Era uma porta alta de madeira – e estava entreaberta. O corretor já deve estar aí, pensou. Empurrou um pouco a porta e olhou para dentro. A escuridão era total. Decidiu então ligar para o telefone do corretor. Para sua surpresa, a cada toque da chamada no ouvido, um telefone tocava dentro da casa. Não vou entrar aí – pensou – já se virando para voltar ao carro. Foi então que sentiu uma mão puxando-a pela cintura e outra mão cobrindo seu rosto. O cheiro do éter entrou-lhe pelas narinas e não viu mais nada.
As perguntas começavam a se formar na sua mente enquanto ela tentou se mexer uma, duas, três vezes. Sabia que estava deitada de bruços e agora tinha consciência de que estava presa. O grito ecoou no silêncio da casa vazia, e então ouviu passos rápidos em sua direção; sem pensar, gritou novamente, quase na mesma hora em que a bofetada acertou seu rosto. Com o susto, calou-se.
Não sabia se ela tinha notado, mas ele a havia prendido em uma tábua sobre três cavaletes: um acima dos seios, um na barriga e outro acima dos joelhos. Estava presa pelos dois tornozelos, com as pernas ligeiramente abertas; pela cintura, no cavalete do meio; e pelos braços, estendidos pelas laterais do primeiro cavalete. Ela não movia um músculo…
Os trechos acima, do conto O Sequestro, foram retirados do sítio Contos BDSM. Ao fim, revela- se que o sequestrador era o próprio marido. A esposa, depois de receber açoites com chicote de couro, de ter cera quente derramada pelo corpo e de ser penetrada com um vibrador, “cede” ao desejo sexual de seu “algoz”. No fim, a “vítima” revela que, desde o princípio, soubera que era o marido a “torturá-la”.
O imaginário da humanidade está repleto de definições de cunho moral sobre o que é certo e errado, normal e anormal a respeito do sexo. Desde uma concepção reprodutora, as práticas sexuais estariam fadadas, por essa visão, ao objetivo de perpetuar a espécie. Entretanto, o sexo e seus meandros passaram por transformações diversas de acordo com as culturas e os tempos históricos.
Somewhere over the… iceberg
Caso quiséssemos fazer uma metáfora sobre as práticas sexuais e a sociedade, poderíamos dizer que tudo aquilo que os seres humanos praticam entre quatro paredes (e noutros lugares) é um grande iceberg; o nível do mar é o espaço limítrofe: aquilo que é socialmente aceito sobre o sexo e a sexualidade está visível; todo o resto, a maior parte do iceberg, está submerso nas profundezas do mar, em algum lugar dos imaginários, dos quartos de motéis e dos nossos lares.
Da antiguidade até o século vinte, profundas mudanças ocorreram de forma paulatina, culminando com a revolução feminista e a de costumes sexuais – que modificaram a percepção das sociedades acerca do sexo e da moral.
São seis e quarenta da noite: encontramos nossa entrevistada pessoalmente após e-mails e telefonemas. O frio acompanha os primeiros dias da Feira do Livro de Santa Maria, e nos faz optar por um café como ambiente para a entrevista. Valentine*, 24 anos, conversou conosco sobre a intimidade dela.
Outra fria noite, agora de sábado, e Bernac*, 46 anos, e Juliette*, de 53, estão em Santa Maria para fotografar com um amigo. Residente em Porto Alegre, o casal está junto há mais de dez anos e é praticante de BDSM (bondage e sadomasoquismo) há alguns. Numa conversa de duas horas, desnudam-nos um universo ora secreto, ora exibido – um jogo entre o íntimo e o voyeur, que depende dos espaços sociais destinados às práticas menos aceitas socialmente.
O risco consensual, a dor prazerosa
Cordas, algemas, cera quente, relho… uma série de acessórios faz parte do universo sadomasoquista – e fetichista em geral. A dor que é infligida por meio desses objetos constitui parte fundamental do prazer a ser obtido. As técnicas de amarração com corda, por exemplo, imobilizam totalmente aquele que se deixa amarrar (comumente denominado submisso); quanto mais movimento, mais justas ficam as cordas; além disso, pode haver suspensão – a pessoa é amarrada, e as cordas são suspensas em ganchos.
A estética, para muitos, é elemento fundamental. Algo como estética produzindo prazer, e prazer produzindo estética. É o exemplo do shibari, palavra de origem japonesa. “Difere do bondage no aspecto estético. Bondage implica restrição, tu podes usar qualquer coisa para amarrar. Já o shibariexige um preparo mais interessante, uma coisa mais estética. Usamos cordas que sejam de textura macia o suficiente para não machucar a pele”, explicam Bernac e Juliette.
O bondage é das práticas que mais exige entrega do submisso ou dominado. Mais que isso, presume total confiança entre os envolvidos. “No bondage, eles têm um lema: para praticar, eles tomam o cuidado de ter sempre uma faca e uma tesoura por perto… Digamos que o lugar pegue fogo, tu vais ter que soltar a pessoa rápido, pois ela pode estar suspensa” afirma Valentine.
