“Claro, não vou negar”, respondeu Flory, “que, sob alguns aspectos, modernizamos este país. E nem poderia ser de outro modo. Na verdade, antes de irmos embora, teremos destruído toda a cultura nacional birmanesa. Mas não civilizamos ninguém, só esfregamos a nossa sujeira na cara do povo daqui. Aonde vai levar essa marcha do progresso moderno, como o senhor diz? No máximo, vai chegar à nossa bem conhecida porcaria, feita de gramofones e gorros de feltro”.
A BIRMÂNIA
A história do escritor britânico George Orwell é notável. O autor de ‘1984’ e de ‘A Revolução dos Bichos’ pode ser considerado um dos proeminentes literatos do século XX. Nos livros de Orwell, sua história pessoal não é só pano de fundo, mas artigo principal, desde ‘Na Pior em Paris e Londres’, seu primeiro livro, em que retratou sua vida como sem-teto, até ‘Homenagem à Catalunha’, uma amostra da vida revolucionária durante a Guerra Civil Espanhola, em que Orwell combateu ao lado das forças socialistas catalãs. Em sua primeira obra ficcional, Orwell também usou suas experiências para criar o universo da história. ‘Dias na Birmânia’ (de onde o parágrafo acima foi retirado) é ficcional, mas muito do que é ali caracterizado foi parte dos cinco anos da vida de Orwell como policial do Império Britânico na Birmânia, colônia britânica na época.
O livro conta parte da história de dominação inglesa, mas investe principalmente no contexto local, mostrando como a corrupção e o racismo se reproduzem nas pequenas comunidades da época. Flory é o personagem principal, um inglês que não suporta a hipocrisia britânica de ‘estandarte do progresso no Oriente’. Flory não tapa os olhos para algo que todos os ingleses que estavam nas colônias orientais sabiam: estão ali por fins puramente comerciais, para retirar tudo o que for possível daquela terra e irem embora de volta à Inglaterra.
Séculos antes de Cristo, a área entre a Índia e a China já era habitada. Uma região que hoje pode se julgar estratégica por estar entre duas grandes potências emergentes era palco de batalhas entre pequenos reinos. Mais tarde, toda a região foi colonizada pela expansão européia e, no século XVI, o comandante mercenário Filipe de Brito e Nicote se revoltou contra seus contratantes arracaneses (antigo reino de Arracão, hoje província de Mianmar) e se tornou o primeiro homem branco a controlar uma área no país. Logo viriam muitos outros.
Depois de três guerras conhecidas por Guerras Anglo-Birmanesas, em 1886, os britânicos passam a controlar todo o território birmanês. Só em 1948 a Birmânia se tornaria independente novamente, 14 anos depois do lançamento do livro de Orwell e mais de 20 anos depois do autor ter servido no país.
O MIANMAR
“Este é meu país. E é assim que ele é há mais de 40 anos”, as imagens mostram um general acima de um tablado e, em segundo plano, centenas de soldados devidamente fardados. Ao som dos tambores, todos gritam enquanto movem suas baionetas acima do ombro. “Só me lembro de algumas semanas quando as coisas foram diferentes. Em 1988, eu era apenas um garotinho, foi quando todos na Birmânia saíram às ruas. Estavam cheios dos governantes militares. Eles queriam mudanças, exigiram que os generais abdicassem do poder. Havia muita esperança. Tínhamos até Aung San Suu Kyi que voltou da Europa para guiar o povo. Mas os generais queriam tudo diferente. No final do dia, 3 mil pessoas foram mortas nas ruas e tudo acabou”.
Depois do fim da dominação britânica, um parlamento foi instituído, com Câmaras Alta e Baixa. Mianmar tinha um presidente e um primeiro-ministro, ao melhor estilo bretão. Mas foram apenas 14 anos assim. Logo em 1962 um golpe de Estado liderado pelo General Ne Win colocou os militares no poder. Novamente, apenas uma parcela de poderosos controlaria o povo birmanês.
