admitir a tortura, a opressão estatal, a violência policial e os assassinatos cometidos pelo Estado – ontem e hoje. A mobilização nos blogs e nas redes sociais tem sido significativas, e o governo, em algum momento, terá que dar resposta aos apelos da sociedade organizada que pretende representar, ou se tornará dispensável. Precisamos recusar o cumprimento da Ditadura, ou nossas mãos continuarão sendo esmagadas pelos braços unidos de ditadores e empresários da comunicação.
A MÍDIA DE BRAÇOS DADOS COM A DITADURA, pelo viés do colaborador Alexandre Haubrich*
*Haubrich é jornalista e editor do blogue JornalismoB. Colabora com diversas publicações, entre elas a revista o Viés. Leia outros textos publicados por Haubrich na revista o Viés aqui
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