“Há práticas que causam lesão física. Por exemplo, quem gosta de ser queimado, isso pode causar lesão. Tu tens que ter absoluta confiança no parceiro, de que tu vais infligir uma lesão, e ele não vai depois te acusar de tê-lo machucado. Pressupõe uma confiança grande”, relata Juliette. Fica claro que o ato consensual é como um contrato feito entre dois adultos que gozam de todas as suas capacidades, em que os limites estabelecem-se pelos parceiros, em parte antes do ato, em parte durante – no teste dos limites. De qualquer maneira, é uma dor prazerosa assumida e desejada por ambos – ou pelos vários parceiros envolvidos numa play (festa), expressão que indica sessão com várias pessoas.
Relações afetivas
– Oi, tc d onde?
– SM, e tu?
– Tmb. Q proc?
– Quero ser fistado.**
– Blz, tmb curto. (…)
O diálogo acima se encaixa muito facilmente em chats nos quais as pessoas procuram por parceiros sexuais e/ou afetivos. Não é exatamente o caso de Bernac e Juliette, nem de Valentine e seu parceiro, juntos há seis anos: “A gente meio que foi descobrindo as coisas juntos, então muitas coisas que acontecem hoje nenhum dos dois fazia antes ou sabia. Foi com o tempo, com a curiosidade e com a intimidade entre os dois”, afirma Valentine.
As práticas sexuais, portanto, são parte da relação, e não o centro dela. A fixação num elemento específico como única forma de obtenção de prazer pode desencadear, em alguns casos, uma situação patológica. De acordo com o site do Projeto Sexualidade (ProSex), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPqHCFMUSP), os transtornos de preferência sexual são práticas que produzem um comportamento que gera sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo ao funcionamento social ou profissional da pessoa. É preciso cuidado, entretanto, para não “patologizar” o assunto. Muitas práticas serão vistas, de alguma forma, como negativas porque há uma construção cultural nesse sentido. Bom exemplo é que o próprio sexo anal (também conhecido como sodomia) era crime em vários estados norte-americanos ainda na década de 1960.
“Não é porque as pessoas têm essas práticas menos usuais que não haja sentimento, não haja amor” pontua Valentine. Essa constatação joga luz sobre o sexo de um modo mais simples do que o tema costuma suscitar: as relações e os sentimentos existem, e isso independe das práticas sexuais em si. No íntimo, cada casal ou grupo de parceiros vai estabelecer (pela descoberta, pelo desejo) aquilo que dá prazer – da penetração ou do sexo oral aospanking ou à chuva dourada. Valentine e seu parceiro gostam de humilhação, chuva dourada e inversão (em que a mulher domina e, eventualmente, penetra o homem, com acessório ou com o próprio dedo, conhecido como fio terra). “Assim como ele precisava não ter preconceito com isso, eu também. Então, conforme foi evoluindo o relacionamento, isso também foi acontecendo”, complementa.
Acessórios protagonistas
Estar dentro de um universo sadomasoquista abre portas para um mundo de práticas – e acessórios. São brinquedos que, mais do que coadjuvantes, conduzem a produção do prazer pretendido. Espartilho, cordas, ball gag, fita adesiva (silver tape) e algemas são alguns dos itens que podem ser utilizados para as práticas de restrição, em que se restringe a respiração, os movimentos, etc. do dominado. Já as velas, o chicote, a palmatória de couro, a presilha para mamilos e o anel peniano são componentes para a prática da humilhação e para a produção de dor.
É na conjunção das fantasias com os acessórios que se constituem as práticas. Restringir para dominar; humilhar para dominar; ser humilhado para ter excitação. “No meu caso, bastante corda, coleira, corrente. Objetos de sex shop – vibradores – a gente não usa muito”, revela Valentine. Disso, constituem-se as diversas práticas – que sempre dependem da vontade expressa dos envolvidos. A chuva dourada, que consiste em urinar no dominado, é uma das práticas comuns na humilhação. Outra prática, conhecida por alguns como travestismo fetichista, consiste em vestir-se com roupas do sexo oposto – muito comum no caso de dominadoras submissos. “Uma vez, participei de uma play. O meu submisso não sabia o que eu ia mandá-lo fazer. Então comprei um calçado com saltinho e, numa sex shop, uma roupa de doméstica. Ele disse: ‘não acredito que você vai me fazer isso’. Era algo que teve significância para ele, pois ele realmente se sentiu humilhado”, conta Juliette.
O spanking também faz parte do repertório da humilhação. Usam-se chicotes e palmatória, por exemplo: um misto de acessórios para produzir dor e prazer – este a partir daquele. “Bater é uma coisa que eu gosto muito. Também produzo o material, como a palmatória. A parte das cordas também, que está relacionada com o shibari”, explica Bernac.