“Sinto que quero lutar pela Democracia, mas eu acho melhor termos um plano a longo prazo. Não podemos sair para as ruas novamente e levar um tiro, não temos mais gente para morrer. Em 1988, as pessoas foram tão corajosas, mas, às vezes, eu sinto que…elas morreram por nada. Não restou nada de 88. É como se tudo tivesse sido esquecido. Parece…as trevas”.
O mundo do Sul, subdesenvolvido, está cheio de exemplos de ditadores que se aproveitam da fragilidade das nações libertas depois de anos de colonialismo europeu para dominarem suas democracias e instituírem sistemas autoritários. Na Birmânia, não foi diferente. O golpe de Estado, que levou os militares ao poder, ocorreu há 48 anos e, desde então, apenas três generais ocuparam a presidência.
Mas, em 1988, o povo tomou as ruas. A revolta, liderada pelos estudantes, trouxe de volta da Europa Aung San Suu Kyi, conhecida como ‘Mandela feminina’. Filha de um carismático líder birmanês, Sun Kyi voltou para levar o povo de volta ao poder. Mas a Junta Militar não permitiu e revidou com tiros e prisões e a revolta acabou em um banho de sangue. Um ano mais tarde, os militares mudavam até mesmo o nome do país, que deixaria de ser a Birmânia para se chamar Mianmar. Um ano passado e, em 1990, os militares cometeram o maior erro nos 48 anos de ditadura: convocaram uma eleição democrática.
Mesmo cumprindo prisão domiciliar, Aung San Suu Kyi ainda era líder do povo e seu partido levou mais de dois terços das cadeiras no congresso. Mas os generais, ambiciosos, não se retiraram: anularam a eleição e permaneceram no poder. O povo de Mianmar se fecharia em suas casas, com medo da repressão governamental. Não haveria revoltas populares por quase duas décadas. Só em 2007 protestos organizados surgiram.
O documentário ‘VJs de Mianmar: notícias de um país fechado’, de onde foram retirados os textos do início desse capítulo, conta a história desta última revolta, desde sua ascensão até seu derradeiro fim. Mas não a conta sob as lentes jornalísticas ocidentais e, sim, a partir de imagens feitas por jovens birmaneses, insatisfeitos com o regime militar imposto. São jovens que arriscam suas vidas para mostrar ao mundo o que está acontecendo em seu país, que não aceita a entrada de jornalistas estrangeiros.
Em 2007, um clima estranho tomou Mianmar. O governo dobrou, do dia para a noite, o preço dos combustíveis. Os sussurros queriam virar gritos e, nesse momento, algo extraordinário aconteceu: os monges teravada começaram a se organizar para protestarem contra o regime. E a população que acreditava naqueles monges passa a acreditar também que, da união da população, pode-se confrontar o governo. As cenas do filme, gravadas em câmeras amadoras e celulares, mostram milhares de pessoas protestando na maior cidade do país, Rangoon. Novamente, é por Aung San Suu Kyi que o povo pede auxílio e, naturalmente, a caminhada segue para a casa onde ela está presa. Por algum tempo, a sensação é de que, sim, o povo pode contra aquele governo. Mas, aos poucos, a violência e o autoritarismo prevalecem. Toques de recolher, proibições de todos os tipos, espancamentos, prisão de milhares de monges, mortes vão minando o movimento contra o regime. E, no fim, são novamente os estudantes que permanecem, até que tudo acaba como começou: “Aonde vai levar essa marcha do progresso moderno, como o senhor diz? No máximo, vai chegar à nossa bem conhecida porcaria, feita de gramofones e gorros de feltro”. Essa marcha do progresso entrega carros, motos e roupas caras, mas não liberta ninguém num país fechado do Sudeste Asiático.
*Texto originalmente publicado na edição 11 da revista Fora de Pauta
HISTÓRIA DE UM PAÍS FECHADO, pelo viés de João Victor Moura
joaovictormoura@revistaovies.com
Para ler mais resenhas acesse nosso Acervo.