Em uma área montanhosa, às beiras dos Pirineus, vive um povo que acredita que ver um gato preto na rua é sinal de sorte. Um povo que não se diferencia muito de seus vizinhos apenas nas superstições, mas em quase tudo. De raça e idioma milenares, de origens completamente desconhecidas, ali, entre Espanha e França, vivem os bascos.
Tema de incontáveis estudos, a história dos bascos continua uma incógnita. Historiadores divergem quanto à data da chegada desse povo à região que habitam até hoje. Ptolomeu coloca os vascones (povo que originou a raça basca) na região de Guipúzcoa já na Idade Antiga. Outros historiadores consideram que os bascos são uma mistura dos visigodos, suevos e gauleses que habitavam a Península Ibérica naquela época, mas não nenhuma teoria nunca foi provada porque o idioma euskera não parece ter nenhuma conexão filológica com qualquer outro, o que impossibilita a idéia de os bascos terem “vindo” de uma miscigenação.
Após uma lacuna historiográfica, os bascos voltam a aparecer em documentos no ano 1000 d.C. Teóricos nacionalistas bascos atribuem essa lacuna ao poder do povo basco de resistir a invasões e de se fechar em suas terras montanhosas. Na época medieval o País Basco era dividido no que hoje são suas províncias (Viscaya, Álava e Guipúzcoa). Cada região contava com um governo próprio, denominado foro. Porém, devido à belicosidade da época, cada uma dessas regiões passou por diversas coroas e mudou constantemente de sistema político.
Durante a conquista da Península Ibérica pelos mouros, e a cruzada católica de Reconquista, já se desenhava uma identidade cultural basca, entre as regiões de Viscaya, Álava, Guipúzcoa, Navarra e o sul da França. A região basca, por ser montanhosa e de difícil acesso, serviu de refúgio aos católicos durante a invasão moura. Vivia-se de bandidagem e guerrilha, e o euskera pôde ser mantido justamente por esse isolamento físico da população basca. Eles desempenharam importante papel no avanço das tropas católicas em direção ao sul da península, como Reino de Pamplona e em seguida como Reino de Navarra.
Por ser uma região fronteiriça, o território basco passou a ser disputado por castelhanos e franceses. Os foros nunca foram totalmente favoráveis a nenhum dos lados, sempre lutando pelo que parecia melhor para sua população. Mais uma vez, o profundo conhecimento das montanhas ajudou o povo basco a manter sua autonomia e independência. Até o século XIX o sistema político foral se manteve tranquilamente. Mas veio a Revolução Industrial e a região basca passa a ser a mais industrializada da península. Com a industrialização, vem a urbanização, e a proletarização.
Trabalhadores estrangeiros chegavam à procura de trabalho e geravam um atrito cultural. O idioma castelhano, antes dominado apenas pelos bascos de classe alta, que iam à universidade, passa a ser ouvido em fábricas por toda Bilbao. Idéias anarquistas, socialistas e republicanas começam a pipocar pelas cidades. No interior, a sociedade conservadora basca se via ameaçada e se agarrava nos foros para manter seu poder político. É nesse âmbito conservador, de defesa da cultura e do poder dominante basco que começa a surgir a idéia do nacionalismo basco.
Amparados na ideologia romântica que corria a Europa, os bascos, com o apoio da igreja conservadora, passavam a incitar o preconceito contra as outras culturas, cada vez mais presentes nas fábricas. Em contraponto a isso, movimentos operários passam a defender a adesão basca à república espanhola que se formava. A corrente conservadora funda então o Partido Nacionalista Vasco (PNV), visando a retomada dos rumos da sociedade basca e independência, após a unificação de Viscaya, Álava, Guipúzcoa, Navarra e do País Basco francês. Já os republicanos queriam a unificação desses territórios e a autonomia da Euskal Herria (País Basco) dentro da república espanhola.
Veio a Guerra Civil Espanhola, e enquanto os setores vanguardistas da sociedade basca lutavam do lado da república, o PNV declarou-se neutro, apoiando os republicanos apenas nas regiões onde estes eram maioria (Viscaya e Guipúzcoa). Uma das guerras mais sangrentas da história teve os nacionalistas espanhóis como vencedores, e os bascos pagaram seu preço. Os partidários do generalíssimo Franco, sob o lema Espanha, Uma, Grande e Livre proibiram o uso público de todas as línguas que não o castelhano e de manifestações culturais não-nacionalistas. Com exceção de Álava, que lutou pelos nacionalistas espanhóis na guerra, toda a autonomia basca foi perdida, e os foros sumariamente fechados.
Lideranças nacionalistas bascas, em maioria do PNV, foram exiladas na França e de lá tentaram reconstruir o ideário do nacionalismo. Enquanto Franco incentivava a industrialização pesada do País Basco, grupos da juventude do PNV começavam a organizar uma maneira de tentar combater o regime fascista espanhol. Um desses grupos, chamado EKIN, acaba expulso do partido por querer uma ação direta contra a ditadura, inspirado nas lutas de libertação nacional que pipocavam pelo mundo.
Em 1959 o EKIN assume o nome Euskadi Ta Askatasuna (ETA), que significa Terra Basca e Liberdade, e se assume como organização em busca da independência do País Basco. Em 1961 o grupo tenta descarrilar um trem que transportava militares para a comemoração da Guerra Civil em San Sebastián. No ano seguinte é realizado o primeiro congresso do ETA, que define o grupo como laico e marxista, e considera bascos todos os que vivem e trabalham no País Basco, o que rechaça a idéia fascista da raça basca.
Como qualquer organização política, quanto mais crescia o ETA, mais as divergências internas apareciam. Em 65, no IV Congresso, três fortes correntes são definidas, uma nacionalista, uma operária e outra internacionalista. É nesse ano que se aprovam a luta armada e também a violência para buscar dinheiro. Em 1968 é realizado o primeiro ato com sucesso do grupo, o assassinato de um guarda civil. Logo ocorre o primeiro racha, quando um grupo que defendia a união na luta com a classe operária de toda a Espanha acaba por fundar um partido chamado Movimiento Comunista.
A cada ano passam a ocorrer mais rachas, sempre por divergências estratégicas, e com isso cada vez mais o ETA toma a luta militar como mais importante que a política. Em 1973 o ETA ganha fama e respeito internacional ao assassinar o presidente de governo da Espanha, Luis Carrero Blanco. À época, grande parte da população basca apoiava a organização, pois ela lutava justamente contra a opressão que sofria o povo basco. Mas, com a morte de Franco e a redemocratização da Espanha, a conjuntura foi mudando.
O País Basco ganhava autonomia (não total) na constituição, que ainda abria espaço para a anexação da comunidade de Navarra quando a população desta quisesse. O PNV poderia atuar legalmente e governar o País Basco, algo que ocorre de 1980 até hoje, ininterruptamente. Um nacionalismo conservador aparecia com a mesma intensidade que o radical, algo raro na época da ditadura, quando somente os radicais atuavam.
O ETA resolveu atacar essa “falsa democracia”. Fez desse período de transição política sua fase mais sangrenta (uma média de 80 assassinatos por ano, entre 1978 e 1980). Mas o governo espanhol contra atacou, e a cada vez mais prendia e matava lideranças etarras. O governo francês, que antes fechava os olhos para as atividades “anti-fascistas” do grupo, agora também participava nessa luta implacável contra o que definiam ser terrorismo.
Durante as décadas de 80 e 90, a luta nacionalista basca dependeu da macro-política espanhola. PNV e ETA se portavam de maneiras diferentes de acordo com o partido que comandava o país. Com o PP (Partido Popular), partido conservador, se travava uma luta implacável contra o ETA e o PNV se mostrava opositor à política espanhola, ainda que de uma maneira não muito radical. Com o PSOE (Partido Socialista Obrero Español), partido de esquerda, ambos os grupos tentavam acordos e houve vários cessar-fogos temporários do ETA. O problema é que o grupo radical sempre considerava os avanços nas negociações pela independência, tanto por parte do PSOE como por parte do PNV, muito lerdos, e a ação armada voltava à pauta.
Com o tempo os ataques ao ETA mudaram de natureza. Além de prender e matar etarras, o governo espanhol resolveu fechar qualquer braço legal da organização, como jornais, rádios e partidos, que em suas propagandas aproveitavam para divulgar as ações do grupo terrorista. A relação dos etarras com a população também mudou. Atualmente apenas 10% da população basca diz apoiar a luta do grupo, e 1% concorda com a totalidade das ações do ETA.
A professora espanhola de história e arte, Rosa Comas, filha de uma basca, resume o sentimento nacionalista basco atual: “eles tem uma língua muito especial, uma história muito especial, costumes muito especiais. Isso é certo. E também é certo que muita gente tem esse sentimento nacionalista, independente de ser conservador ou não. Inclusive gente que não quer a independência, eles são bascos, claramente. É uma identidade muito definida, e dentro dessa identidade tem gente que quer a independência e gente que não. Mas o sentimento nacionalista é evidente. Há uma música, uma língua, uma cultura, uma tradição, isso é claro. O problema é que grande parte dos que pedem a independência não pedem só isso, pedem também a independência da parte francesa. E se a independência da Espanha é extremamente difícil, a da França é impossível.”
A luta pela independência do País Basco agora parece cada vez mais difícil devido à unificação dos países europeus. Pareceria algo como nadar contra a maré. Mas a utopia e o idealismo, resgatados do auge do romantismo, da época de criação de identidades culturais, como a italiana e a alemã, permanece. E permanece muito mais forte que na maioria dos países. O que nos resta fazer é refletir o que é valido nessa busca de identidade e o que passa dos limites, até onde se pode chegar nessa luta, se todo o sangue jorrado pode ser justificado por um “final feliz”.
TERRA BASCA E LIBERDADE, pelo viés de Mathias Rodrigues
mathiasrodrigues@revistaovies.com
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ola, boa noitee … gostaria de saber mais sobree o povo
o basco, teria como me enviar mais alguns e-mails ?
obrigada!
Discordo de alguns pontos do texto que, em geral, é bom.
Primeiro, ao falar dos primórdios, destaca apenas 3 regiões históricas, quando Navarra (tanto a parte na Espanha quando a Francesa de Baixa Navarra), Lapurde e Zuberoa também são regiões históricas que formam o País Basco. A divisão entre França e Espanha é recente em comparação à antiguidade do povo naquele local.
Outro ponto é considerar que o nacionalismo basco é algo inerente da direita. Sim, Sabino Arana, pai do nacionalismo Basco era um direitista racista, mas não se pode esquecer que já nos anos 30 a ANV – Ação Nacionalista Vasca – era um partido nacionalista e de esquerda, partido este que existiu até alguns anos atrás, mas foi ilegalizado por Garzón, acusado de ser ETA.
Aliás, o efêmero Partido Republicano Nacionalista Vasco, fundado em 1911 era de esquerda, um antecedente à ANV.
O nacionalismo basco não nasce simplesmente de uma classe conservadora anti-imigrante e proletária. Claro, havia este conteúdo, mas é muito simplista. O fim dos foros após as Guerras Carlistas – e a origem carlista do próprio Arana – são igualmente importantes.
A imigração maciça e a urbanização foram também reflexo das Guerras Carlistas e eram como uma mensagem aos Bascos: Vocês perderam.
Mas a diminuição da relevância do Basco era também um fator relevante. O próprio Arana não era Euskaldun, ou seja, aprendeu o Basco depois de mais velho.
Os interesses eram muitos e complexos para definir como uma oposição anti-imigração, ainda que este fosse parte do conteúdo.
A questão dos foros é um pouco mais complicada. Eles davam virtual independência aos Bascos, mas como se viu no séc. XIX, era frágeis. Ao menos para uma potência imperialista que não se importava com as vontades do povo oprimido.
Mais tarde completo o raciocínio!=)
Completando:
Outro ponto é que os Foros não foram abolidos apenas com Franco, mas na época da concertacion económica de Cánovas del Castillo em 1876-78.
O Pais Basco já havia perdido toda sua autonomia, ainda que por alguns meses, em 1937, tenham sido virtualmente independentes. Outra pequena incorreção é que não só Álava lutou por Franco, mas também boa parte de Navarra.
Quanto à luta contra a Ditadura, o PNV pouco fez. Motivo pelo qual, jovens ligados ao EGI (Euzko Gaztedi Indarra), juventude do PNV, formaram um grupo chamado EKIN, como coloca o texto, e iniciaram um processo de discussão interna e aproximação com os movimentos proletários, em oposição ao PNV, ainda conservador. Em 1959 o primeiro nome da ETA era ATA, que em um dos dialetos basco significava “Pato” e, então, adotaram ETA, que também significa “e” em Basco.
A ETA adota o ideário de Libertação em sua I Assembléia, em 62, mas o Socialismo, em definitivo, apenas em 64, na IV Assembleia, quando o grupo também se divide em 3 correntes internas e daí tem seu primeiro racha. A análise sobre o racha é simplista, mas em geral correta. Foram formados 3 grupos, Branka, ETA Zaharra e ETA Berri, o último se tornando partido político, o EMK.
Quanto ao PSE, mais pra frente, eles negociavam, mas por debaixo dos panos financiavam grupos de extrema-direita, como os GAL, intimamente ligado ao então Premier Felipe Gonzáles.
O Grande problema não era apenas a lentidão, mas a falta de comprometimento por parte do governo que JAMAIS colocou sobre a mesa a opção da autodeterminação e cozinhava em banho-maria a ETA. quanto às pesquisas de apoio, irrelevantes e irreais, não se pode confiar nestas pesquisas.
O final, pessimista, deixo a cargo do autor do texto. A independência do País Basco e da Catalunya cada vez mais se torna factível, por motivos que devem e podem ser ampliados e melhor explicados.
Liberdad!
http://camponesesdealtitude.blogspot.com/2011/05/nossa-historia.html