ATENÇÃO: ao ler essa matéria escute um bom blues.
“That melancholy strain, that ever haunting refrain”
As origens do blues são difusas quanto ao seu significado semântico. Os primeiros acordes brutos do blues surgiram na região sul dos Estados Unidos (principalmente nos estados do Alabama, Mississipi, Geórgia e Louisiana), passando por plantações imensas de algodão, senzalas, bares e cabarés. Parte da fascinação que as pessoas sentem pelo blues vem dessa sua mística em torno dos escravos: da fossa musical às figuras que entoavam esses cânticos.
O blues conseguiu ocupar um espaço que ia dos encontros na igreja às farras nos cabarés. Falava-se muito das casas de blues, simples estabelecimentos de madeira normalmente quentes e apertados, aonde os escravos iam após o trabalho para ouvir e cantar músicas que expressassem toda a sua tristeza, o seu cansaço e os seus problemas. As worksongs não falavam apenas do trabalho duro, ou só de pegar no batente, elas sempre vinham recheadas de estórias (ou histórias) sobre traições, religião, prisão, ou sobre a condição de andarilhos de muitas dessas figuras que conheciam muito bem a cara dos bares do sul dos Estados Unidos.
As lendas começam nas origens do blues, quando o autoproclamado “pai do blues”, W. C. Handy descreve ter escutado o som do blues pela primeira vez em uma viagem para Memphis dentro de um vagão de trem. O sujeito que estava produzindo o som tocava sua humilde viola com um canivete. Handy não deixou por menos, adaptou o estilo e escreveu aquela que, na teoria, seria a primeira canção do blues americano: “The Memphis Blues”.
Com o fim da Guerra Civil nos EUA, em 1865, aquele contingente negro que trabalhava nas plantações migrou, tornou-se agricultor, ou foi para a cidade grande. Os locais de entretenimento surgiram com mais força nessa época, onde a figura do cantador de blues se consolidou nas casas noturnas.
A figura do cantador também é uma coisa folclórica: normalmente cego, aleijado, ou dotado do problema de saúde que fosse esse personagem tomava seu lugar nas casas de blues entoando cânticos que diziam sempre a mesma coisa: minha mulher me deixou; eu bebi demais, camarada; eu passei o maior tempo na prisão.
Toda essa mítica também veio acompanhada da evolução instrumental do blues: antes uma pequena viola, ou banjo; depois a guitarra simples teve seu espaço – uma vez que era fácil de ser carregada pelos músicos durante a travessia de estados em vagões de trem ou em estradas de pó.
Não pode se esquecer é claro da famosa gaita de boca – instrumento posterior aos primeiros passos do blues, bem mais simplista. A gaita de boca acompanhou a evolução do blues, tornando-se indispensável em um bom solo ou sendo símbolo da “tristeza errante”.
Outros estilos vieram com o tempo: o slide, ritmo lento e bem pausado do blues “de raiz”; o famoso 12 compassos; o esquema “pergunta e resposta”, técnica do blues cantado de uma forma em que ele parece ser falado. Uma importante artimanha do bluesman viria mais tarde, o knife-song, que consistia em deslizar pelas cordas do violão um instrumento metálico que produzisse um som que se assemelhasse a um gemido humano, estridente e sofrido.
“I went down to the crossroads
Eu fui para baixo da encruzilhada
Fell down on my knees
Caí sobre os meus joelhos”
As mesmas figuras errantes do blues conhecidas pela sua melancolia fizeram fama como verdadeiros pudins-de-cana. Um bom bluesman deveria vir acompanhado de uma garrafa de uísque, ou mesmo de cerveja quente servida em latas nos estabelecimentos apertados de blues&bebida (as famosas barrelhouses). Essa ideia de servir a bebida em latas ao invés das tradicionais garrafas de vidro era uma forma de driblar a segurança da época da Lei Seca que imperou nos EUA (nos anos 30), e também um jeitinho encontrado de diminuir os ferimentos caso rolasse uma das típicas brigas.
