A partir da década de 1950, os antropólogos começaram a abrir seus olhos para além das descrições ocidentalizadas sobre povos exóticos e para além da relação entre as etnias e a circunferência da cabeça. Por nomes como Ruth Benedict e Clifford Geertz, surge o culturalismo, para cujos seguidores o fator que mais interfere na formação de um indivíduo é a cultura em que este se insere. Basicamente, o que eles propuseram é que qualquer corpo humano pode ser o casulo de muitas personalidades – tudo depende do lugar e do tempo. Somos, portanto, o resultado da construção de caráter num corpo em que reside o potencial para muitas outras existências.
Somos, de fato, uma mesma pessoa para toda a vida. Em contínuo desenvolvimento para si mesma – com certeza – dir-nos-ia Sartre, mas sempre a mesma pessoa. Isso não quer dizer, no entanto, que, durante nossas vidas, não possamos brincar de sermos outra pessoa. A capacidade de imaginar e de acreditar na fantasia é uma das habilidades do ser humano. Existimos por um só, mas podemos fingir ser outro alguém vez em quando.
Um detetive particular, um caseiro de hotel ou um chefe da máfia irlandesa. Quem queremos ser sem deixarmos de ser nós mesmos? Quem consegue fazê-lo: ser quem não for enquanto é quem seja? Senhoras e senhores: o ator!
“QUEM VÊ A PERSONAGEM É O PÚBLICO”
São 9h15min da manhã do dia 28 de setembro quando eu entro na sala 1227 do prédio do Centro de Artes e Letras (CAL) da UFSM. A sala é grande e praticamente vazia. Só seis das 24 lâmpadas fluorescentes estão ligadas. Também pudera: o sol já brilha há tempos do lado de fora e marca presença ao atravessar os vidros das 16 janelas. O prédio, como a maioria na UFSM, é antigo e nem tão bem cuidado, mas o chão daquela sala é novo, novíssimo. Tábuas polidas rejuvenescem o branco soviético.
Pablo Canalles, professor de Artes Cênicas da UFSM, conecta seu cartão de memória ao aparelho de som e logo a paulistana Maria Gadú se desmancha numa letra bem diferente e bem mais interessante do que o timbalaiê-chiclete de outrora. “Estou com tudo a flutuar no rio, esperando a resposta ao que chamo de amor”, ela canta. Apesar do ritmo calmo, o momento é de trabalho. À música, Juliet Castaldello e André Galarça, estudantes do 8º semestre de Artes Cênicas, começam a se esticar: braços, pernas, mãos. Dão cambalhotas para frente e para trás. Giram a cintura apoiados nas mãos e nas pontas dos pés.
Dos movimentos lentos que acompanhavam Maria Gadú, ficam só os bailarinos. São agora corredores. O inglês Jamie Cullum embala as voltas com o som importado de Rihanna. Naquela sala, até o som brinca de ser outro: Jamie Cullum quase mascara a origem baladeira de “Don’t stop the music”.
Palmas! Juliet e André não esperavam por elas. Palmas! Agora entenderam: invertem o sentido da corrida. Palmas e invertem. Mais palmas e de novo. Pablo brinca, a diminuir o intervalo entre os sons que fazem os joelhos dos corredores se dobrar e direcionar a corrida para o outro lado. Um cabo de vassoura amassado serve de obstáculo. Juliet e André se tornam saltadores – de um lado para outro, reagindo às mesmas palmas de antes.
Deu, chega de corrida, voltam a ser bailarinos. Sob o som dos Beatles, fazem uma coreografia. Pablo junta-se a eles. Um passo para a frente, um para trás, um para o lado e um quarto passo que muda: palmas ou pisadas. Pablo cansou; abandonou os outros bailarinos e voltou a ser só o diretor. André e Juliet agora estão no chão a ofegar. Fecham os olhos e, deitados, não cessam de cumprir as ordens de Pablo. Por agora, eles são só corpos na areia imaginária que os sustenta. Pablo incita a consciência do próprio corpo. “Começa a construir[…]o movimento vem do centro[…]orgânico[…]não se preocupem com o desenho do corpo, mas com o que ele faz”.
