Pouco depois de assumir como Ministra da Cultura do governo de Dilma, uma das primeiras ações de Ana de Hollanda à frente da instituição já gerou forte polêmica. No dia 20 de janeiro, o Ministério da Cultura (MinC) retirou de sua página a licença Creative Commons, que fora implementada durante a gestão de Gilberto Gil e era um dos principais símbolos da adesão do órgão à cultura do colaborativismo.
Nos primeiros dias, houve uma série de manifestações na internet, em diversos sítios e blogues, além do twitter, relacionados à atitude do Ministério. A página, que desde 2004 ostentava a frase “O conteúdo deste sítio é publicado sob uma Licença Creative Commons”, passou a exibir “Licença de Uso: O conteúdo deste site, produzido pelo Ministério da Cultura, pode ser reproduzido, desde que citada a fonte”. Tal mudança suscitou um debate que envolve questões jurídicas e, principalmente, tensões relativas à política cultural que será adotada daqui para a frente pelo MinC.
O Creative Commons
Creative Commons é um projeto associado à ideia de copyleft – termo que se opõe a copyright (direitos autorais) e se popularizou no contexto dos softwares de código aberto –, para a criação colaborativa e para o desenvolvimento de um modelo de negócios e de um entendimento alternativos do que é a produção cultural. “Ele legaliza atividades que hoje são consideradas ilegais pela lei de direitos autorais, que no Brasil é excessivamente restrita. É também fundamental para a educação e para o acesso aos bens culturais”, explica Ronaldo Lemos, Diretor do Creative Commons no Brasil e Diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas. O Blog do Planalto – blog oficial da Presidência da República – também utiliza a licença para seu conteúdo publicado.
O Creative Commons surgiu em 2001, no contexto da era digital, da integração via internet e de todas as mudanças que isso acarretou na forma como se consome cultura. As leis de direitos autorais existem para proteger os direitos dos autores de obras, de modo a não permitir que sua obra seja reproduzida de maneira que outrem lucre com a sua produção. Surgiram no século XVIII, na Inglaterra, como uma reação ao monopólio que os impressores de livros exerciam sem dar retorno aos respectivos autores.
As leis de direitos autorais, que pela legislação, já atuam sobre as obras no momento de sua criação, são basicamente de caráter restritivo e protecionista. Por esse motivo, não estão adaptados à nova característica do consumo – não só no sentido de aquisição, mas de fruição – cultural que existe no mundo hoje em função da possibilidade de compartilhamento de arquivos na internet. E se um artista ou produtor de conteúdo, ao invés de proibir a reprodução de sua obra, decide liberá-la para os usuários da rede? Aí entra o licenciamento via Creative Commons.
O Creative Commons, atualmente, é uma organização sem fins lucrativos que ajuda os usuários a criarem licenças de valor internacional para a utilização do conteúdo que produzem. Tais licenças não anulam os direitos autorais: apenas flexibilizam a forma como o autor quer que sua obra seja reproduzida, disseminada e quais direitos da lei de copyright ele quer reservar para si. As licenças podem ser mais ou menos restritivas, dependendo das opções feitas, e ponderam itens como: atribuição de crédito de autoria, uso comercial ou não, permissão de obras derivadas ou não (item relacionado à cultura do remix), e compartilhamento pela mesma licença no caso de obras derivadas.
A Polêmica
Em função das diversas manifestações, o MinC publicou uma nota no seu próprio sítio, afirmando o seguinte: “a retirada da referência ao Creative Commons da página principal do Ministério da Cultura se deu porque a legislação brasileira permite a liberação de conteúdo. Não há necessidade de o ministério dar destaque a uma iniciativa específica. Isso não impede que o Creative Commons ou outras formas de licenciamento sejam utilizados pelos interessados”.
O Diretor do Creative Commons no Brasil, Ronaldo Lemos, afirmou que “do ponto de vista jurídico, a frase que colocaram lá não quer dizer nada. Quem utilizar os conteúdos do site com base nela enfrenta um problema de insegurança jurídica enorme”. Ele afirmou também que a visão da ministra, pela atitude tomada em relação à licença CC e por seu discurso de posse, “é a visão das entidades arrecadadoras, é a visão do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição)”.
