No início de 2007, o decreto presidencial 9.096 instaurou o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades, o REUNI. Basicamente, a opção para as universidades federais brasileiras foi aderir ao REUNI ou perder verbas gradualmente, sob a alegação ontológica de que mais verbas (obrigação do Estado) seriam destinadas somente aos signatários do programa. A Universidade Federal de Santa Maria, assim como muitas universidades por todo o Brasil, já estava capenga, mutilada pelos governos neoliberais que mercantilizaram a educação no país até então e, por isso – supõe-se -, aderiu ao REUNI.
Depois disso, foi uma explosão de cursos novos (entre eles os deslocados cursos tecnológicos, que não cabem às universidades) e a duplicação do número de vagas. O curso de Relações Internacionais, por exemplo, foi enxotado para o antigo hospital universitário – eufemisticamente dito Prédio de Apoio -, que, há anos, está pronto para cair sobre as cabeças dos futuros psicólogos e economistas que ali estudam.
Enquanto, no Brasil, o governo apoia medidas de desenvolvimento irreal, que inflam as universidades federais sem melhorar proporcionalmente a qualidade do contexto educacional (docentes, prédios, laboratórios, assistência etc.), vem do menor estado dos Estados Unidos um belo exemplo do que todas as universidades deveriam ser: de fato universais.
Rhode Island é o menor estado dos EUA. Nele, está uma das melhores universidades do mundo, mas que, mesmo assim, parece ser pouco conhecida: a Universidade Brown. Começa pelo fato de ela ser parte da Liga Ivy, nome dado à antiga liga esportiva – hoje liga acadêmica – das oito melhores universidades dos Estados Unidos, junto com: Columbia, Cornell, Dartmouth, Harvard, Pensilvânia, Princeton e Yale. Brown é, no entanto, a menor delas, está no menor estado e tem o menor orçamento: dois bilhões de dólares – nem 10% dos incríveis 26 bilhões de dólares que Harvard tem a seu dispor todos os anos. Harvard tem por ano, por exemplo, o que a UFSM teria em 125 anos! Para se notar a inferioridade monetária de Brown, a UFSM “só” levaria nove anos para chegar ao orçamento anual de Brown. O pequeno tamanho de Brown, no entanto, não interfere na sua excelência nem no seu pionerismo.
BRAUN QUEM?
A Universidade Brown foi criada em 1764 quando James Manning, um ministro batista, foi mandado a Rhode Island pela Associação de Igrejas Batistas da Filadélfia para fundar a Faculdade na Colônia Inglesa de Rhode Island e Providence. Mesmo afiliada à religião (havia batistas, anglicanos e católicos entre os fundadores), a escritura de criação da faculdade especifica que “dentro desta instituição católica e liberal, nunca serão aplicados quaisquer testes religiosos, mas pelo contrário, todos os membros desta deverão gozar de liberdade de consciência plena, livre, absoluta e ininterrupta”. Entre os criadores da universidade, estão dois signatários da Declaração de Independência dos Estados Unidos: Stephen Hopkins e William Ellery.
O nome Faculdade na Colônia Inglesa de Rhode Island e Providence foi mudado para Universidade Brown em homenagem à família Brown, da qual quatro integrantes estavam ligados à fundação da universidade: John, Joseph, Moses e Nicholas. Ironicamente, o marco “negro” da história da universidade era que John e Nicholas Brown eram escravistas enquanto Moses e Joseph, abolicionistas. Brown, no entanto, seguia a época, pois muito do dinheiro com o qual se construíram e se mantiveram todas as universidades do Nova Inglaterra e as três melhores universidades do Reino Unido (Cambridge, Edimburgo e Oxford) veio do tráfico de escravos. No entanto, Brown foi a única a aceitar seu passado e, em 2003, sob a reitoria de Ruth Simmons (a segunda mulher e a primeira negra a ser reitora de uma universidade da Liga Ivy), criou o Comitê Universitário Direcionado à Escravidão e à Justiça, cujo objetivo é criar um extenso relatório sobre a ligação da Universidade Brown com o tráfico de escravos na Nova Inglaterra.
Durante a Revolução dos Estados Unidos (erroneamente dita Revolução Americana), a Universidade Brown serviu de acampamento para as tropas que o rei francês Luís XVI mandou de reforço contra os britânicos em 1781. Dali, as tropas seguiram numa viagem de mil quilômetros até a cidade de Yorktown, no estado da Virgínia, onde se travou uma das maiores batalhas da revolução. Enquanto isso, o prédio principal da universidade servia de hospital para as forças franco-estadunidenses.
BROWN LIBERAL
Mas por que a Universidade Brown é um exemplo que deveria ser seguido? Começamos com o teor educacional da maioria das universidades da Liga Ivy: artes liberais, que veem o conhecimento como uma grande teia; tudo é relativo a tudo, não há fronteiras claras. Brown pôs essas ideias em prática com o chamado Novo Currículo.
Já em 1850, o então reitor Francis Wayland (nos Estados Unidos, o reitor é chamado de presidente da universidade) pregava que “os vários cursos deveriam ser arranjados de tal maneira que, enquanto praticável, todo aluno pudesse estudar o que escolhesse e nada mais do que aquilo que por ele fosse escolhido”. Em 1969, depois de uma maratona de discussões, o colegiado da universidade aprovou o Novo Currículo. Dos cinco aspectos apontados por este, só um não está mais ativo: o seminário obrigatório de Modos do Pensamento. Os outros quatro ainda norteiam as atividades. A saber: interdisciplinaridade (de verdade), possibilidade de cursar qualquer disciplina ofertada, extinção de pré-requisitos e simplificação do sistema de notas para a tríade ABC, sem mais (+) ou menos (-), como no restante dos Estados Unidos, em que as notas são dadas num sistema de letras ABCDF (A+, A, A-, B+, B, B- etc.).
