REFLUXOS DE BORDO EM DOIS ATOS, SEGUNDO

CENA UM

– Hiya! You’re right?

E é assim que os ingleses de Nottingham dizem “hi, how are you?”*. Vamos a um pub e o atendente nos cumprimentará com “Cheers, mate!”**; passemos ao mini-mercado da esquina e a senhora do caixa nos agradecerá, ao final das compras, com “Thanks, love”***.
Assim como a língua portuguesa que falamos no Brasil é diferente das variantes portuguesa e moçambicana, por exemplo, o inglês britânico e, mais especificamente, o inglês da Inglaterra é muito diferente das variantes canadense, australiana etc. Junto às palavras que só se dizem aqui, lá se vão anos assistindo a tantos filmes estadunidenses. Aqui, calçada é “pavement” e não “sidewalk”; lixo é “rubbish” e não “trash”; a cesta de lixo é “bin” e não “can” & corredor é “corridor” e não “hallway”.
Apesar de que, em questões de pronúncia, eu tenha aprendido o inglês britânico, eu estou mais ao norte da Inglaterra, onde falam muito mais rápido do que em Londres. Muitas vezes, só entendi o que a pessoa queria dizer por causa da frase seguinte. Eles cortam os tês do final das palavras, engolem algumas sílabas e sua entonação sobe e desce abruptamente.

Rubrica: quanto mais ao norte do Reino Unido, mais difícil é de se compreender o que as pessoas falam. A Escócia é uma caso excepcionalmente difícil.

*Oi, como estás?

**Algo em torno de “e aí, tudo bem?”

***Obrigado(a), querido(a).

CENA DOIS

 

 

Entrada do Broadgate Park, uma das acomodações estudantis da Universidade de Nottingham.

 

 

Ir às aulas e escutar os professores e a maioria dos colegas falar com sotaque britânico me faz estranhar voltar para o meu prédio e conviver com tantos estadunidenses. É tão mais enrolado, como se todos eles viessem do interior de São Paulo.

Converso com Leticia, Amanda, Ashley, Alex, Carl, que são dos Estados Unidos. Aí aparece Alex, a canadense, e já vem outro sotaque; chega Ine, da Bélgica; vem Mindy, da Coreia do Sul; Sun Bo da China, Li Ka Wai de Hong Kong; Henrike, Rahel, Ulrich e Mariam da Alemanha. É uma salada de sotaques, pequenas interferências da língua materna e, assim, a conversa continua – na frente do prédio ou, quando o frio aperta, no corredor da entrada.

No meu apartamento, o 102, moramos entre cinco guris. Eu, Alex e Carl, dos Estados Unidos, Sun Bo e Li Ka Wai, que, tecnicamente, são ambos da China. Tecnicamente, pois, primeiro, eles não se entendem: Sun Bo fala mandarim e Li Ka Wai fala cantonês; acabam conversando em inglês. Segundo, porque as regras de imigração são diferentes para eles. Quem vem do continente teve de fazer visto e não pode sair do Reino Unido; quem vem de Hong Kong pode viajar pela Europa.

Nosso apartamento tem seis quartos, mas só cinco são ocupados. No quarto número um, agora mora o nosso roommate Howard, de Iowa, nos EUA – invenção de Carl e Amanda. Dividimos o banheiro e a cozinha. Cada um com seu armário e sua comida se reúne lá pelas seis da noite e começa a preparar suas versões de comida universitária. Camarão, peixe, miojo para os chineses; tortas prontas, vegetais congelados e arroz para os estadunidenses. Para mim, não importa o que eu cozinhe, há de haver curry e pimenta.

Rubrica: como sou brasileiro, então a comida não pode ser um ponto de partida para a “glocalidade” iminente dos nossos pratos.

CENA TRÊS

Mas a comida pode ser um ponto de partida para entender a sociedade britânica. Aqui perto de casa, além uma dezena de mini-mercados de indianos e chineses, há dois supermercados, de duas grandes redes nacionais: Sainsbury’s e Tesco. O primeiro é mais perto e foi lá que eu fui para as primeiras compras. Na lista de compras, pratos, talheres, panelas, travesseiros; coisas que o Broadgate Park não fornece aos residentes. Mas foi no Tesco que eu tive meu momento colono. “O troço é gigante!” – e só assim eu consigo explicá-lo. Se alguém de São Paulo ou do Rio ler este texto, vai sentir aquela “pena” que os supostos metropolitanos sentem dos interioranos, mas vamos aos fatos.

Tesco in Beeston tem dois andares e é mais extenso do que o Calçadão de Santa Maria. Lá dentro, tudo pode ser adquirido. Luz branca e forte para não vermos o tempo passar, escadas rolantes, bancos para descansar. É um shopping fantasiado de supermercado. No segundo andar, câmera fotográficas, filmadoras, televisões, torradeiras, pratos, livros, roupas, material de escritório. No primeiro andar, corredores sem fim de comida congeladas, frutas & legumes importados, bolachas, salgadinhos, refrigerantes, xampus, filmes, chocolate. E as surpresas? São três. A primeira: há um café no segundo andar. A segunda: há uma óptica no primeiro. A terceira: o corredor de “world food”.

Muda de mercado para mercado, alguns chamam de “world food” (comida mundo) e outros de “ethnic food” (comida étnica), mas o princípio é o mesmo – o mesmo de “world music”. No corredor de bebidas, encontramos café brasileiro escondido numa lata da illy; no corredor de frutas & legumes, encontramos laranjas marroquinas e mirtilos chilenos. Esses produtos, no entanto, não estão no corredor de “comida mundo”, pois neste só ficam os temperos asiáticos e tipos diferentes de arroz. Uma mostarda indiana, um molho mexicano ou um arroz tailandês. Sacas a ironia? Sacas o resquício do imperialismo? “O que nós, verdadeiros britânicos, não consumimos todos os dias há de ser isolado naquele corredor”.

