A SOCIEDADE DA VINGANÇA

De Willian Shakespeare a Ednéia Ana da Cruz

Iago, alferes de Otelo, prometia contar ao rico senador de Veneza, Brabâncio, que sua filha Desdêmona havia se casado com Otelo, o mouro de Veneza. Tudo se inicia, no entanto, por motivos de vingança pura, quando Iago se ofende ao ver Cássio ser elevado do posto de soldado a tenente pelo general Otelo. O vingativo esperava que as ascensões devessem ser arranjadas “pelos velhos meios em que herdava sempre o segundo o posto do primeiro” (p.19). Exemplificando: Iago, perdedor da promoção militar, procura vingar-se de quem o “impediu” ascender: Otelo.

Na maioria das tragédias Shakespearianas, como os leitores destes sabem, a vingança opera significativamente como terrível personagem. Hamlet, príncipe infeliz da Dinamarca, promete vingar a morte do pai, o Rei Hamlet, envenenado pelo próprio irmão, Cláudio, que além de roubar o trono faz da cunhada sua esposa.

Shakespeare, o admirável dramaturgo inglês, sabia como tornar seus esboços dramáticos memoráveis. Individualizava-os com maestria, contornando sentimentos, ambições e costumes usando da força maior na distinção dos seres: os pensamentos. O vilão traçava metas obscuras, do trucidamento ao jogo mal-intencionado de palavras e as desempenhava de forma completa, sem rodeios, tramando cenas que nos palcos do mundo inteiro, 400 anos depois, ainda causam assombro. O que se nota explicitamente em narrativas como as de Hamlet, Otelo ou na tempestade gerada pela magia de Próspero, é a sede de vingança.

Na contemporaneidade, o que não faltam são Hamlets urbanos, Otelos na mira de seus súditos nas hierarquias atuais e Prósperos, aqueles que, com o uso de sua força capital e/ou poder de influência, raspam a vida do inimigo de modo catastrófico. Vingança que pode retornar com o esboço da ofensa, aplicando a ancestral Lei de Talião – olho por olho, dente por dente – ou pela ânsia de ver seu ofensor pagar com o sofrimento físico e mental, levando-o ao cárcere, depressão ou ruína psíquica.

Pessoas movidas pelo interesse próprio, dissimuladoras, manipuladoras e/ou que agem exclusivamente em função do cômodo proveito, na superioridade das vezes, sinalizam em seus atos aquilo que sofreram por “dolo” de outrem. Assim, procura-se rastrear e distinguir a vingança, espécie de justiça selvagem, como relacionada e estruturada na psique, validando-a como essência vital. Trata-se de esmiuçar a vontade de reverter o dano com a mesma intensidade e dor, a qual atravessa o indivíduo e seu poder de ajuizar.

Se no decorrer da história autores, músicos, diretores de cinema e pintores deixaram a vingança como força que conduz a obra, aquele limite do ser em querer justiça e julgar a reparação como pressuposto da devolução da dor, casos atuais que lembram filmes de ação acontecem dia-a-dia.

Saídos do meio de um matagal, dois homens atiraram contra um homem de 30 anos na cidade mineira de Ubá em abril de 2010. A esposa e a filha foram as testemunhas do crime. O morto havia matado o pai da dupla, que jurou vingar a morte do familiar. Na morte de Riquelme Richard da Cruz, maio de 2010, uma dívida de R$120,00 no bar da esquina ou a denúncia de tráfico feita pela mãe do garoto contra dois jovens são os motivos investigados pela polícia para o crime. Uma menina de 13 anos afirmou para a polícia que seus amigos e ela doparam o menino e logo o jogaram em um canal. Uma hora depois de enterrar o filho, a secretária Ednéia Ana da Cruz foi presa e será julgada por atear fogo na residência que seria de um dos assassinos do filho.

Escreveu o psicanalista Renato Mezan que a vingança está diretamente associada à ofensa e à humilhação. Ela se configura quando a pessoa sente que perde a dignidade, a vergonha e a honra. Porém, para o caso onde uma delação ou dívida pode ter ocasionado o assassinato do filho, podemos fazer outra análise e nominação, já que as penas não foram “pagas” na mesma moeda. O racionalista Bento de Espinoza, diferenciou vingança de cólera. A vingança seria o desejo surgido do ódio recíproco e que pretenderia retribuir o mal que foi infligido, fazendo sofrer da mesma forma que se foi sofrido. Já a cólera seria o esforço para fazer mal a quem odiamos. Os denunciados que afogam o menino e uma mãe que incendeia a casa dos suspeitos.

Os estudos sobre o homem e a sociedade já nos explicaram que o julgamento de certo e errado e tantas outras dicotomias muda com o instante e a sociedade de seu tempo. O que antes era feio pode se tornar bonito, e assim sucessivamente.

A justiça também com o tempo muda. O que se buscava com Talião -“olho por olho, dente por dente” – era impedir uma cadeia de ações violentas e frear a justiça humana feita pelas próprias mãos. Atualmente não seria adaptável visto que os pretextos dos crimes podem brotar da conjuntura socioeconômica, originando criminosos “do meio”. No feudalismo japonês, os samurais vingavam o clã ou a família injuriada através do katakiuchi, que poderia envolver também os parentes de quem ofendeu o clã. A vendeta, que é a sequência de ações e contra-ações geradas por vingança ao longo de um vasto período por alianças que buscam justiça, é cometida em casos desde as sociedades pré-industriais até a máfia italiana.

A professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana, Luciene Félix, inicia um artigo perguntando: “Em inúmeros processos litigiosos, o que menos está em jogo é o papel moeda. Tanto que muitos optam por doar todo o ganho da causa a alguma instituição de caridade, deixando bem claro que não estão sendo movidos pela ganância do dinheiro. Nem por isso furiosa e cegamente deixam de perseguir algo que prezam: o valor moral da dor infringida à alma (psique). Aviltados em sua dignidade, atingidos na honra que trazem no peito (timós), no caráter, na personalidade, exige-se reparação, clama-se por Justiça! Justiça ou vingança?

E é aí que surge a linha tênue, quando questiona-se o que difere justiça de vingança, que com o tempo pode variar a interpretação. Com que bases se julgam a intenção de um crime e sua penalidade? Como afirmar que a pena contém apenas a reivindicação de justiça e não outras intenções?

A justiça ocidental moderna assegura que os modos punitivos legais conteriam a finalidade de reabilitar e fazer o culpado alcançar a readaptação na sociedade. Porém, grupos e instituições civis conclamam a sociedade a refletir se os formatos de castigo são eficazes, se preservam os direitos humanos, questionando se as prisões, penas de morte, castigos capitais e outras penalidades não seriam uma vingança da sociedade para o crime que ela mesma cometeu. Isto torna o assunto complexo o bastante, visto que a sociedade contemporânea pode se encaminhar expressivamente para o técnico, o instantâneo, o impessoal e a queixa por respostas objetivas, palpáveis e com solução concreta.


Os desenhos são de Caren Rhoden, componente da redação.

Abaixo, links de músicas e filmes relacionados ao assunto.

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A SOCIEDADE DA VINGANÇA, pelo viés de Bibiano Girard

bibianogirard@revistaovies.com

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