Existe sempre um momento do dia em que eu fico feliz de estar aqui. Mas, dependendo do tempo, que costuma passar sempre igual, meus maxilares começam a protestar. Dói no canto da boca, dos lados, nas covinhas pequenas, no queixo. O rosto empalidece um pouco, acredito. Mas são ossos do ofício e não sou eu quem vai reclamar. É lógico. Depois de tanto tempo para conseguir um bom trabalho como esse daqui, eu não sou louca de largar, não é? Mesmo que eu precise ficar mais todo o verão – janeiro, fevereiro e março. Mas sair, eu não saio. Só eu sei o esforço que foi para chegar até aqui. Só eu sei dos primeiros dias. Sol na cara, barulho ensurdecedor de carros passando, crianças chorando, olhos direcionados ou olhos desatentos. Depois veio a chuva, o frio fora de época. As nuvens e, ainda por cima, o vento. O vento que acabou comigo. Levantou as arestas de metal aqui ao lado e hoje eu passo o dia com a coluna torta e inclinada. Penso em exigir uma aposentadoria digna, afinal alguém precisa pagar pelos danos à minha saúde. Ah, mas não consideremos apenas a minha saúde. A minha autoestima está um tanto quanto abalada também. Minha pele que antes era lisissíma, efeito mais do que trabalhoso no Photoshop, virou algo como um chão seco. Ristes, rugas, pedaços descascados todo o santo dia. Essa maciez que antes era minha primeira impressão virou um amontoado de brechas. Pensa que é glamouroso? Não é não. Eu sofro aqui. Mas eu quis, reconheço. Minha avó sempre dizia que mulher precisa sofrer para ficar bonita, faz parte da condição da mulher.
Mas, bem no fundo, eu acredito que discordava da minha avó. Pensando bem, não acredito que as mulheres precisem sofrer tanto. Eu trabalho com estética, nem sempre é fácil. Dói todo o tipo de operação no corpo, cansa a preocupação e logo aparece o medo de a natureza não ser tão gentil com a gente. Só que é sempre estranho pensar o motivo de tanta preocupação. Eu sei, meu corpo é meu produto. Eu apareço, as pessoas veem, as pessoas desejam o que eu estou lhes mostrando, elas compram, eu cumpro a minha tarefa. Resumidamente falando, é simples.
Alguns não acham que meu trabalho seja válido. Em alguns lugares, bem grandes por sinal, eu sou proibida de entrar. Alegam que poluímos o visual da cidade. Olha, eu acho, bem sinceramente, que quem polui as coisas não sou eu, ok? Já está tudo muito poluído por aí – fumaça de carro, de fábrica, cheiro de esgoto, de saneamento, de rua. Quem que toma as devidas providências? Eu estou sempre no mesmo lugar – eu não consumo, não poluo, não trafego. Horrível pensar em levar a culpa por nada. Mas eu esqueço.
Olhando para a minha trajetória, consigo sorrir contente. Cansou bastante, mas eu persisti. Foram semanas de fotos, de roupas apertadas, de poses forçadas. Depois eu passei pela fase cirúrgica. O computador leu todos os meus traços, puxou daqui, puxou dali. Doeu muito. Depois foram as cores, os ajustes. Um monte de pessoas na mesma sala olhando para mim, montando a minha peça. Mas eu não me importei, afinal muito mais pessoas me veriam logo após o procedimento. Recuperei-me rápido da cirurgia. Quando dei por mim, estava já sendo colocada em um ponto estratégico. Ao abrir os olhos, lá estava euzinha, gigante, com uma bela vista para uma via principal da cidade, olhando os carros e os ônibus todos acompanhar a minha imagem. Foi uma felicidade sem tamanho. Tenho certeza de que a minha avó passou por ali, cutucou a amiga, apontou com o dedo erguido e disse: “Olha ali, Darci, é minha neta!”. Sou realizada.
Sabe, a vida de uma modelo de outdoor não é fácil. O tempo inteiro eu escuto críticas. A primeira foi a tal história da poluição visual, coisa que eu desconsidero. Outra coisa que eu escuto muito é papo de outras mulheres que dizem que eu represento uma beleza que não existe, que eu sou alterada, que eu as obrigo a desempenhar um papel que não lhes cabe. Gente, a única coisa que eu faço aqui é vender um produto. Não represento é nada. Qual o problema em eu querer ser bonita, ser vista? Unimos o útil ao agradável – querem que eu venda alguma coisa e eu quero ser vista. Pronto. Simples, não é?
Mas hoje o dia é indescritivelmente monótono. Nessas horas, eu me lembro da minha avó e considero a ideia de que mulher sofre mesmo, mas é por bons motivos. Há dias em que não recebo mais olhares. Todos passam, eu fico aqui (isso é um poema, eu sei). Uma vez escutei de uma amiga minha que o sonho acaba rápido. Você logo é substituída e não há nada que se possa fazer. Acho que estou começando a entrar em uma onda de pessimismo. Ora pensar coisas assim, quando tudo está em ordem! Mas não consigo me livrar da incabível sensação de finitude. Outro pedaço de mim descola. Acho que, por um breve momento, só desejo andar de mãos com a minha avó e voltar a ser anônima.
* Este Perfil foi originalmente publicado na revista Fora de Pauta (do curso de Jornalismo da UFSM), décima primeira edição, 2010.
A MOÇA DO OUTDOOR, pelo viés de Nathália Costa
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