Na contramão dos protestos, Renato Pacca, colunista da edição online do jornal O Globo, acredita que a insatisfação gerada tenha ocorrido, principalmente, “pela retirada da propaganda gratuita” à plataforma Creative Commons do site do MinC. “A alteração do texto inserido no site do Ministério é juridicamente válida e basta para que qualquer um reproduza o conteúdo livremente, desde que citada a fonte”, afirma, “sem qualquer necessidade de uma licença específica como é o caso da grife CC”.
Em texto reproduzido no próprio site do MinC, Pacca defende que a plataforma Creative Commons é apenas uma das formas de propagar a ideia de compartilhamento, e que a “grife CC” sentira-se lesada justamente por perder a chancela governamental. Ainda assim, é necessário levar-se em conta que diversas entidades ao redor do mundo inteiro, interessadas em difundir a ideia do compartilhamento e do colaborativismo, dão aval à licença já consagrada, e que ela de fato é mais clara e mais representativa do que uma frase solta no sítio do MinC.
No dia 25 de janeiro, quatro artistas divulgaram manifestações em defesa da ministra Ana de Hollanda. Marco Venício de Andrade, Danilo Caymmi, Tibério Gaspar e Antonio Adolfo apoiaram a atitude da ministra, questionando os interesses por trás da organização Creative Commons. Enquanto Venício de Andrade colocava em questão as corporações que supostamente patrocinam o CC, e o fato de “um órgão do governo brasileiro […] ser ‘licenciado’ por uma entidade forânea”, Antonio Adolfo afirmou que “os criadores são os primeiros prejudicados e, como consequência, os cidadãos, pela atuação dessa entidade, que sob uma falsa bandeira da ‘defesa’ em prol do que denominam ‘cultura livre’ acabam por tentar patrocinar ‘mudanças’ escandalosas no direito autoral, aniquilando os profissionais que produzem cultura”.
Outra questão levantada nas discussões é o fato de que o conteúdo previamente licenciado sob Creative Commons não pode ter sua licença revogada – afinal, teoricamente, já pode ter sido reproduzido à vontade por quem tivesse entrado em contato com ele quando ainda estava sob a licença. Apesar de certa falta de especificidade da atual “licença” que está na página do MinC, talvez esse não seja um problema – afinal, a reprodução continua sendo permitida.
O discurso dos grandões
A discussão acerca do uso da licença Creative Commons no sítio do MinC surge justamente num momento em que o Brasil discute junto à sociedade civil uma reforma na legislação de direitos autorais do país, indiscutivelmente obsoleta e deturpada por alguns interesses que afloram no contexto da indústria cultural. Pela legislação atual, teoricamente, é crime que professores reproduzam filmes e música em sala de aula, que cinematecas, museus e bibliotecas reproduzam seu material para conservação, que alguém passe um CD comprado para o MP3 player (cópia privada), que sebos revendam obras e que as festas toquem “Parabéns a você” sem pagar os devidos direitos.
A lei de direitos autorais trata do monopólio de exploração de uma obra, mas precisa dialogar com o outro extremo, que é o da esfera pública – o aspecto do acesso às obras. Segundos dados de uma reportagem da revista Caros Amigos, uma pesquisa feita pelo Grupo de Pesquisas em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai) mostra que mais de dois terços do dinheiro arrecadado em função de direitos autorais não vai para os autores de fato, mas fica com os intermediários – as editoras.
Aí está a razão de a grande indústria cultural, seja ela fonográfica, audiovisual ou de qualquer outra natureza, temer tanto as inovações que as novas formas de consumo estão trazendo. Elas prejudicam os monopólios e o enriquecimento irrestrito com base na produção cultural massificada – afinal, com apenas parte dos direitos chegando realmente ao autor, ele só tem lucro se as vendas de seus produtos atingirem níveis altos o suficiente para compensar os “desvios de trajetória” dos direitos autorais.
