revista o Viés – Bom, depois do retiro, o que aconteceu?
Nenung – Eu tentei ficar em Três Coroas, só que tinha a história da banda, eu estava completamente duro de dinheiro, precisando de estrutura para viver, e aí eu voltei para Porto Alegre. A gente tinha pré-gravado o “Laranjas do Céu” antes de eu fazer o retiro. A gente tava duro total assim. Veio então a ideia de fazer o “Laranjas do Céu” virar um disco. Daí a gente conversou com o 4nazzo e ele propôs que a gente espalhasse as músicas por aí por que ele não daria conta de produzir o disco inteiro. Ele se propôs a repassar umas três ou quatro músicas para pessoas que poderiam gostar de fazer isso. A gente passou pro Kassin (Alexandre Kassin), pro Miranda (Carlos Eduardo Miranda), para várias pessoas espalhadas pelo Brasil. Acabaram sendo dez, doze produtores. É, foram doze produtores para doze faixas, alguns trabalhando em duplas e tal. Daí o disco saiu bem interessante assim, apesar de nós termos feito o registro num período que a gente tava um pouco sem ligar para a qualidade do resultado final. Eu acho que é um disco que tem uma qualidade sonora e que reflete bastante o que foi o período do retiro tendo sido escrito antes dele. Várias músicas tomaram sentido a partir do retiro, e antes elas ainda eram um pouco sem ter consciência, sem saber o que eu estava fazendo.
revista o Viés – Enquanto tu estavas de retiro, a Irínia estava fazendo o quê?
Nenung -Ela trabalhava lá, em Três Coroas.
revista o Viés – E o pessoal, o resto da banda aqui em Porto Alegre, o que faziam?
Nenung – Levavam sua vida. Projetos pessoais. Na verdade, naquela época ainda não existiam efetivados. O 4nazzo tinha feito apenas aquele show, o Thiago, que toca baixo, tem o estúdio dele em Parobé, ele ainda não era efetivado, era um convidado especial para todas as situações. Só quando eu saí do retiro é que a gente passou a convidar ele para valer.
“Chega de ser dupla, a gente vai virar banda”
Só que o “Laranjas do Céu” ainda havia sido gravado como dupla. Aconteceu que um pessoal da Europa acabou conhecendo o disco por intermédio de amigos e tal, e eles decidiram lançar lá o “Laranjas do Céu”, que acabou saindo em 2008, e aí a gente foi para lá. Acabou rendendo legal.
revista o Viés – Em que país aconteceu isso?
Nenung -França. A gente viajou trinta dias pela França para fazer shows e divulgar. Foram shows super legais, uma baita experiência. A gente acabou fazendo retiro no sul da França com um Rinpoche que era super próximo do nosso Rinpoche daqui. A gente teve oportunidade de conversar com ele, de conhecer ele. Tivemos a oportunidade de divulgar em várias revistas, eu trouxe uma carga de matérias, de papel, de revistas legais. Aí a gente foi escolhido entre os dez melhores lançamentos por um jornal, o Libération de Paris. Em 2008, e a gente não era nada, a gente era uma banda brasileira, lançada por um selo criado por um casal de Paris. Uma piada diante do resto todo.
revista o Viés -Vocês sabiam que estavam sendo indicados a um dos dez melhores ou foi uma surpresa?
Nenung – Não, a gente não sabia nada. Daí um dia a gente recebeu uma “copiazinha” para nos dizer “ah, vocês foram escolhidos”. Tipo de coisa que ninguém sabe de onde vem e nem para onde vai. Tem histórias de pessoas que estavam hospedadas em Katmandu e ouviram nossa música, outros num voo da Air France e era a música da trilha por um período. Teve um amigo meu indo para Hong Kong no avião e tocou Laranjas do Céu. Tipo de coisa que vai indo e a gente não tem controle.
Daí foram efetivados o 4nazzo e o Thiago e passamos a convidar o Sassá, que era um amigo que tocava percussão e era o que a gente imaginava que encaixava no contexto da banda. E depois veio o Jimi Joe que passou a ser convidado e depois passou a ser convidado para todas (risadas).
“Chega desse papo de convidado”.
Ele sempre que pode está com a gente. Surgiu então a possibilidade de nós lançarmos o disco posterior ao retiro, que era o Simples Mente. Eu ia compondo e nós íamos tentando se ajeitar com a vida daqui.
revista o Viés – Das letras do Darma Lóvers, todas são tuas?