A música nunca parou e o ritmo tribal de agora sacode os braços, as pernas e a cintura dos bailarinos. Plano baixo, plano médio e plano alto. Eles saracoteiam livres pela sala. Os movimentos sempre seguem o ritmo da música. Aos poucos, os bailarinos e corredores vão se construindo atores. Ousam vociferar falas soltas do espetáculo que ensaiarão. Até agora era aquecimento.
A mesa verde que ficou no meio da sala reaparece como mesa. Durante o aquecimento era só um detalhe natural. Pablo alcança uma saia e um par de luvas a Juliet. A André, um casaco. Pronto! Lá está o casal protagonista da peça que Juliet e André apresentarão dias 14 e 15 de novembro como “pré-requisito parcial para obtenção de grau em bacharel em Artes Cênicas”. André vira Homem e Juliet, Mulher – suas personagens ainda não têm nome.
O ensaio começa. Juliet sobre a mesa. André carrega Juliet. Mulher senta-se. André a abraça. Homem lhe fala e Juliet ironiza. Mulher pede que Homem fale mais e André o diz – “mais”. Quem é quem?
Tempo. Pablo pede que parem, a fala não está saindo direito. No meio de uma fala gigantesca, cheia de ênclises e infinitivos, André se esqueceu de dizer “quer querê-lo porque quer a mim”. O ensaio continua e Pablo dita aonde a mão deve ir. Ele é o diretor da peça, o orientador do trabalho de André e Juliet. Às ordens de Pablo, Homem e Mulher incitam o que deve ser visado – a mão vai aqui e os olhos, lá; suspiro, tom de voz. Juliet e André conduzirão o olhar da plateia.
Um “assim”, sua posição, sua entonação e seu tempo causam uma discussão. Faz de novo, tenta outra vez…de novo, de novo, de novo. Não, não dá certo. “André, não é a psicologia da personagem, é a tua. Não é o Homem, é o André. Quem vê a personagem é o público”.
BRINCAR COM AS AÇÕES
Hora do intervalo. Aline Ribeiro, colega de Juliet e de André, entra na sala. Precisava conversar com eles, mas não queria interromper o ensaio – esperou duas horas do lado de fora. O tempo passou e estão todos cansados. Pablo e Juliet estão agora à janela. “A gente não encarna a personagem”, diz ela. Lá se foi a minha – ingênua – hipótese. Essa parece ser um ideia comum a quem observa o teatro de fora: o ator e a personagem numa relação esquizofrênica. Segundo Pablo, o ator nunca deixa de ser ele mesmo para ser outra pessoa. O que ele faz é levar a personagem até o público. Enquanto ensaiava, por exemplo, André não deixou de ser ele mesmo para se tornar o Homem – era o André todo o tempo. O que faz o ator então?
Em português, ele atua; em francês, ele brinca. O ator brinca com as ações. Brinca de se fazer outro, brinca de fazer ele mesmo. Sabe-se lá por qual razão uma pessoa decide que sua existência não é suficiente e se põe a brincar, a atuar vidas alheias, que, em sua maioria, nunca existiram que no momento da própria encenação. Juliet e André brincam que são casados, agem como se fossem. Eles nunca foram casados, mas, no momento em que representam Mulher e Homem, fazem crer que são.
O ator é como o camaleão: muda suas cores, insere-se num contexto distinto como se a ele fosse natural, mas nunca deixa de ser o mesmo camaleão. O ator existe para si enquanto também para outros. Sua vida não se resume ao que são no cotidiano. Ele constroi, como conta Pablo, uma segunda natureza, sempre pronta para ser a plataforma para um outro caráter, outra personagem.
A peça “Matrimônio”, escrita pelo argentino Daniel Guebel, traz as duas personagens que Juliet e André brincam de ser desde abril. As folhas com o texto sobre a mesa de Pablo não trazem nada mais do que frases. O escrito em si não mostra quem são Homem e Mulher, o que pensam, o que sentem, o que querem. Aí entra a análise ativa, explica Pablo, durante a qual os três desconstruíram o que liam. O que Homem sente é o que André brinca de sentir. Quando Mulher ri, quem ri, de fato, é Juliet. A construção das personagens é algo proposital. Se outras pessoas encenassem a mesma peça, Homem e Mulher seriam outros.
