A natureza continuou fustigando a terra como se enfurecida pela insolência e pela falta de respeito consigo. Movida por nosso descaso e por sua necessidade de arrancar de si as camadas de concreto que imprisionavam sua beleza, retumbou e pôs-se a chorar. Eu estava entre aqueles que tinham crescido aborrecidos por tal penoso espetáculo, a nos escudar de seus apelos por abrigo, d’onde poderíamos ignorá-la até que a exaustão a silenciasse novamente.
Forcei-me por entre a multidão chorosa até as portas vacilantes e os corpos hesitantes e, de pronto, pousei sobre a soleira e libertei-me do sufoco que traziam as paredes. A fria umidade m’engoliu e, célere, inundou minhas roupas e ferroou minha pele, a roubar de minha essência meu calor. Mesmo assim, parecia-me punição ainda gentil face ao que eu e os meus lhe tínhamos obrado. Seu ôfego ardente e seus tapas gentis pareciam os de um amante cujo amor ainda não tinha amparado seu coração partido.
Segui a ventania, ao que ela beslicava carinhosamente minhas roupas, como se eu soubesse aonde aquele rio de lágrimas a meus pés me levaria. Mas fiquei à vista do vale, como uma estrela envolta por uma escuridão artificial. Seu esplendor parecia estourar através de mim, sugando de meus pulmões aquela névoa peçonhenta e enchendo-os com seu próprio ar. Como poderia ter trocado a casa em que tinha existido pelo lar que tudo isso me parecia ser?
Corri descalço, pois não me deixaria infectar a terra com a perversão de querer separar-se de todo natural. Ao chegar ao morro, hipnotizado, uni-me às fileiras de sábios troncos que, soto à sua presença, reverenciavam-na. Por um ínfimo instante, os paraísos se abriram perante a mim, cegaram a escuridão e sumiram no nada tão ligeiro quanto vieram. Ela então soltou um berro ensurdecedor que ecoou pelo chão, aplificando o silêncio que seguiu.
A Estranha já estava a meu lado desde muito antes d’eu dela sentir presença; mas não me alarmei nem m’inquietei e, quando me fiz finalmente fitá-la, meu coração quedou-se atordoado e silente.
Estava ela lá, descalça e a encarar a tempestade com seus olhos escuros e cálidos, agora encinzentados pela vista à frente. Negros rios de lágrimas esculpiam sua pálida face & seus lábios, azuis do frio e da tristeza que emolduravam seu choro. Seus longos e castanhos cachos desenhavam suas curvas e bailavam ao redor de seu corpo, coberto só por um vestido de cor preta lívida que se agarrava a ela e, em sua pele, desaparecia. Pele – como as vestimentas etéreas dos paraísos, que viviam tal o vento, tal a luz. Uma maré ardente deslizava da sua pele, respirando e batendo como uma espírito que se pudesse tocar.
Ela, pois, olhou-me e a mim sorriu, quebrando de lá os muros do meu orgulho & senti uma lágrima, a carregar toda raiva que me consumia desde tanto, que enfim somou-se às tantas outras que tinha, ele, chorado o céu. Caí em seu olhar e a linha prata de sua púpila estourou-se e desfiou-se na escuridão de sua íris. As minúsculas lágrimas que pairavam formosas em seus cílios cortaram atavés da luz como um cutelo através da carne e do coração. Eu podia sentir as últimas gotas de chuva se romperem sobre mim e sentia também o vagaroso recuo das nuvens. E, por lá já, refleti que a ter conhecido, a Estranha, fora o bastante para me salvar.
A ESTRANHA, ENCONTRO, pelo viés do colaborador Luqa Galea*, traduzido pelo viés de Gianlluca Simi
Para ler o texto original, em inglês, clique aqui.
Para ler mais contos, acesse nosso Acervo.
*Luqa Galea é estudante de Enfermagem na Universidade de Malta (L’Università ta’ Malta)
Falar que é um conto belíssimo, apesar de verdade, é pouco. Mas, como me faltam palavras para descrever todas as emoções que me foram despertadas ao lê-lo, deixo assim: é um belíssimo conto.