Aliás, o significado exato para a palavra blues (que deu origem ao estilo) é dispersa. Na sua tradução literal seria “tristeza” ou mesmo “fossa”. O som preferido do que é errante, perdido, pobre e negro. Vinha como uma forte maneira de expressar o trabalho árduo e a vida difícil. Outra teoria sobre o significado da palavra teria sido construída a partir da expressão blues delirium tremens, uma referência à abstinência alcoólica, aos delírios e calafrios enfrentados por aqueles que passavam um tempo sem poder ingerir uma gota de álcool. Para alguns as letras simples e carregadas de sentimento do blues teriam origem nessa abstinência, conhecida dos beberrões de plantão. Também se diz que a primeira vez em que a palavra “blues” apareceu foi através do diário de Charlotte Forten, jovem negra nascida livre no norte do país e formada como professora. Ela costumava manter um diário onde descrevia suas dificuldades e frequentes tristezas. Em um dia escreveu: “Voltei da igreja com o Blues”.
O negro passou por situações complicadas até que se estabelecesse em sua condição de cidadão livre e trabalhador remunerado. Essa realidade dura encontrou conforto em diferentes aspectos das vidas desses homens e mulheres. A religião tornou-se a voz do povo negro quando seus pastores, também negros, passaram a pregar diretamente a essa população. É dessa mistura – o fazendeiro solitário, novo proprietário; o errante cantor; o pastor negro e inflamado diante de seu povo – que se construiu o blues.
O HOMEM, O DIABO E A ENCRUZILHADA
”Me and the Devil , was walkin’ side by side”.
Robert Johnson
As casas noturnas onde se tocava e se escutava blues foram palco também para o surgimento de algumas lendas. Dentre as mais famosas delas está a do pacto com o diabo. Dizia-se que um bluesman de verdade, daqueles que tocasse com maestria, dotado de um estilo totalmente próprio, só poderia mesmo era ter vendido sua alma ao capeta. Entende-se que muitas das famosas canções da época mencionavam o coisa-ruim, mas talvez nem todas fossem assim tão literais. O povo acreditava, mas a verdade é que a maioria dos bluesmans estava apenas personificando seus males em uma figura bastante conhecida e temida na mesma proporção. O demônio podia muito bem ser o homem branco, que mesmo após ter libertado seus escravos não se desvencilhava do preconceito e do estigma; a mulher, que seduz e depois abandona; o patrão, normalmente carrasco e impiedoso; ou o próprio destino, algumas vezes um fardo muito pesado a ser carregado.
A mania conservadora da Igreja de, no geral, caracterizar como coisa do diabo toda e qualquer manifestação que não fosse feita bem embaixo do seu nariz, fez com que o blues também fosse conhecido como “música do diabo”. O conservadorismo e o puritanismo da época foram de encontro à libertinagem, à rudeza e à filosofia errante do blues.
Skyp James gravou “Devil Got My Woman”, ou no bom português “O Diabo Levou Minha Mulher”. O marketing da música do diabo até que estava pegando bem e alguns conseguiram fama a partir disso. Intitulando-se “xerife do inferno”, ou também “cunhado do diabo”, Peetie Wheatstraw cursou um caminho de deboche e fama à custa do capeta.
Tommy Johnson, antes um tanto católico fervoroso, passou a ser conhecido como o cara que vendeu sua alma em troca de um bom blues. A lenda ainda continuou quando Tommy foi encontrado morto, e todos diziam ser o diabo vindo cobrar sua dívida.
Lonnie Johnson’s cantou “Devil’s Got the Blues”, e Peetie Wheatstraw gravou “Devil’s Son-In-Law”. Mas nenhum desses ficou mais conhecido do que o cara que revolucionou o blues, dito por alguns como o maior bluesman de todos os tempos. Esse cara é Robert Johnson, um negro de mãos absurdamente grandes que gravou apenas 29 músicas, mas que apesar de serem poucas, seriam conhecidas como as melhores canções do puro blues.
“And I followed her to the station
Eu a segui até a estação
with a suitcase in my hand
Com uma maleta em minha mão”
A data de nascimento de Robert é incerta, mas especula-se que ele tenha nascido pelos anos de 1909 e 1912. Conhecido como o cara mais influente do delta blues do Mississipi, Johnson começou cedo a entoar suas belas canções, direcionando um estilo com muita originalidade e firmeza, sendo imitado por muitos, e por tantos outros transformado até as origens do rock que conhecemos hoje.