Nenung – São. O Simples Mente já fala da fase da separação, que eu e a Irínia nos separamos, deixamos de ser um casal, buscávamos uma forma de rearranjar a vida, sem ter que ir por vias convencionais que seria cada um pro seu lado, não mais se falar, né? Chamem os advogados! (ar irônico). Enfim, a gente mantém uma passividade, um carinho, a alegria de tocar junto, de conviver de tempos em tempos. Hoje sou casado com outra pessoa e ela tem a vida dela e a banda foi adiante, com a produção do Kassin, que é um grande amigo do Rio. O Kassin acabou sendo um cara referencial dentro da história toda da produção, já havíamos conversado várias vezes desde a época que a gente era uma dupla, a gente foi pro Rio e o Kassin, o Moreno Veloso e o Domenico era nossa banda carioca. Eles diziam “ah, quando vocês vierem aqui a gente toca com vocês, sem problemas” (Nenung faz o sotaque carioca, brincando, claro, em meio a risos). Era muito divertido.
revista o Viés – Então aí o Darma já era uma banda efetivada, aberta ao público?
Nenung – Aham. No decorrer do tempo, nas oportunidades de tocar com outras pessoas de fora, a gente notou que perdeu a graça. Com a banda daqui (RS) é diferente, a gente arrebenta. Então foi estabelecido que deixamos de ser dupla, passamos a ser banda e queríamos gravar um disco para soar a intensidade que é tocar ao vivo e com uma banda inteira. O Kassin veio pro sul, a gente foi pro estúdio, gravamos todas as bases ao vivo, o Domenico veio para fazer a bateria por que ele é um baterista que toca de uma maneira que os outros bateristas não fazem, é realmente incrível. A gente fechou o estúdio por dez dias só para tocar sem aqueles critérios eletrônicos para sonoridade sair espontânea, com as suas variações. Daí o Kassin levou o disco para lá, para trabalhar e depois a gente passou a ser independente e tal. Esse disco consideramos como tudo o que a gente gostaria de ter feito até então para fechar esse ciclo da banda. Foi um resumo de tudo o que a banda foi até agora.
revista o Viés – Tu continuas compondo?
Nenung – Continuo compondo.
revista o Viés – E já imagina algo para um próximo disco?
Nenung – Um pouco. Música não falta, mas eu até espero e deixo correr um pouco o tempo para que surjam outras coisas. Nesse meio tempo minha mulher herdou umpiano que era da avó dela e agora eu to me divertindo.
revista o Viés – Tu sabes tocar?
Nenung – Essa é questão, estou começando a aprender. Querendo aprender. Fora a brincadeira de tocar as teclas dá para descobrir que é outro universo sonoro.
Telefone toca e Nenung atende.
revista o Viés – Voltando, quando tu estás em casa, que músicas tu ouves?
Nenung – Eu estou ouvindo bastante…quando a gente estava na França eu conheci uns jornalistas que eram apaixonados pela África e um deles tinha feito várias coletâneas para uma revista francesa de música africana. É uma coisa doida, por que é blues feito pelos africanos que ouviram o blues que surgiu da música africana. Então, é blues africano, uma coisa estranha, por que eles tocam com alguns instrumentos deles e tu nunca dirias que aquilo ali é um blues, e eles cantam com aquelas vozes deles, que é completamente verdadeira, forte pra caramba.
Eu ouço muito música dos anos setenta, em geral nos últimos tempos tenho ouvido bastante Jethro Tull, os álbuns dos anos setenta. A mulher gosta de umas coisas como Pink Floyd, Radiohead. Música brasileira dos anos setenta, Caetano, Felinni, tem várias bandas.
revista o Viés – Vocês tem alguma noção do público que já uniram? Fora os aviões indo para Hong Kong?
Nenung – Nós tem um público que é bem singular, toda a história é singular. A gente tá dentro do universo pop, mas a gente não acredita no universo pop. Basicamente a gente tá dentro, porém, eu considero uma banda subversiva (risos). Por que na verdade a gente não acredita que fama dê alegria para alguém, que essa coisa do reconhecimento pela música dure. É uma coisa que a gente tem visto. Um dia é capa de um caderno da Folha de São Paulo e naquele mesmo dia a gente tá com a conta zerada no banco. É uma ilusão, uma grande fantasia, enfim, o universo da arte parece ter sido usado como o alvo das projeções infantis, da carência das pessoas que nunca vão se realizar. Então a gente anda dando risada por esse universo dessa forma, não descarta ele por que ele é a referência das pessoas. Por um tempo a gente até insistia nessa coisa de “zen rock”, como o Wander usa o “punk brega”, mas não é uma coisa que eu ache eficiente, por que não faz diferença.
revista o Viés – Cada pessoa cria uma identidade que quer perceber na banda.
