-Pessoal, vamos subindo? Nós vamos começar a exibição de cinema hipnótico em instantes!
Figuras desconexas sendo exibidas em questão de milésimos de segundo, enquanto só a iluminação da tela resume os corpos deitados sobre o tatame. O andar de cima do Macondo Lugar está recheado de almofadas e cadeiras e avesso ao que ocorre durante as madrugadas de festa, programas de arte e outros tipos de episódios culturais da casa verde,um dos principais pontos de cultura alternativa do estado. Os presentes deitaram-se sobre um tatame recortado e almofadas grossas estampadas. Para alguns, cadeiras pelos cantos da sala, para outros, o chão, os pilares, as paredes. Há quem efetivamente tenha sido hipnotizado e tenha dormido no escuro do início de noite em Santa Maria.
Dentro do Macondo Circus, evento que reúne artistas de todo o país e estrangeiros, aconteceu a Mostra Internacional de Hipnose Audiovisual, durante dois dias do evento que acontece de 21 a 27 de novembro, na Estação Férrea da Gare, no SESC e no Macondo Lugar em Santa Maria (RS). A mostra trouxe ao andar de cima da casa verde filmes como “Mandalas” e “Samoa”, ambos do diretor argentino Ernesto Baca.
O Festival que há sete anos coloca Santa Maria para cunhar e perceber arte descompromissada com as agruras do mercado, livre de conceitos e aberta a meandros interpretativos, ainda proporciona muito debate, palestras, mostra de artes visuais, teatro e muita música boa. Na área do audiovisual, uma das propostas da programação era hipnotizar, literalmente ou fantasiosamente, os espectadores presentes no local.
Inicialmente foi apresentado o curta “Mandalas” a aproximadas 20 pessoas presentes. Segundo a própria classificação sobre o filme, que em sânscrito quer dizer “círculo energético”, o filme tenta modelar este ritual para concentrar nossa atenção no infinito. De fato, uma gama de imagens surge na tela de forma frenética e veloz, colorindo acidamente os quatro cantos do vídeo. Uma convulsão de sensações atravessa quem os olhos prende na tela, e para contribuir com o abuso visual que recebemos, uma trilha agressiva que parecia colorir o ambiente de cores vibrantes e densas.
Em “Mandalas”, visto pelo público leigo sobre produção cinematográfica, seu aparelhamento, câmeras, posicionamentos e técnicas do estilo experimental de cinema, surtem mais efeitos visuais do que emocionais, e as imagens distorcidamente coloridas acabam exprimindo menos sensações cotidianas no espectador do que o filme “Samoa”, que seria reproduzido minutos depois.
Com 5 minutos de projeções anarquizadas e de uma bela estética que contribuiria há muitos estilos cinematográficos se essa fosse a premissa, o curta talvez consiga questionar melhor o público específico de cinema, que consegue fixar-se por entusiasmo no estilo e nas técnicas, em detrimento do público universal, que classifica “Mandalas” na lista de filmes que consegue espantar, mas não estimular. O filme experimental, gravado em Super-8, segue uma linha mais intelectual de arte, afastando-se do popular mais possivelmente reproduzível e afunilando no quesito audiência, pois o grande público pode se sentir desnorteado com o tipo de informação cinematográfica, o que é uma pena para um Festival tão volumoso e respeitável para as artes como o Macondo Circus, que agrega muito pluralismo de público, participantes e organizadores.
Se a proposta era mesmo discutir com um público mais entendido ou socialmente culturalizado, aberto ao tipo de questionamento, Ernesto Baca alcançou sua premissa. “Mandalas” está para o público sedimentado sobre a técnica do cinema experimental como cálculo estequiométrico está para os químicos. É um filme bonito esteticamente, questionador sonoramente, mas que pode afastar e originar aversão da superioridade dos espectadores.
Quando “Samoa” entrou em cena, com alguns espaços a mais na sala e espectadores bem mais acomodados no ambiente escuro e quase silencioso que se fizera, todo mundo reorganizou o pensamento e o corpo preparando-se para os 66 minutos experimentais vindouros. Assim como o curta-metragem apresentado anteriormente, origina-se da película um turbilhão de imagens efêmeras, menos coloridas e pode-se dizer mais pesadas esteticamente, com profundidade mais humana e propulsora de sensações muito mais instintivas, instigantes, devoradoras de realidade e sonho.
“Samoa”, mesmo na desconstrução acelerada das cenas, consegue ser um pouco mais abrangente para o público. Se o primeiro era construído sobre imagens afastadas de um cotidiano – mesmo que a subjetividade de nosso cérebro permita a invenção fantasmática de figuras não recorrentes – o segundo mostra-se um filme de cenas mais palpáveis e concretas, onde o espectador consegue identificar símbolos mais clássicos e menos densos escondidos na mente do autor.
O filme é uma conspiração de belas imagens capturadas ao longo de “um solitário percurso por diferentes lugares da Argentina”, como explica o sítio do Macondo Circus, e leva à tela rostos e situações mais encontradas com o lúcido e o real do ser humano. A sombra, o delineamento de figuras que a princípio parecem estranhas, partes do corpo, das coisas, das cores. E um som igualmente atormentador. Entretanto, seguindo a linha de “Mandalas”, recorrendo muito mais a efeitos presumíveis, “Samoa” persiste o estilo experimental do diretor, que até mesmo já ministrou conversas sobre seus filmes no Festival de Super-8 de Curitiba (PR), e deixa assim, ainda que toda a arte seja possível de compreensão íntima, o vácuo abissal entre conceito e compreensão popular do público mais despojado e menos ligado à elite interpretativa da arte cinematográfica experimental.
É para ventilar arte pela Boca do Monte que o Festival Macondo Circus trouxe também discussões que ultrapassam a exibição, refletindo a cultura cotidiana que o homem pode conceber e vivenciar. Oficinas incentivarão a produção artística, performances elucidarão o anseio do público por um pouco mais de arte no dia-a-dia, as artes plásticas trarão o composto das figuras na interpretação e a música, como de praxe, traz aos palcos o melhor e as novidades (para alguns ou muitos) da cena fora do eixo brasileira.
O Macondo Circus segue até o dia 27 de novembro na Estação Férrea da Gare, no SESC e no Macondo Lugar em Santa Maria. Se você acha que o planeta está meio estático, dê um rolê pelo Circus 2010.
UM MILÉSIMO HIPNÓTICO, pelo viés de Bibiano Girard
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