O ALTERMUNDISMO NO LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL

Em 1952, o demógrafo francês Alfred Sauvy publicou artigo no jornal L’Observateur, cujo título era “Três mundos, um planeta”, no qual propôs que o mundo estaria dividido em três: o primeiro mundo, desenvolvido e capitalista (p. ex., Estados Unidos); o segundo, socialista (p. ex., União Soviética) e o terceiro mundo, subdesenvolvido (p. ex., Brasil). É a partir da crítica à noção de terceiro mundo – a qual, por muito tempo, fez-se escrita em letras capitais, como uma entidade – que partimos neste texto rumo à análise do altermundismo do jornal Le Monde Diplomatique Brasil.

O altermundismo, ou antiglobalização, é um conjunto de ideias que se opõem à expansão neoliberal, pela qual o mundo é visto como um grande mercado em potencial. De pronto, pelo prisma capitalista, de onde surge o neoliberalismo, as pessoas não têm poder sobre suas próprias existências, cabendo-lhes tão somente serem convencidas a consumir. Baseada na mentalidade estadunidense de superação, a globalização alega que todos teriam as mesmas oportunidades se interligássemos nossos mercados. Exatamente aí jaze nossa crítica: a preocupação com os mercados. Aos capitalistas, não lhes interessam os seres humanos, como pessoas com histórias e culturas distintas.

Quando relacionamos o altermundismo aos média, chegamos ao paradigma que Luiz Gonzaga Motta nos diz ser contra-hegemônico, ou sociocêntrico. A partir deste, o jornalismo é tratado “como um espaço e um instrumento dos enfrentamentos políticos na disputa pela visibilidade e pela conquista do poder” (MOTTA, 2004). Ademais, quando centramos os média e, em especial, o jornalismo, na sociedade, tomamos as pessoas como ativas, pensantes, capazes de influenciar suas próprias vidas, a sociedade em que estão e também o jornalismo que usam [da ideia de “usuário” como sucessor do termo “consumidor”].

No entanto, no contexto mundializado em que vivemos, a que McLuhan se refere como aldeia global e que não é um resultado somente da globalização, não nos basta o conhecimento que adquirimos dentro do limite do nosso olhar. É preciso que vençamos as divisas e as fronteiras, como propõe Eduardo Meditisch em referência às contribuições de Adelmo Genro Filho, para que possamos nos relacionar com as realidades de alhures com a mesma intensidade e inteligibilidade com que nos relacionamos com o imediato, pois:

 

Já não temos meios pessoais para nos relacionarmos diretamente com esse mundo [“o mundo inteiro”]. E é justamente em cima dessa necessidade que surge o Jornalismo, como forma de conhecimento que vai cumprir um papel semelhante ao papel que cumpre a percepção individual da singularidade dos fenômenos. Só que atua como se nós nos relacionássemos com a imediaticidade do mundo, estendido para além da aldeia. (MEDITISCH, 1992).

O JORNAL LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL

Idealizado pelo jornalista francês Hubert Beuve-Méry e pelo diplomata franco-húngaro François Honti, o Le Monde Diplomatique surgiu como um caderno do jornal Le Monde na França em 1954. A princípio, tratava exclusivamente de questões diplomáticas, como bem diz o nome, mas, a partir da década de 1970, vem se posicionando como antiglobalização e em prol do desenvolvimento regional.

Em 1996, o diplô, como é conhecido na França, ganhou autonomia editorial, tornando-se uma publicação mensal independente. Além de seu conteúdo, o interessante no diplô também é seu quadro de acionistas: 51% das ações pertencem ao grupo La Vie-Le Monde (mesmo grupo do jornal Le Monde); 24,5%, à associação Amis du Monde Diplotique e 24,5%, aos redatores do jornal. Isto é, metade das ações estão divididas entre quem escreve o jornal e quem lê – um primeiro exemplo do tipo de publicação que tentamos, aqui, analisar. Existem hoje 72 edições internacionais, que chegam a 2.4 milhões de exemplares todos os meses.

O jornal Le Monde Diplomatique Brasil surge em 1999 por uma iniciativa do Instituto Pólis, uma organização não-governamental de fomento ao estudo de políticas sociais. Entre 1999 e 2007, quedou-se na internet até que, em agosto de 2007, passou a ser impresso. Participam do conselho editorial da edição brasileira, por exemplo, Plinio de Arruda Sampaio, Heródoto Barbeiro e Sebastião Salgado.

A primeira característica que chama a atenção no diplô do Brasil [como nos referiremos à publicação a partir de agora] é o tamanho personalizado de 40cm por 27,5cm. Já isso bastaria para chamar o olhar do leitor que vai à banca por exemplo, mas não queda aí. As capas do jornal são geralmente feitas com ilustrações, do tipo desenhos ou com fotos misturadas com desenhos. A palavra diplomatique em destaque no nome do jornal também  atrai bastante o olhar do leitor que já se interessa por assuntos afins.

Algumas das matérias de capa do diplô do Brasil incluem “Os limites da terra”, em dezembro de 2009, “O futuro das cidades”, em março do mesmo ano, e “O Brasil envenenado”, em abril de 2010. Essas capas, por exemplo, tratavam do esgotamento dos recursos naturais pelo capitalismo, de soluções urbanísticas para as sempre-crescentes cidades e sobre o uso indiscriminado de agrotóxicos no Brasil – respectivamente.