Rubrica: é visível o quão pouco os jovens britânicos parecem saber do passado colonialista da Inglaterra.

CENA QUATRO

 

 

Torre do relógio no prédio Trent, no campus da Universidade de Nottingham.

 

Antes de vir para cá, recebi vários emails da universidade, explicando-me as aulas, a estrutura, a cidade – parecia-me muito organizado. Na primeira semana de aula, é hora de escolher os módulos – “mas eu já os escolhi pela internet e completei o formulário que o escritório internacional me mandou”? Pois é, não valeu nada aquilo, tive que escolher minhas disciplinas – que, aqui, chamam-se módulos – de novo.

Era para eu ter sido registrado no Departamento de Línguas e Culturas Modernas. Pelo primeiro mês, eu via o meu registro insistir em me dizer que eu era aluno do Departamento de Engenharia Civil. Depois de algumas [muitas] reclamações, mudaram. Acho que eu nunca fui tantas vezes à coordenação de Comunicação Social na UFSM como eu já fui à secretaria do meu departamento aqui. Na primeira semana, a secretária decorou meu nome.

A matrícula toda é feita em papel. Todos os alunos de todos os semestres – tudo é feito no papel. É pôr o nome do módulo, o código, os créditos, o nível e pedir para o professor assinar ao lado. Uma universidade onde os trabalhos acadêmicos são enviados pela internet por um programa especial, mas ainda faz a matrícula no papel.

O mural com os horários é dividido por nível (ano). Geralmente, as graduações aqui têm três anos. Cada módulo tem uma palestra (lecture), obrigatória a todos os matriculados, e várias opções de seminários (seminar). Eu achei que era só escolher um horário aleatório e não levei em conta as lectures. Isso me rendeu mais uns mililitros de suor e uma dor de cabeça, já que eu tive que correr de mural em mural com um pedaço de papel na mão a tentar organizar minha agenda.

Rubrica: perdi um dos módulos que queria (Global media and communications, Média globais e comunicação), mas me matriculei em outro que não sabia que seria tão bom (Modernity and postmodernity, Modernidade e pós-modernidade).

CENA CINCO

O prédio Portland é o coração das atividades estudantis. Lá ficam a livraria, o café, o banco, o restaurante universitário (que só serve fritura e pizza), as sociedades. Aliás, as sociedades são muito interessantes, são como grêmios estudantis divididos por interesse: desde a sociedade árabe até a sociedade de quadribol (esporte dos livros do Harry Potter).

Todos os dias, haverá uma empresa diferente oferecendo algo em troca de que peguemos uma panfleto da empresa. Dessas oferendas, já ganhei: um chocolate quente, um copo de café, um cuppa, um marca-texto, dois brownies e uma xícara. Isso só num mês!

Todos os estudantes se encontram no prédio Portland e isso reflete a organização dos estudos por aqui. Cada curso tem poucas disciplinas obrigatórias, então não é raro ver alunos de cursos diferentes em disciplinas de outros cursos. Alguns estereótipos brasileiros não se aplicam aqui. Uma de minhas colegas de árabe tem vários piercings, tatuagens, o cabelo bagunçado e a roupa rasgada – ela estuda Administração. Carl, um de meus roommates, joga basquete na faculdade, é parte de uma fraternidade e faz Letras. Todos os estudantes se misturam e convivem com os outros. Se eu faço Sociologia e quero conversar sobre arte moderna com alguém das Artes, não vou ganhar olhares de reprovação ou superioridade do interlocutor.

Rubrica: o olhar é uma característica engraçada daqui, porque as pessoas não te olham nos olhos na rua, sempre olham para o chão. Pelas primeiras semanas, achava que havia algo errado com meus sapatos.

CENA SEIS

 

 

Rua em frente ao Castelo de Nottingham.

 

 

Pubs, clubes, bares, restaurantes. Os nativos de Nottingham juram que a vida noturna de Manchester é a melhor da Inglaterra e que Birmingham é muito melhor para se sair do que Nottingham. Os intercambistas se preocupam mais em frequentar todos os lugares. Os clubes têm uma fachada estadunidenses e tocam música estadunidense, mas os pubs têm a cara da Inglaterra. Em “The Greyhound”, um pub perto de casa, um casal com mais de cinquenta anos, cheios de tatuagens, cabelos comprido e brincos serve a cerveja. Um grupo de amigos toca algumas músicas irlandesas no canto de lá. Um senhor bebe sozinho e um grupo de amigos joga sinuca no lado de cá e uma família faz uma refeição ao meu lado.

Rubrica: todos podem ir ao pub e, de fato, vão.

CENA SETE

Enquanto eu sento aqui a escrever, olho pela minha janela e, involuntariamente, penso no dia em que só me lembrarei da vista daqui. Os cheiros são diferentes, as pessoas são diferentes, os lugares, as comidas, os sons. Convivo com pessoas de todos o mundo, posso contar, no mínimo, vinte nacionalidades; abrigo-me em Patrícia e Taís, de Minas Gerais, quando a saudade é grande e a vontade de tagarelar em português é maior. Estar longe do que me é familiar me torna mais aberto às diferenças. Só queria que essa sensação nos pudesse ser eterna, seríamos pessoas melhores.

Rubrica final: a memória é falha e várias outras coisas poderiam ser ditas. Ficam aqui as memórias que, neste primeiro mês, meus dedos escreveram inconscientemente.

[+Leia o primeiro ato]

REFLUXOS DE BORDO EM DOIS ATOS, SEGUNDO, pelo viés de Gianlluca Simi

gianllucasimi@revistaovies.com

 

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