RUBEM BRAGA E A MODERNA CRÔNICA BRASILEIRA

Da carta de Pero Vaz de Caminha às apócrifas via e-mail de Arnaldo Jabor, foi um grande percurso. Ela está há mais de um século e meio nos jornais e segue como campeã de aceitação popular. Não fala dos deuses gregos, mas das figuras da esquina. A crônica de todos os dias, inserida nos jornais do século retrasado para fazer simplesmente um apanhado dos fatos da semana, evolui para adquirir o refinamento de retratar os costumes sociais, trazer à tona o incomum, mapear a cidade, iluminar o banal. O gênero soube driblar o perecimento e se estabelecer como literatura genuína, o mais cotidiano contato dos brasileiros com os grandes autores.

A tarefa do relato dos fatos acabou por cair nas mãos de nomes como Machado de Assis, Olavo Bilac, João do Rio, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade. E é quando o modernismo aparece para tirar da crônica qualquer traço de intelectualismo, que surge em cena a figura de Rubem Braga. A crônica como conhecemos hoje, leve, livre de preciosismos, dado ao incidente pequeno, ao tom confessional, deve muito a ele. Faz história porque é a partir da sua produção que se configura de fato a moderna crônica; começa a ser um fenômeno sui generis dentro do panorama da literatura brasileira. Rubem Braga traz o lirismo e a sensibilidade, colocando nos textos as memórias da infância, as pitangueiras que não existem mais, os formidáveis embrulhos que vinham do Rio de Janeiro, os amantes que se isolam no apartamento, a aula de inglês quase surreal.

O capixaba, que acreditava que a origem de Cachoeiro de Itapemirim lhe garantia um lugar no céu, veio para se tornar um dos nomes mais respeitados da crônica brasileira. Não é à toa que é um texto seu que abre As Cem Melhores Crônicas Brasileiras, na seleção de Joaquim Ferreira dos Santos. É o escritor que pela primeira vez estabelece toda sua obra nos limites desse gênero. Um cronista por excelência. Trabalhou como jornalista por várias décadas, tendo sido repórter policial, repórter de guerra na Itália, correspondente em Paris, assumindo posteriormente cargo de embaixador, mas sem deixar de exercer sua função de cronista diário. “Sempre escrevi para ser publicado no dia seguinte”, reitera ele, para muitos o maior cronista brasileiro desde Machado de Assis, escrevendo no limiar da crônica e do poético. Manuel Bandeira, contemporâneo e amigo seu, garante que com assunto Braga era muito bom; sem assunto, era melhor ainda: “Aí começa ele com o puxa-puxa, em que espreme nas crônicas as gotas de certa inefável poesia que é só dele.”

No final dos anos 30, então ainda um jovem escritor, junta-se ao corpo de colaboradores da revista Diretrizes, sob o comando do inesquecível jornalista Samuel Wainer. Já naquele tempo era uma figura destacada a ponto de intimidar Samuel: “No começo, eu me limitava a escrever notas curtas, tímidas. Não me considerava um bom redator, não conhecia a fundo o idioma, e me retraía diante dos grandes nomes que haviam aderido à idéia [da revista]. Um deles foi Rubem Braga, meu grande amigo naquela época, que escrevia magnificamente bem. Rubem criou uma seção com o título O Homem da Rua, que abrigaria crônicas maravilhosas.”

O homem da rua – uma bela definição do que é o cronista. O observador que flana pelas calçadas, escrevendo sobre o que vê. O cão vadio que fareja o cotidiano, virando latas da percepção humana. Flâneur ou canino – e Rubem soube captar isso como ninguém – é sobretudo aquele que põe o pé na rua. É literatura, mas está bem fincado na realidade.

Quando comecei a ler o volume das 50 crônicas escolhidas, organizadas em 2009 pela Best-Bolso [recorte a partir do volume 200 crônicas escolhidas, com textos selecionados pelo próprio autor em parceria com Fernando Sabino, em 1977] percebi que havia ali uma familiaridade. Meditando um pouquinho, me dei por conta que Braga ressoava desde a infância, lá em meados da década de 90, naquelas famosas edições “Para Gostar de Ler”, que pipocavam pela biblioteca. Formei-me no colégio com o enredo de vários livros decorados, mas sem nunca ouvir ser pronunciado em sala de aula o nome de Rubem Braga. O que é uma perda tamanha. Porque sua crônica é poética, lírica, esclarecedora, crítica, tudo isso sem cansar, sem ser a maçada de algumas obras que, por melhores que sejam, muitas vezes não dizem nada aos mais jovens. Não raro eu vi, posteriormente, aqueles volumes nas mãos de gente mais velha, claro, porque nunca é tarde pra gostar de ler e sempre é tempo de uma boa crônica. Essas sabem agradar aos pequenos e deleitar os maiorzinhos.

Rubem Braga queria escrever uma história que colocasse o riso na boca da moça doente que morava numa casa cinzenta, que fizesse o casal aborrecido descobrir a alegria de estar junto novamente, que de tão boa impelisse o oficial de distrito a soltar os pobres bêbados e as mulheres colhidas na rua. Para a nossa sorte, em 62 anos de jornalismo, foram mais de 15 mil. O riso e o lirismo de um dos cronistas fundamentais seguem atuais como a crônica que saiu no jornal de hoje.

RUBEM BRAGA E A MODERNA CRÔNICA BRASILEIRA, pelo viés da colaboradora Giuliana Matiuzzi Seerig, estudante de jornalismo da UFSM. Mantém o blog Correio Aberto

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