O blues não foi inventado por Robert Johnson, mas com certeza ele é reconhecido pelo seu trabalho criativo e pela influência que surtiu nos demais. O Chicago Blues, na década de 50, tomou parte de seu trabalho como inspiração. Eric Clapton regravou músicas de Johnson, e o White Stripes, em seu álbum de estréia, tocou a música “Stop Breaking Down”. No ano de 1990, a Columbia Records teve a ideia de produzir Roots n’ Blues Series, uma coletânea de blues com as gravações completas de Johnson em dois CDs. No começo, a expectativa era de que se vendessem 20 mil cópias. Mas, surpreendentemente, esse número passou as 500 mil cópias facilmente, arrematando o disco de ouro em 1990.
Todo o sucesso de Roberto Johnson, bem como as múltiplas teorias para a sua morte, criou a lenda de que o bluesman mais consagrado de todos tivesse mesmo vendido sua alma ao diabo.
O mito tornou-se ainda mais forte quando se percebia as menções ao capeta feitas nas músicas de Johnson: “Me and The Devil” é uma das mais conhecidas, além de “Crossroads Blues”.
“Early this mornin’
when you knocked upon my door
Early this mornin’, ooh
when you knocked upon my door
And I said, “Hello, Satan,”
I believe it’s time to go.”
Acreditava-se na época que se um homem quisesse fazer um bom blues, ele deveria ir até uma encruzilhada, sentar-se com seu violão e esperar. Se acaso um homem alto e negro se aproximasse e quisesse tocar o violão, não era bom contrariar. No momento em que o homem dedilhasse um belo blues naquele violão, o sujeito que foi até lá podia se considerar uma mercadoria do diabo. O trato estava feito.
E era exatamente isso que se acreditava que Johnson teria feito, em troca de seus dotes excepcionais para a música. Sua morte precoce (aos 27 anos de idade), no momento em que ele estacionava em exatas 29 canções gravadas, também fez surgir o mito da trigésima música – e a espera daquele que viria para tocar e gravar o consagrado blues.
Em 1986, o garotinho que antes dava pequenos passos em Karatê Kid teve seus gloriosos minutos de fama ao lado de ninguém menos que Steve Vai. Ralph Macchio (o menino Karatê Kid) interpreta Eugene Martone, um rapaz aficcionado por blues, que ao se deparar com um velho mestre do estilo, decide ir de cabeça a procura da trigésima canção de Johnson. O filme “A Encruzilhada” (Crossroads) aborda a mítica em torno de Johnson, além de trazer canções muito bem interpretadas do músico. Na cena em que Ralph e Steve Vai tocam, Ralph aprendeu os dedilhados e foi “dublado” por Ry Cooder (grande músico, e produtor de filmes como Buena Vista Social Club).
CHICAGO BLUES
“A cigana disse à minha mãe antes de eu nascer: ele vai ser um filho da mãe!”
Muddy Watters
Ao mesmo momento, o som rural que tinha se criado em meio aos campos de algodão, tomava seu lugar nas grandes cidades americanas, mudando o estilo rudimentar, e criando uma nova forma de fazer blues. As guitarras elétricas, o piano, o baixo, dentre outros instrumentos, surgiram com força nessas cidades em que a energia elétrica já era coisa do passado.
Um pouco diferente do estilo jazz, o blues não sofreu diretamente influência britânica. Ao contrário. O próprio blues norte-americano é que re-inventou a forma como o rock britânico se consolidaria.
Apesar disso, o blues entrou em um período em que deixou de ser a estrela principal. Apesar de reconhecido como uma música tipicamente americana perdeu lugar para o jazz e para o rock’n’roll em matéria de show e de produção. Nas grandes cidades as casas noturnas em que se interpretavam blues eram bem diferentes dos estabelecimentos precários de outrora. São dessa mesma época tipos conhecidos como B.B King, Muddy Watters, Willie Dixon e John Lee Hooker.