Nenung – É, é. Tu ouves, tu te identificas e aí vai dizer o que a banda é. A imprensa, o que a mídia vai dizer, tanto faz. Para mídia é mais fácil tu usares um jargão que eles conheçam e que eles identificam. A partir daí se cria até paralelos, a gente passou a conhecer Devendra Benhardt…
revista o Viés – O que tu achas do Devendra?
Nenung – Não gosto muito particularmente. Eu acho ele um cara legal, um cara interessante, mas não ouço muito. Na verdade, eu descobri outras coisas mais antigas, que eu ouço dentro do meu dia-a-dia. Eu ouço mais hard-rock dos anos setenta do que qualquer coisa parecida com o que a gente faz. Tu conheces Nick Drake? Nick Drake é sensacional, é um cara dos anos setenta (Nenung coloca o CD do cantor) que não chegou ao Brasil, foram lançados só discos importados. Ele era um cara absolutamente problemático em termos emocionais e eu descobri ele lá. Quando a gente estava na França, o senhor que era dono do selo que nos hospedou no apartamento tinha coleção completa desse cara que viveu só até os vinte e cinco anos. Ele é um cara que realmente me toca, só que eu descobri agora que ele tem quatro discos lançados, depois ele se suicidou, por que ele era realmente muito depressivo e não se tratava. Ingleses, né? Cara de inglês, né? Imagina um cara com absoluta simplicidade com uma riqueza melódica absurda que era o que eu buscava quando ouvia punk rock. Ou seja, vamos fazer uma música simples que diga coisas de verdade sem ter que recorrer a quinhentos pensadores ou alguma banda.
revista o Viés – Tu compõe em qualquer lugar?
Nenung – Ah, aham. Qualquer local, mas vale a situação, mais a oportunidade. Na verdade, eu não sou músico, né? Eu mais brinco com o violão, desde que eu aprendi, eu sei as bases, alguma coisa de harmonia. As coisas mais interessantes surgem da dissonância que vem do meu desconhecimento. Quando eu toco com amigos, quando a gente começou a tocar com o Kassin, o Moreno, que são caras super versáteis, eles me olhavam fazendo as músicas e diziam: “mas o que é isso, o que tu estás fazendo, tu não pode colocar isso depois daquilo!”, e eles não conseguiam tirar as músicas.
revista o Viés – E são as mesmas que tocam hoje em dia?
Nenung – Grande parte sim.
revista o Viés – E quando eles viram que dava certo?
Nenung – É óbvio que o resultado dá certo, a facilidade que eu tenho é fazer melodia sobre qualquer base, assim, então para mim é fácil por que faço numa base muito simples e eu consigo fazer uma melodia que eu acho interessante que fica legal quando entram as vozes.
revista o Viés – Tu lembras o lugar ou situação que tu tenhas escrito algumas músicas como “A lua na tv”?
Nenung – “A lua na TV” eu lembro que foi uma amiga, que depois não veio a fazer nada ligado à música na carreira dela. Na época a gente era bem próximos, eu gostava bastante dela e ela pediu que eu fizesse uma música para cantar. Na verdade, eu acabei fazendo uma música que não tinha nada a ver com ela, mas sim tudo a ver comigo (risos). E eu encontrei algo nesses livros de cifras que achei bem interessante, comecei a brincar, comecei a contar a história do meu avô que não acreditava que os homens tinham chegado à lua e juntei tudo, um pouco de tudo.
revista o Viés – A música então acabou ficando contigo.
Nenung – É. Ela não fez carreira, participava de uma outra banda, teve filho e tal. E a música acabou me traduzindo, tinha a ver com a minha história. Tem várias músicas que vem disso, de pensar em outra pessoa, mas se torna um gancho para nossa vida, no teu pessoal, na forma de ser colocada.
revista o Viés – E “Gigante”, tu lembras?
Nenung – No álbum Simples Mente as letras vieram todas juntas. Numa época que eu estava retirado em Três Coroas. Eu estava sentido muito forte a presença do Rinpoche, então veio “Homem que calculava”, “Gigante”, “Sem eira nem beira”, todas em questão de dias. Eu estava praticando bastante, daí quando eu saia, ia brincar um pouco com o violão e surgia uma música.
revista o Viés – Nenung é nome, sobrenome, nome escolhido?
Nenung – É apelido.
revista o Viés – Qual teu nome?
Nenung – Luís. O apelido deriva do apelido de criança, quando meus irmãos não conseguiam dizer meu nome, e com um jogador que veio pro Internacional e deu completamente errado. Depois eu descobri que Nenung já havia sido o nome de um Lama tibetano do século XIV. Uma conexão interessante, né? Então ficou. Eu tentei renegar mas não deu certo.
revista o Viés – Estou vendo na parede uma repetição de um quadro do Van Gogh. Tu gostas?