STANISLAVSKI NA VEIA!
Toda área tem seus cânones. Para o teatro, Constantin Stanislavski parece ser o maior deles. Nascido em Moscou, em 1863, teve contato com as artes desde a infância, por influência da família. Em 1897, junto com Vladimir Dantchenco – outro dramaturgo-, criou o Teatro de Arte de Moscou. Stanislavski pensou muito o ofício do ator e, a partir de suas obras sobre o tema, surgiu o sistema stanislavski. O tal sistema nunca foi uma criação oficial de Stanislavski, mas simplesmente o conjunto das técnicas com as quais trabalhava. Importadas pelos estadunidenses, essas técnicas se tornaram uma instituição e, pelo mundo, até hoje, é a metodologia mais usada na área.
Na UFSM, como diz a estudante de Artes Cênicas Rafaela Costa, é “Stanislavski na veia”, em referência à influência de seus escritos. Para o dramaturgo russo, a atuação deveria ser uma recriação do cotidiano. Cabia ao ator, portanto, observar pessoas e suas ações, pois só através destas o ator conseguiria encenar. A atuação deveria ser orgânica, em oposição ao exagero plástico que permeava o teatro da época de Stanislavski. Em seu livro “A construção da personagem”, fala-se de um ensaio em que ele pede a uma atriz que se sente sobre as mãos para cantar até que a música saísse naturalmente e não cheia dos supostos vícios gesticulares que ensinavam os professores de música. Para Stanislavski, a atuação está nas ações – simples, naturais, organicamente corretas, livres.
Pablo enfatiza a importância, a seu ver, de uma das chamadas leis do homem em ação, de Stanislavski: a lei do desenvolvimento da vontade. Através dela, o ator não age como se fosse outra pessoa, mas toma como seus os objetivos da personagem. Isto é, ele não fala em nome da personagem, mas em seu próprio nome naquelas circunstâncias. André é André, está Homem; Juliet é Juliet, está Mulher.
“A AÇÃO É UMA ISCA PARA O SENTIMENTO”
Dois dias depois, dia 30, às 14h17min, Luiza de Rossi se junta a André, Pablo, Juliet e Marcos Paiani. Cinco pessoas perambulam pelo Teatro Caixa Preta, em frente ao CAL. Retiram cortinas e as enrolam. Hoje, o ensaio será completo.
Uma cortina de organza de 63 metros é pendurada, gancho a gancho, até formar um semicírculo em torno do palco. Eis o princípio do cenário. A equipe não está satisfeita com a diferença aparente entre o tecido do meio e o das laterais. Luiza testa as luzes: amarelo, verde, branco. No escuro da plateia, as luzes sobre o palco jogam com o tecido. Já não importa se o meio está diferente dos lados, a luz consertou tudo. “Parece um plástico”, grita Juliet. O ensaio começa, a trilha também. Márcio Gomes é estudante de Música na UFSM e a ele cabe criar os sons que arrematarão o desenrolar da peça.
O silêncio é grande, mas a concentração é maior. Cada passo tem um porquê, cada olhar uma direção prevista. As personagens estão ali, à flor da pele, mas um pigarro, um olhar para o além ou um fala esquecida relembram que André e Juliet por lá continuam. A cena acaba e é hora do intervalo. Felipe Martinez e Cauã Kubaski, também estudantes de Artes Cências, aprochegam-se a espiar o que acontece. Parece que todos os atores são atraídos pelas atuações alheias.
Há uma tensão invisível entre o palco e a plateia, mesmo que esta esteja vazia. Os assentos parecem erguer os olhos para espiar o palco, que, em vão, esconde-se até a coxia. Um não há sem o outro. Assim como num romance só há a personagem se o leitor lá a perceber, no teatro, não existe peça sem o consenso entre a plateia e os atores. Quem assiste sabe que, fora dali, a história contada não se repete tal qual; quem assiste sabe que aquilo é uma peça. Mas o jogo com as ações é mais forte do que a dita realidade.
ADIVINHA QUEM É!, pelo viés de Gianlluca Simi
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