No caminho destes está o famoso Buddy Guy, que também veio para consolidar o seu estilo e seguir bem as lições passadas pelos mestres. Diz a lenda, mais uma vez, que Buddy teria ido trabalhar em uma lanchonete, no interior de Lousiana. Dentre as mesas em que estava servindo Buddy notou um negro alto e corpulento entrar no local, após estacionar seu Chevrolet vermelho. Buddy pensou consigo mesmo se aquele seria Muddy Watters, quando o homem pediu que lhe servisse um sanduíche. Após Buddy entregar o pedido, o homem perguntou se ele também estava com fome. Buddy disse: o senhor é Muddy Watters – o cara respondeu que sim. Buddy finalizou: “não estou mais com fome, encontrá-lo me alimentou”.
Um pouco depois dos anos sessenta, começo dos anos setenta, é que surgiram os brancos de alma negra, ou os novos bluesmans. O blues dos tempos dos campos de algodão, ou mesmo do início do Chicago Blues, passou a ser reverenciado pela molecada que também queria criar o seu blues, trazendo sua própria pegada, mas sem deixar de admirar aqueles que começaram o estilo – conhecidos agora como os mestres do blues.
Dessa época, surge o rock britânico que pega no blues e o transporta para a música que o inglês quer ver – Keith Richards, Eric Clapton, John Mayall, Peter Green, dentre tantos outros que surgiram no período.
Eric Clapton regrava sucessos de Robert Johnson (entre eles, o próprio Me and The Devil), os Rolling Stones se rasgam em elogios e Jimi Hendrix já surpreende plateias e deixa o povo sem fôlego com seus solos intermináveis e incopiáveis.
BLUES
“woke up this morning, feelin round for my shoes -know bout at I got these old walkin blues”
Robert Johnson
Para quem gosta de traços bem marcados, de um bom blues, ou de um escracho, o jeito é prestar atenção ao trabalho de Robert Crumb.
Crumb é cartunista, e um aficcionado por blues – das antigas. Em seu trabalho (anterior ao já bem conhecido Genesis, em que faz um retrato bem sarcástico do Antigo Testamento bíblico), Crumb desenhou e pesquisou a vida de vários mestres do blues de raíz, retratando-os com precisão, dando-lhes alma e sentimento – coisa que um bom blues também sabe fazer.
O livro de Crumb tem o singelo nome de “Blues”. Crumb escreve suas histórias baseadas nas lendas que ele próprio leu, pesquisou ou mesmo escutou sobre os grandes mitos do blues. O livro é uma coleção de clássicos para quem aprecia, além de um prato cheio para os olhos, pois os desenhos de Crumb são ricos e marcantes.
Mas Crumb acredita que o bom e velho blues anda um pouco sem espaço: “A cultura moderna é assim. Há tamanha pressão para vender as novidades que aquilo que as precede acaba sendo sepultado sem remorso”.
Well, the blue light was my blues
Bem, a luz azul era meu Blues
and the red light was my mind
E a luz vermelha era minha mente
All my love’s in vain
Todo meu amor em vão!
Assim como a maioria das manifestações populares, ninguém sabe com precisão o que é mito, lenda ou verdade no caminho da criação do blues. Mas, também como a maioria das manifestações populares, o blues é um jeito peculiar, rico em sentimento e nobre na música, de expressar um período da História norte-americana. Também é capaz de gerar tantos outros estilos, desmembrados do seu próprio jeito de tocar.
A ascensão das grandes gravadoras e produtoras musicais, a expansão desenfreada da internet e dos formatos novos de mídia, a popularização do mp3 e do CD, que em pouquíssimo tempo irão se converter em outros formatos mudou e radicalizou a forma como ouvimos e “consumimos” música. Nem o próprio LP, conhecido de décadas atrás, reproduz com fidelidade a emoção do blues. Mesmo que acompanhemos a evolução da música (e das gravadoras e formatos midiáticos também), seria bom para os apreciadores do estilo, ou mesmo para o povo que quer preservar a sua cultura, que reservemos um espaço para o velho blues. Afinal, o blues não necessita de inovações mercadológicas – necessita é de coração.
Quer saber mais sobre o blues? As mulheres que encantam no estilo, na matéria de Caren Rhoden.
OH, PLAY THEM BLUES, pelo viés de Nathália Costa
nathaliacosta@revistaovies.com
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