Outro estudo, ainda mais preocupante, realizado pela organização “Consumers International”, coloca o Brasil em 28º lugar, de 34 países pesquisados, no que diz respeito à forma como as restrições de direitos autorais prejudicam o acesso ao conhecimento. Uma das pautas da reforma da lei de direitos autorais, por exemplo, trata do esgotamento de diversas obras pedidas como bibliografias nas universidades, cuja única forma legal de obtenção, atualmente, é nas bibliotecas, nas quais o acervo é normalmente insuficiente – segundo outro estudo do Gpopai, 30% da bibliografia básica dos cursos está esgotada.
Em 2010, ocorreu a Consulta pública para modernização da Lei de Direito Autoral, durante um período em que as pessoas puderam contribuir para a proposta e propor reformas à legislação. O projeto, que pode começar a tramitar no Congresso no primeiro semestre de 2011, visa resolver essas questões e traz, ainda, a proposta de fiscalização das organizações de gestão coletiva como o Ecad, teoricamente responsável pela arrecadação e distribuição dos direitos autorais entre os artistas. O Ecad, que já se pronunciou contra quase todos os aspectos da Reforma pretendida, tem atuado como um dos guardiães da política conservadora de direitos autorais. Só recebem os direitos autorais aqueles artistas ou compositores filiados a uma das nove sociedades que compõem o Ecad, desde que sejam registradas lá as suas músicas. A proposta de fiscalização surge porque esses processos não são considerados suficientemente transparentes.
A discussão que agora surge, portanto, não resulta somente dos óbvios problemas que a legislação vigente sobre os direitos autorais apresenta no Brasil, mas também em função da desatualização e da resistência de determinados setores em admitir que os tempos mudaram e a forma como as pessoas se relacionam com a cultura e entendem a questão da propriedade também.
A frase que agora paira na página do MinC pode, talvez, representar a intenção do órgão em fomentar a cultura de colaboração e compartilhamento na sociedade. Até que ponto, no entanto, abdicar de uma plataforma como o Creative Commons, que é já notória, em razão de uma frase própria baseada na legislação nacional não reflete certa prepotência? A opção feita pelo Ministério sinaliza não só o tipo de política que o órgão pode vir a adotar mais à frente, como também deixa transparecer a falta de humildade em reconhecer uma iniciativa alheia cuja singularidade foi capaz de provocar a adesão de diversos projetos e entidades em todo o mundo, como a UNESCO, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, a ONU, a revista Nature em seus artigos sobre o genoma e projetos como a Wikipédia.
Se, como afirmado no manifesto dos artistas, pode parecer estranho que uma “entidade forânea” seja responsável pelo licenciamento do conteúdo do sítio do órgão ligado à cultura brasileira, não se pode negar a relevância de existir uma forma clara como o Creative Commons para garantir os direitos de distribuição e o princípio da liberdade a quem não se vê representado na atual legislação de direitos autorais. A discussão sobre a utilização da licença Creative Commons no site do Ministério da Cultura não diz respeito apenas à forma como o MinC disponibiliza seu conteúdo – ela pode sinalizar o retrocesso de uma política cultural mais aberta, inclusiva, para o rendimento às demandas da indústria cultural. Se isso vai se confirmar ou não, só o tempo dirá.
NÃO É SÓ UMA LICENÇA, pelo viés de Tiago Miotto.
tiagomiotto@revistaovies.com
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Excelente matéria. Das que li até agora sobre o problema, essa é a mais completa.
Do caralho, Tiago! Muito bem explanado e redigido. Suficientemente esclarecedor e opiniático. Parabéns!
No dia que o ministério do planejamento aprova normativa sobre software livre a “irmã do Chico Buarque” retira o creative commons do site. No mínimo é engraçado!
E enquanto isso, a Rede Cultura Viva? NADA!
Eu sou mais minɔɔ!
paguei pau, parabéns. ótimo texto, abração!