Preconceito: prática do passado ao presente
“Ele não era tão preconceituoso, mas não era de conhecer sadomasoquismo. Então, às vezes, eu tentava fazer alguma coisa diferente, mas não dava muito certo. A única coisa que a gente se acertava era que ele meio que me dominava, me batia”. A fala acima, de Valentine, revela o quão restritas as práticas podem ser. Encontrar parceiros fora das relações pode ser muito complicado. “Se as pessoas fazem comentários irônicos ou depreciativos a respeito dessas práticas, simplesmente sei que não posso compartilhar isso com elas”, afirma Juliette.
A possibilidade de outras experiências no sexo vem acompanhada, quase sempre, de uma postura de vida diferente. “Eu sempre me indignava e me indigno com o machismo. Aqui eu ainda não posso usar todas as roupas que quero, não posso falar de coisas que acho interessantes, não posso rebater muitos comentários” relata Valentine, que nasceu no interior do Estado.
O escritor João Silvério Trevisan, ao reconstituir a história da homossexualidade no Brasil, relata o seguinte sobre nossos antepassados silvícolas: “A verdade é que, entre os indígenas, os códigos sexuais nada tinham em comum com o puritanismo ocidental daquela época; por exemplo, davam pouca importância à virgindade e até condenavam o celibato.” Revelador dos fatores culturais e religiosos que se imiscuíram no Brasil dos últimos séculos foi o choque entre uma moral europeia cristã e uma moralidade “brasileira” formada de forma muito plural. Séculos depois, já pós-feminismo e pós-flexibilização dos costumes, parecemos ainda viver sob a influência de valores machistas e homofóbicos que refreiam as possibilidades de viver de forma mais aberta o sexo e a sexualidade.
A insatisfação, a frustração e o obscurantismo é, muitas vezes, o resultado. A rigidez social quanto ao sexo impede que se dialogue sobre ele; produz certo clima de transgressão no mero falar sobre; e impede, por fim, que as pessoas experimentem-se e solucionem seus problemas sexuais com médicos, psicológicos e mesmo amigos e familiares.
Por dentro das fantasias…
Uma das formas mais comuns das pessoas exercerem a sexualidade é por meio das fantasias. Enquanto parte da imaginação, elas são ilimitadas: pode-se experimentar práticas que são proibidas socialmente, mas livres em pensamento. O universo das fantasias é muito vasto. Abaixo, alguns exemplos de fantasias e práticas que aparecem ao longo do texto (ou não).
Sonho que estou espiando meu vizinho enquanto ele se masturba sem fazer ideia de que o estou vendo. Mulher, 23 anos.
Prática – Voyeurismo
Estou sozinho no trabalho e surgem quatro rapazes. Eles me prendem e dizem que farei tudo o que eles desejam. Homem, 29 anos.
Práticas – Gang bang (grupal) dominação, sodomia (sexo anal)
Fantasio que meu marido me pede para acariciar a bunda dele. Vou penetrando-o com o dedo, e noto que isso o agrada. Então coloco uma prótese amarrada a minha cintura e o penetro. Mulher, 32 anos.
Prática – Inversão (com cinto peniano)
Imagino que meu marido me amarra na cama com cordas e veda minha boca com uma fita. Então começa a derramar cera quente em mim, enquanto bate com um relho em meus pés. Mulher, 34 anos.
Práticas – Bondage e sadomasoquismo (BDSM), spanking (surra) e uso de silver tape
Levo meu escravo para uma festa com vários amigos. Mando-o colocar uma roupa de enfermeira. Coloco nele uma mordaça com uma bola no meio e o mando obedecer aos desejos dos convidados. No final da festa, todos urinamos nele. Homem, 29 anos.
Práticas – Travestismo fetichista numa play (festa), ball gag (mordaça) e chuva dourada (urina)
Sonho que estou rodeada por 10 homens masturbando-se. Um deles lambe meus pés enquanto se masturba. Na hora final, todos gozam sobre meu corpo e rosto. Mulher, 30 anos.
Práticas – Podolatria (gosto pelos pés) e bukkake (ejaculação coletiva na face/corpo)
Estou transando com minha namorada e então começo a penetrar meus dedos em sua vagina. Vou lubrificando e colocando mais, até que meu punho está todo dentro dela. Mulher, 27 anos.
Prática – Fist fucking (penetração do punho na vagina ou no ânus)
E mais…
Safeword: palavra de segurança usada em práticas de restrição para indicar o limite do submisso/dominado;
Feet fucking: inserção do pé na vagina ou no ânus;
Scat: atração por fezes (visual ou mesmo palatal);
Milking: “ordenhar pela próstata”; fazer ejacular repetidas vezes, sem orgasmo, estimulando a próstata (prática BDSM).
* Os nomes são fictícios e foram retirados de contos do escritor francês Donatien Alphonse François de Sade, mais conhecido como o Marquês de Sade (1740-1814).
[Matéria originalmente publicada na revista Fora de Pauta]
MUITO PRAZER, SEXO, pelo viés dos colaboradores Laura Gheller¹ e Luiz Henrique Coletto².
1. Laura Gheller é jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Maria.
2. Luiz Henrique Coletto é jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Maria e mestrando em Comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro.