CALÇOU CHINELOS

Calçou chinelos, dobrou a barra sobre a própria calça mirrada, como de costume, e se foi.

Tarde anterior quente, bola de fogo descendo. Fazia exatos cinco meses e vinte e nove dias que chegara àquele lugar e, da maneira como se apresentara de longe pela primeira vez aos novos patrões, seria incapaz de se ver novamente. Tamanho foi o estrago e a piora que pena já não mais causava no sentimento outrem. Ele e o pássaro cinza sem encanto que jazia matinalmente sobre o moirão tinham, atualmente, a mesma importância para os residentes da localidade, acreditava. Quiçá, o pássaro brotava mais compaixão e alegria no canto e abrir das asas. Sentia-se deprimido no cárcere da vida que não desejava.

Alto verdeña de mi querer
no tengas penas, que yo he’i volver.
Que yo he’i volver. Como no he de volver.

-Vai, aproveita! Se for mesmo o que desejas. E, com duzentos e cinquenta reais no bolso da calça, Alidino resolveu colocar o pé no barro, quando a chuva chegou, jogar-se ao pago sem norte ou perspectiva, o mundo é o que ele vê. Nem roupas, nem nada. Com as vestes do corpo saiu para o horizonte, trepidando a cada passo. De minuto a minuto compreendia inocentemente os atos de uma vida tão – como se poderia dizer?- vaga. Pelas casas.

Para tu gaucho, tortilla.
Pa mi caballo, mala hoja.
Al que es pobre y mala traza
siempre le dan cualquier cosa.

Barba longa e unhas dos pés sob e sobre uma carcaça de sujeira, terra barrenta que secando se misturava aos líquidos que vazavam pelo corpo nas micoses que o faziam coçar. Frieiras de rasgar a pele, dedos calejados e os dentes que sobraram estavam carcomidos por infecções sem tratamento, sujeiras de uma limpeza que, além da água quente e da aguardente, jamais se viu. Não entendia o mundo, mas para sobreviver entendia que não era necessário apreender sobre o mundo além das tarefas diárias que parecia saber desde pequeno.

He’i volver con flete gordo
Y apero de plata pura.
Pa decirle a tus parientes:
háganse á un la’o los basura.

Anseios por cuidados desapareceram. A graça acabou. Deixou a grama crescer da altura das janelas laterais, parou de calcular as perdas no rebanho e, às vezes, recebia visitas dos vizinhos e até mesmo de ladrões sem perceber, caído, conversando com o ar. A cachaça embebedara de vez seu cérebro e o coração. Gemia sobre o amontoado de roupas sebentas e cobertas mijadas. Caverna e eremita. O quarto que antes servia de
alojamento para hóspedes queridos da família e que fora afetivamente entregue a ele, lembrava terremotos. Terremotos de pó, sujeira e goteiras. Terremotos da alma.

Alto verdeña de mi querer.
No tengas penas, que yo he’i volver.
Que yo he’i volver. Como no he de volver.
Guárdame la ausencia. Negra, que pronto
he’i volver.
No tengas miedo, mi Niña, que pronto he’i volver.
Cuídate de tus parientes, que pronto he’i volver.
Como no he de volver. Como no he de volver

Quando avistou o carro do patrão, que em todo esse tempo o cuidara como filho, sentiu angústia. Aliado ao medo surgiu a esperança que o homem poderia trazer álcool. Tentou levantar e balbuciar quaisquer palavras que fugiam pela boca, assim, sem ordem, desconexas. Falava sobre a morte do casal de gansos juntamente contando sobre sua sanidade e explicando o porquê dos alimentos estragados na geladeira. Sempre com os olhos baixos e as mãos unidas ao corpo. Posição de recluso, oprimido, diminuído. Como se fosse duas pessoas, chegava a pensar duplamente e via um Alidino tentando ser apenas bom e outro preferindo morrer a ter que explicar-se ao amigo.

E quando calculou a proximidade do carnaval, deitado sobre duas garrafas, uma pela metade e outra vazia, pediu permissão para “viver um pouco” durante esses dias no vilarejo próximo.  A permissão servia como retirar a culpa inteira dos ombros, haveria a desculpa de um “sim” de outro, as consequências seriam brandas como se não fosse de toda sua responsabilidade.

Calçou chinelos, dobrou a barra sobre a própria calça mirrada, como de costume, e se foi.

Certamente não retornaria ao rápido, novo e velho paradeiro. A irmã miserável festejara cinco meses antes a conquista do serviço do irmão e agora choramingaria. De raiva, de pena da vida que só surra. Asco e compaixão.

O carnaval passou. A vida voltou, o tempo mudou. Chuvas de verão varreram os campos. E o homem não voltava. Os donos da casa decidiram, como se fosse componente da família, a desistir de crer no regressar e intuir que Alidino finalmente se fora. E com ele, todos os dias de cinco meses. Com ele, o sorriso banguela afetuoso ao se sentar na cadeira de praia em frente ao portão para que o “patrãozinho” lhe fizesse barba e cabelo. O sorriso do homem secou. Dentro dos que ficaram, no meio dos campos vazios, corações apertados. Pelas estradas, Alidino

Calçou chinelos, dobrou a barra sobre a própria calça mirrada, como de costume, e se foi.

Com ele, por onde for, estarão vários corações abarrotados de nostalgia, mergulhados numa garrafa amarela de cachaça.

Baseado em fatos verídicos. O nome e imagem do personagem principal foram preservados.

Música intercalada: “Baguala del gauho pobre” de Atahualpa Yupanqui.

CALÇOU CHINELOS, pelo viés de Bibiano Girard

bibianogirard@revistaovies.com

Para ler mais contos acesse nosso Acervo.

Um comentário sobre “CALÇOU CHINELOS

  1. Tchê Bibiano, após ler essas tuas tão inteligentes palavras redigidas, jamais deixaria de colocar minha humilde e talvez leiga conclusão, mas com certeza com extrema sinceridade.
    Brother, realmente tu é um cara que nasceu para isso, continuas nessa tua trajetória que terás muito sucesso e realizações não só na tua vida profissional, mas também na pessoal, e com certeza darás ainda mais orgulho para todos nós que temos o prazer do teu convívio.
    Forte abraço meu irmão, sucesso e longa Vida!!!

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