Os assuntos tratados pelo diplô cobrem vários aspectos da vida social, cultural e política do mundo, com foco na América Latina e no Brasil, como bem prega o mote, que aparece logo abaixo do nome do jornal: “Um novo olhar sobre o mundo. Um novo olhar sobre o Brasil”. Ao pensarmos sobre o adjetivo “novo”, logo nos vem a mente a definição de contra-hegemônico, ou sociocêntrico, de Luiz Gonzaga Motta, que, segundo ele:

 

[…]não nega a importância do jornalismo e da mídia na sociedade contemporânea nem o seu caráter de classe.[…]Dirige o foco para a sociedade civil, para as relações sociais. Procura identificar os confrontos de classe e frações de classe para observar os avanços e recuos de cada grupo social, as negociações, alianças e concessões. (MOTTA, 2004)

Essa posição sociocêntrica é sempre notável no diplô, que apresenta outras versões para formações discursivas já prontas e consagradas. Para tal, ele não se agarra aos mitos da objetividade e da imparcialidade que parecem sempre nortear a imprensa hegemônica. Os textos do diplô são discursos conscientemente ideológicos, ou seja, têm noção de que aquilo que dizem é dito de um lugar e de um momento – cada palavra, cada frase está permeada por uma ideologia, por sujeitos diferentes, como dizem Marcia Benetti Machado e Nilda Jacks.

Sempre há uma crítica no diplô, mas uma crítica que tem consciência de seu estado e não tenta mascará-lo como mero relato fidedigno da coisa. O diplô apresenta versões e, claramente, pela percepção altermundista, versões outras que não aquelas comumente apresentadas. A opinião é explícita: criticam o latifúndio, a expansão neoliberal, o uso descuidado dos recursos naturais e a politicagem; defendem a integração regional, a valorização da cultura popular, a distribuição de recursos e a desmitificação de categorias consagradas, como “terrorista” e “subdesenvolvido”. Esses são, claro, apenas alguns exemplos.

A transparência do diplô não há de ser idolatrada, mas há de ser celebrada, pois é um mérito deste jornal reconhecer sua própria posição em meio a tantas outras publicações, como a Veja (só para a citar o epíteto antonômico), que se dizem imparciais, neutras, objetivas. Mal notam tais publicações que seus discursos ou, como propõem Machado e Jacks em referência a Pierre Bourdieu, que suas formações discursivas estão sempre ligadas a suas formações ideológicas.

Tudo que pensamos deriva de modos de ver o mundo, os homens e as coisas e nós mesmos enquanto seres do mundo. Incluem-se aí a elaboração e o uso de conceitos sobre o mundo dos objetos e o próprio conhecimento, o posicionamento a respeito dos papeis ocupados historicamente pelos sujeitos, a visão do passado e do futuro, a consciência, ainda que difusa, a respeito do que desejamos ser e de como devemos agir, as noções de moral e de ética, enfim, tudo que pode ser sistematizado de forma mais ou menos estruturada como regra de visão, desejo e ação. (MACHADO, JACKS, 2001).

O aspecto altermundista do jornal Le Monde Diplomatique Brasil fica ainda mais notável ao percebermos que seus textos destroem as noções de mundos desenvolvido e subdesenvolvido. Os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália e a Europa Ocidental não são exemplos intocáveis do que deve ser feito pelo resto do mundo. A América Latina, a África, a Ásia e o Leste Europeu não são tampouco inferiores, sempre a almejar a posição daqueles outros.

Todos os países estão em desenvolvimento e cabe ao jornalismo, como forma de conhecimento, mediar o leitor às várias versões do mundo. Não há lados A e B no mundo, não somos divisíveis em categorias pétreas: sul-americanos, europeus, subdesenvolvidos, comunistas etc. Há sempre de se criticar aquilo que nos parece criticável e de buscar soluções para essas questões.

O jornal Le Monde Diplomatique Brasil, junto a outras publicações brasileiras, como Caros  Amigos e Carta Capital, talvez seja o maior exemplo de contra-hegemonia que tenhamos no Brasil. O diplô dá versões aos fatos, contextualiza-os, posiciona-os historicamente e, portanto, critica-os e os analisa abertamente. Talvez tenhamos tratado, neste texto, da única publicação brasileira que tem consciência de sua ideologia e não a trata como verdade absoluta, como fazem todas as outras publicações, hegemônicas ou contra, de direita ou de esquerda. O jornal Le Monde Diplomatique Brasil traz outras versões.

O ALTERMUNDISMO NO LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, pelo viés de Gianlluca Simi

gianllucasimi@revistaovies.com

REFERÊNCIAS

MEDITISCH, Eduardo. O jornalismo é uma forma de conhecimento? In: O conhecimento do jornalismo. Florianópolis: Editora da UFSC, 1992.
MACHADO, Marcia Benetti e JACKS, Nilda. O discursos jornalístico. In: Anais do 10º Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. Brasília: Compós, 2001.
MOTTA, Luiz Gonzaga. A pesquisa em jornalismo no Brasil: paradigmas em confronto. In: Revista Pauta Geral, Ano 11, v. 6. Florianópolis: Editora Calandra, 2004.

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