Na frente do Hospital Universitário de Santa Maria, o encontro de indivíduos forma um painel com peças de quebra cabeça. Como em todo o campus, desconhecidos reúnem-se por fins semelhantes. Mas ali, os encontros não têm a duração de um curso de graduação. Acontecem diariamente, e diariamente mudam de protagonistas. Fixos, somente seis, os vendedores de lanches. As outras pessoas, naturais dos diversos municípios da região, mudam a cada dia. Um rodízio. Sempre há novos elementos e a saída de outros tantos. Ainda que muitos retornem, encontram nos bancos diferentes companheiros.
Terça-feira, 30 de março, início de tarde. Logo na entrada do campus da UFSM, o Hospital Universitário, HUSM. Na frente dele, bancos devidamente dispostos. Ora concorridos, ora vagos; em um lado da Avenida Roraima e do outro. São algumas dezenas deles e outras dezenas diárias de pessoas repousando histórias, doenças, esperanças, necessidades e carências.
Mochila nas costas, torrone ou mandolate na mão, estudantes saem apressados do almoço no Restaurante Universitário. Correm para as aulas ou para o ponto de ônibus. Na corrida pela condução, esbarram no aglomerado de indivíduos em frente ao HUSM, que é parte do caminho de uma das paradas. Alheios à vida acadêmica, mas também com bagagem, não só material, Elaine e Sérgio esperam para um exame. Vindos da cidade de Cacequi, filha e pai almoçam o pastel da Jandira. Depois da refeição, reservam outros dois pasteis para mais tarde. Cena comum em frente ao hospital. Jandira está ali há dez anos e conhece bem os fregueses. É a mais antiga vendedora do local. “Eles preferem comprar aqui. Encomendam e para muitos eu até anoto na caderneta”. Grande parte dos servidores do hospital – de médicos a pessoal da limpeza – prefere, na pressa, só colocar o pé para fora da porta de vidro, dar alguns passos e lanchar um dos produtos de Jandira. Bom, poderiam ir na cantina do hospital, mas os rostos mastigantes denunciam a preferência.
Por um acidente é que a senhora Jandira, de 61 anos, chegou aos bancos da calçada em frente ao HUSM. Cicatrizes lembram o dia. “Eu tava saindo e veio aquilo tudo pra cima de mim”. Era um dia tempestuoso, comum em determinadas épocas carregadas e elétricas da cidade de Santa Maria (como essa que estamos presenciando no mês de abril). Jandira saía do edifício, quando o ‘teto’ de uma casa “saiu inteirinho pra cima de mim”. Desde então, por ter quebrado a bacia, não pôde mais subir escadas repetidamente. Foi quando começou com o negócio de lanches.
Outra senhora vinculada em uma relação de anos com a UFSM é a Dona Iracema. Natural de Quaraí, frequenta o Campus há 13 anos. Em sete deles trabalhou como acompanhante particular de pacientes e em seis como vendedora de lanches ali na frente. Para chegar ao local, toma carona com uma companheira de vendas. “Aqui não tem problema de concorrência, todo mundo se ajuda. Se falta alguma coisa em uma banca, na outra tem”. Viúva há dez meses, comenta com orgulho que “foi meu marido quem fez toda a parte elétrica ali da Casa do Estudante, do RU e de outros prédios daqui”. Quando o esposo faleceu, se deu conta de que precisaria ‘se virar’. Às 3 horas já está preparando as comidas. Por volta das 5 horas e 40 minutos sai para o trabalho.
Olhando para os bancos mais próximos da porta do hospital, nota-se um homem um pouco encolhido. Sob a aba de um boné, José Eni espia para os lados e para a entrada do HUSM. Mãos bem agarradas em uma mala, espera a hora da visita. Ele, como acompanhante, veio com o irmão de Caçapava do Sul. O irmão, internado, espera o dia da cirurgia. José não sabe se poderá dormir com ele no quarto. Se puder, ficará acompanhando-o até a hora da operação.
Elaine e Sérgio, a filha e pai de Cacequi, depois do lanche, acendem seus cigarros e ficam à espera de que as horas passem. Assim como todos que vem de outras cidades, anseiam o fim da tarde. Neste momento, o micro-ônibus da Prefeitura dos municípios estaciona e recolhe os viajantes devidamente consultados, medicados ou operados.
Em frente ao HUSM, é raro não reparar na quantidade de fumantes. Ansiedade pela espera Lires também tem. Porém, encontra-se no outro lado da avenida, fora da nuvem de fumaça. Ali, sombra e vento um pouco mais, digamos, inodoro. Com 55 anos, sofre de falta de ar. Encontrou no Hospital Universitário de Santa Maria um melhor tratamento do que em Jaguari, cidade onde mora. “Lá as pessoa são muito reparadeiras, sabe?! E aqui… aqui os médicos olham pra gente e conversam”.
Lires, que antes se perdia no interior do hospital, hoje poderia ser guia dentro dele. Em meio a sacolas enormes, divide o banco com os conterrâneos Joceli, Maurício, de um mês e quinze dias, e Marisa, de seis anos. Joceli traz Marisa, que tem problemas de convulsões, para consultas. Deixa os outros dois filhos em Jaguari, e só não poupa Maurício da viagem porque não tem alguém para cuidar dele. A menina não gosta muito de viajar, mas ela e a mãe bem sabem que só aqui acertaram a medicação correta. Essa família não é cliente fixa dos lanches daqueles seis vendedores dos bancos ali da frente. “Só tinha dez reais pra passar essa semana. Trouxe comida de casa mesmo…”.
Vindo de Santiago, no banco ao lado, um casal também aguarda a chegada de um micro-ônibus. O Hospital Universitário de Santa Maria é o centro de referência em saúde da região. Dezenas de cidades buscam nele serviços dos quais não dispõem. Darcila e Paulino, há meses, viajam para o HUSM. Ela, depois de sentir dores no pulso, passou por cirurgia e agora retorna para consultas. Naquele dia, liberou-se dos anti-inflamatórios, ou seja, “agora não preciso vir mais tão seguidamente”. O marido sempre a acompanha no ciclo trajeto-espera. Bem humorados, os senhores sorriem elogiando o atendimento.
No céu, o sol começa a descer. Os bancos esvaziam. O local em frente ao HUSM muda de aparência. O tempo em que fica vazio, no entanto, é um momento de latência. Na manhã seguinte, mais micro-ônibus no estacionamento, vendedores nos seus bancos, pacientes em consultas. Fragmentos. Fragmentos de um sistema de saúde ainda fraco em cidades pequenas. Fragmentos de pessoas que aprendem a ser empreendedoras por necessidade. Cada um por um fim, todos contribuem para o mosaico de histórias desse local. Que se renova, se firma e reafirma diariamente.
PAINEL DE MOSAICO, pelo viés de Liana Coll e colaboração de Lara Niederauer,
lianacoll@revistaovies.com
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É cada história que se escuta de paciente, do que foi preciso pra chegar à consulta.. O mosaico que a maioria vê – correndo em direção à parada – é de cores. Mas o que realmente forma este mosaico e é percebido apenas quando damos devida atenção a ele é o que vistes.. histórias, doenças, esperanças, necessidades, carências.. e mais.. coragem, humanidade, gratidão, sinceridade..