O conto de García Márquez, “O afogado mais bonito do mundo”, traça um homem nobre de espírito. Não é estranho que esse atributo abstrato apareça construído de maneira palpável como um homem grande, pesado, de semblante sereno e sincero. Conduzida seguramente por uma linearidade, a história fantástica se faz sem nenhuma estranheza, porém sua personagem, o afogado, é o ponto que leva ao estranhamento, não da fantasia, mas da realidade dura e rígida de um povoado.
A encenação de André Galarça, que segue tanto os termos quanto a sequência, possui, em minha opinião, pontos marcantes onde perde, onde ganha. No debate André falou de esse ser um trabalho ainda em busca de uma construção fixa (que também acaba por se alterar conforme as apresentações), por isso me atrevo a opinar como espectadora.
O cenário simples é realmente bom e agradável. Em comparação ao tempo em que ficamos em silêncios vazios, como quando o ator olha para seu público, as cenas com os baldes poderiam merecer maior duração, aproveitando que compõe a estética do palco tão bem. A imagem de as lágrimas sendo “retiradas” da água do balde e postas no rosto é tão encantadora que poderia ser explorada mais lentamente. O momento em que, antes de dar o texto, a personagem Povoado coloca as duas mãos bem abertas viradas para cima, joelhos e cotovelos dobrados e no rosto uma expressão de cansaço, é instigante, deseja-se saber o que é que está sendo carregado e o porquê daquele modo.
O ritmo e a entonação do texto são dramáticos, por opção, o ator não utiliza as deixas de comicidade ou mesmo uma leitura mais suave e direta do texto. A luz segue essa linha, de azuis e brancos (também amarelos) intensos tenta levar do mar ao povoado, assim como a trilha sonora se faz grave. O detalhe para fazer o espectador irromper na imaginação não seria justamente sugerir? É uma possibilidade. E, em vários jogos de cena, a sugestão está ali, mas se perde; pode-se dizer que é um trabalho a alcançar um alto nível de beleza e qualidade, também pela ótima escolha do texto e pela possibilidade de leitura de algo que tem tudo para dar certo em palco. O espírito afogado chega justamente por não ter âncora, por estar à deriva, enquanto as vozes das personagens são bruscas em sua interpretação, como o corpo do homem. Como ler esse espírito, então, se ele é quem desperta o Povoado para sua realidade árida e sem flores? O trecho das forças ocultas do coração afogado desabotoando a camisa não merece, só ele, toda a leitura desse conto? É justamente o afogado que pode ser lido com mais calma e perícia para que toda a mudança depois dele seja compreendida e sentida pelo espectador.
COMO LER UM ESPÍRITO AFOGADO?, pelo viés de Caren Rhoden