Nenung – Ah, gosto. Quando eu era garoto eu gostava de tudo que era outsider, né? Henry Miller, eu adorava tudo. Dentro dessa tendência então, Gogh, todos com essas histórias, Artaud, Rimbaud. Quando a gente foi para França teve essa coisa de olhar os Van Goghs direto. Nossa! Chocante. A energia do cara. A loucura dele de fazer o mundo, refletir, concêntrico, é uma outra visão que infelizmente na grande maioria dos caras acaba sendo engrenada pela doença, por uma coisa transcendente. É uma coisa que a gente aprende dentro da meditação, trabalhar. Essa geração que até hoje é “drug” tem que se drogar para ir para outro universo e tal, isso só é um jeito de disparar uma potencialidade que qualquer pessoa tem sem usar nada. O barato da meditação é esse, de tu poderes respirar esse ambiente de liberdade, sem ter que depender. Ser livre de dependências. É um caminho para tu treinares. Tu ficas independente do teu professor a partir de certo ponto. É isso que temos que buscar.
revista o Viés – Tu meditas todo dia?
Nenung – Sim. Em casa.
revista o Viés – Tu trabalhas em algum lugar fora compor?
Nenung – Não. O que me sustenta é a composição, mais que a banda. Eu componho para várias pessoas. De uns tempos para cá eu passei a compor tudo. Anteriormente eu compunha apenas músicas que eu tocaria. A partir daí eu comecei a fazer um exercício de compor, fiz samba já. Faço, gosto e me divirto. Tem até umas músicas sertanejas (risos e risos) que são brincadeiras, que nunca renderam, por que talvez para mim elas sejam uma piada. Eu vejo de um jeito que para mim é quase irônico, falar daquele tipo de sentimento, aquele tipo de relação não é uma coisa que eu acredito. Então talvez para aquelas pessoas que acreditam como uma coisa crível pode ser que bata, né? Se eu fizer aquilo que eu acho interessante para certas pessoas bate mais legal.
revista o Viés – Alguma música tua tocando ou que tenha tocado de maior sucesso?
Nenung – Tem uma que tocou bastante, é a mais conhecida da Paula Toller, que é “Meu amor se mudou pra lua”. Eu escrevi por que sabia que ela estava precisando de uma música, pensando numa perspectiva de como uma mulher diria, sem conhecer a mulher, do ponto de vida dela.
revista o Viés – Foi pedido ou tu enviaste?
Nenung – Um amigo do Rio me falou que ela estava para gravar um disco. E como eu sou bastante amigo do Dado Villa-Lobos, que é amigo dela, eu fiz e o Dado fez a ponte com ela. Então ela gravou sem muita expectativa, todos eles adoraram, a produtora adorou, mas ela tinha gravações com vários caras grandões e eles queriam usar essas (músicas) como música de trabalho. Só que todos os parceiros ingleses se amarraram demais no retorno da editoras para dar autorização da música de trabalho dentro do prazo que a gravadora queria lançar o disco. Então, pelas eliminações, a minha era a quarta, eu acho (risos), para ser escolhida, e virou a música de trabalho que de fato estourou. Ficou mais radiofônica que todas as outras. O Dado também gravou umas da gente. Ano passado, a Mariana Aydar. Ao vivo ficou bem legal, o cara da guitarra vai mais ao fundo. Ela é super querida. O disco dela foi produzido pelo Kassin. E é isso, vai rodando, espalhando música por aí, uma hora dá uma regularidade, mas se fosse viver de tocar eu estaria (gargalhada) com uma certa dificuldade.
Mas o interessante, na nossa viagem para França, foi conhecer o universo musical lá. Uma banda local nos acompanhou. Esse senhor que nos contratou chamou uma banda de lá, por que eles tocam muita música brasileira, eles conheciam muito mais música brasileira do que eu. Os caras eram bacanas, só que ralavam demais, demais dentro do universo francês para conseguir espaço, cantando em inglês, meio que se submetendo a uma regra, e a gente notando que lá é tão difícil quanto, e até pior, em termos de espaço. Em Porto Alegre, por exemplo, pela proporção, tem muitos lugares possíveis de se tocar que lá é fora do alcance, também rádio, TV, etc. Então é isso, não é fácil em lugar nenhum.
NENUNG EM UM FINAL DE TARDE, pelo viés de Bibiano Girard
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Simples assim, né? Coisa bonita de se ler.