NARRADORES DE JAVÉ E JOSUÉ GUIMARÃES?
“Perto de muita água, tudo é feliz”, declama Maria Bethânia com maestria a citação do mineiro Guimarães Rosa antes de cantar “não quero outra vida/pescando no Rio de Jereré”. Contudo, para o Vale de Javé ou para os lados do Jacuí, tal frase soe como um disparate. Quiçá “o tempo é como um rio, onde banhei o cabelo de minha amada, água limpa que não volta, como não volta aquela antiga madrugada”, vibre mais internamente nas amarguras e lembranças do povo de Javé, nordestino, ou do povo de Abarama, no sul do Brasil. O musgo, a água que sobe, as reminiscências que tentam não se dissolver enquanto caem as paredes. O povo. O povo e a cidade. O povo, a cidade e as lembranças. A memória, a maior das valias, o patrimônio indestrutível. Josué e Antônio Biá, dois mistérios das escritas que têm capacidade de consentir exclusivamente como recordação episódios contados. Narrados. Nada mais. Água. Pequeneza humana, entusiasmo anêmica dos tolos, força brutal da natureza que tudo engole e que de cada um, um pouquinho, deixa naufragado sob tamanha rabeira de fonte sua derradeira lágrima. A torre da igreja, as botinas molhadas, a esperança em provar a magnitude de um tijolo, de um pedaço de barro, de uma telha, de um garfo, de uma cabeça pensante. De corpos e vidas. A biografia dos caminhos de terra, os quais se tornarão canais de peixes astutos, que apreciarão lá de baixo o aquário onde o povo foi preso: entre as paredes invisíveis da nostalgia.
A pequena cidade de Javé, com seu casario colorido de arquitetura simples nordestina, será submersa pelas águas de uma represa. A indenização não virá e nem mesmo um aviso de despejo fora-lhes enviado, pois não possuem registros de posse das terras. Mas ali, no Vale do Javé, um dia chegou um respeitável cavaleiro, Indalécio, montado sobre um cavalo espantoso, procurando o melhor lugar para assentar seu povo que vinha sem terra há algum tempo. Não. Indalécio, na verdade, era cabra muito do covarde e morreu de soltura atrás de um pé xique-xique. Heroína, mesmo, fora Mariadina, a mulher audaciosa que caminhou por muitos dias sob sol escaldante para encontrar a melhor das canchas para que seu povo pudesse ali residir e viver em paz. “Quem conta um conto aumenta um ponto”. “O povo aumenta, mas não inventa”.
Esta é a história do belíssimo filme “Narradores de Javé”, que conta entre causos e cenas passadas entre o passado e o presente as tentativas do povo da pequena Javé em salvar seu vilarejo da inundação de uma represa projetada para as proximidades. Quando avisados por um dos seus, o pânico e a gritaria tomam conta da igreja junto ao medo e a raiva de pessoas que não aceitam ver tudo o que lhes pertence e toda sua história vivida em Javé alagadas de forma tão desumana. Só há uma saída: se Javé tivesse um patrimônio histórico de relevância o local poderia ser preservado, contudo, há de ser comprovado em “documento científico”. Mas o que há de patrimônio em Javé senão seu próprio casario, ruelas, poeira e pinga? Ora, pensa logo o povo: nosso maior patrimônio é a nossa própria história. Vamos escrever um livro onde cada um de nós conte aquilo que lembrar, sem inventar nada! Por favor.
Aí inicia-se a delicada e inesperada trama de “Narradores de Javé”, filme que levou os prêmios de melhor filme, direção, montagem, ator (José Dumont), ator coadjuvante (Gero Camilo), edição de som, atriz coadjuvante (Luci Pereira), prêmio da crítica e o Prêmio Gilberto Freyre durante o Cine PE – Festival do Audiovisual. Na lista de prêmios encontram-se também o de melhor ator para José Dumont no Festival de Cinema do Rio, prêmio da crítica no Festival de Friburgo (Suíça), melhor filme independente e melhor roteiro no 30º Festival Internacional do Filme Independente de Bruxelas, Venceu na categoria de melhor filme durante o VII Festival Internacional de Cinema de Punta del Este e na categoria de melhor filme de ficção no 5º Festival de Cinema des 3 Ameriques, em Quebec, Canadá. E foi pouco.
Antônio Biá, o antigo carteiro da cidade, com medo de perder seu emprego, começa a escrever cartas com conteúdo calunioso para os endereços das cartas que recebia durante o emprego a fim de que o Correio não tivesse suas atividades suspensas. Entretanto, o povo de Javé descobre as falsificações e calúnias criadas pelo letrado que se diz “intelectuário” e o expulsa da cidade. Mas no contexto de ver a cidade inundada ou escrever um livro com as histórias contadas pelos moradores por ser o maior patrimônio que todos ali teriam, naquele fim de mundo, onde alfabetizados eram poucos, Antônio Biá era considerado mais “amigo das letras” frente aos outros. A partir daí, a confusão e aquele “jeito” nordestino do interior, o qual pode ser estereotipado, mas que dá beleza e suavidade ao filme entram em cena. No desespero, a população acaba dando esta oportunidade do escrivão se redimir.
Biá passa a fazer o trabalho de historiador, “escrivinhador”, jornalista, contador de histórias, ouvinte e, principalmente, de criador de tumultos, pois cada morador conta uma história diferente, sempre defendendo os méritos de seus ancestrais, e Biá começa a perceber a dificuldade de por no papel tanta história oral.
Em “Depois do último trem”, contudo, o cenário encontrado pelo protagonista Eduardo já é devastador, ao contrário do lado irônico e ainda burlesco da pequena cidade nordestina que ainda vive e mostra vida. “Depois do último trem” é um romance que se enquadra no realismo mágico. A cidade encontra-se praticamente abandonada, já que em breve ela será alagada por uma barragem. Analogias. Assim como Josué Guimarães contou-nos a história de Eduardo, nosso questionamento sobre “Narradores de Javé” prende-se à máxima “o que podemos considerar como história, o que podemos considerar como verdade, o que podemos considerar como memória?” A verdade é a não-mentira ou a mentira torna-se verdade se para mim a verdade é outra?