Isso significa que, na Universidade Brown, não existem disciplinas obrigatórias. Cada estudante constroi seu próprio currículo a partir da lista de disciplinas ofertadas e com a orientação de um tutor, que avaliará os créditos das disciplinas cursadas. Bastante difícil de entender se olharmos do nosso contexto daqui, mas é assim mesmo que funciona. Quando uma pessoa é aceita para Brown (taxa de admissão de 11%), ela não entra diretamente para um curso de graduação, ela é aceita para a universidade. Ela terá os próximos quatro anos para decidir sua concentração, como são chamados os cursos de graduação. Ademais, ela pode escolher um major (área principal) e um minor (área afim). Como não existem pré-requisitos para nenhuma das concentrações, cada estudante montará seu próprio currículo, com aquilo que lhe for mais conveniente estudar. Em princípio, ninguém se forma tendo estudado as mesmas coisas que os colegas. Claro, não é algo totalmente livre – as disciplinas cursadas, para contarem na carga horária, devem ser creditadas pelo tutor de cada estudante, que acompanha este desde o início da faculdade, algo como o que o orientador faz aqui, mas só no final dos cursos. Ah! E, se a Universidade Brown não oferecer uma concentração que lhe satisfaça, o estudante ainda pode montar um currículo e apresentá-lo como uma nova concentração. Praticamente, uma graduação sob medida. A universidade propõe 82 concentrações, mas declara no seu sítio: “apesar de Brwon oferecer em torno de 80 concentrações de graduação, os estudantes ainda têm a opção de criar e construir a sua própria. As concentrações independentes […] devem ser subscritas por, no mínimo, um professor e ser revisadas e aprovadas pelo Conselho Curricular”.
Brown se insere, dentro da cultura popular estadunidense, como a universidade mais liberal dos Estados Unidos. Lá, é feio ser de direita, ser conservador ou extremamente ganancioso, mesmo que os egressos da Liga Ivy não sejam exatamente conhecidos pelo altruísmo). Há uma piada que diz: “quem não conseguiu entrar em Harvard vai para Brown”. Apesar disso, Brown mantém um certo estátus e, recentemente, a atriz Emma Watson (a Hermione de Harry Potter) recusou convites de várias universidades pelo mundo e escolheu Brown pela “liberdade de estudo”. O mote dos estudantes e dos professores de Brown é, portanto, ser livre para fazer o que quiser no intuito de se formarem pesquisadores especialistas. Ninguém deve estudar nada; a regra é só estudar. Cada um é ativo no seu processo de formação.
ENQUANTO ISSO…
Enfim, enquanto as universidades brasileiras são praticamente obrigadas a aderir a um programa de sucateamento fantasiado de expansão, ainda há pessoas que deixam de lado as rixas políticas e pensam naquele que é o foco da universidade: o estudante. Se, na UFSM, aumentam-se currículos e cargas horárias obrigatórios, cujos componentes não foram discutidos por toda a comunidade acadêmica, pelo menos podemos nos inspirar com a realidade de outros estudantes e ver que algo diferente (e, possivelmente, melhor) existe.
MARROM DE OURO, pelo viés de Gianlluca Simi
gianllucasimi@revistaovies.com
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Fui um dos estudantes que lutou contra o REUNI – que realmente é um estupro à educação superior do país. Óbvio que queremos acesso universal, mas com condições de ofertá-lo. É lindo falar do aumento de verba que as universidades receberão(?), se não for falado que dali 5 anos pararão de receber e estarão com as salas cheias e sem grana pra ofertar tudo o que é necesário!
Se muitos estudantes conseguiam se manter com dificuldade pela falta de vagas na CEU, imagina com o dobro de estudantes.. se alguns cursos tinham salas sucateadas ou aulas na rua por falta de sala, imagina com a nova quantidade de alunos.. se a fila do RU chegava à biblioteca, imagina com o novo montante de bocas (ahhh, não.. fizeram uma SUPER ampliação, havia esquecido!). É, realmente.. triste!
Ahh, só por informação.. os futuros fonoaudiólogos também se espremem no “Prédio de Apoio”, onde atendem diariamente dezenas de pacientes. E os já fonoaudiólogos se espremem juntos, pois naquele prédio funcionam também atividades do nosso mestrado!
Quanto à Universidade Brown.. é legal, eu mesmo sempre quis cursar muuuitas cadeiras de outros cursos e sempre achei um saco diversas disciplinas, as quais fui obrigado a cursar. Porém, acho que seria a formação ideal pra quem cursa universidade pra obter conhecimento, sem necessariamente exercer a profissão depois ou pra quem quer ser pesquisador (em algumas áreas). Por outro lado, acho muito “perigoso”, principalmente na área da saúde, pois por mais que alguém diga “ahhh, mas eu quero trabalhar só em X área, pra que vou estudar Y!?” Ex. X=cardiologia e Y=neurologia. Depois que se forma, em época de vacas magras o único emprego que aparece é de clínico geral e OOO cardiologista não pode esperar que apareça seu emprego dos sonhos, né, o que ele faz? Mesmo sem gostar, vai atender pacientes com todas patologias possíveis e faz um monte de merda! SE há um controle na Universidade de Brown e tem que sair com uma formação mínima pra ao menos ganhar o título de alguma coisa, beleza, total apoio! Mas se é “uhuul, vou cursar as cadeiras que eu quiser” (adoraria cursar num lugar assim), não acho ‘seguro à sociedade’!