“A periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor”, diz um verso do poeta Sérgio Vaz que foi recitado na Praça dos Bombeiros, depois que a Marcha contra o Genocídio da Juventude e do Povo Negro concluiu seu trajeto até o local. Para lutar contra a dor das mortes que atingem os jovens de cor negra muito mais do que qualquer outra no Brasil, dezenas de estudantes, trabalhadores e moradores das periferias de Santa Maria, em sua maioria negras e negros, se reuniram para marchar na tarde de sábado, dia 22 de novembro.
A luta contra o extermínio dos jovens negros, principais vítimas de homicídios no país e suspeitos preferenciais nas abordagens policiais, é uma pauta antiga do movimento negro no Brasil. O crescimento do número de jovens negros que têm suas vidas violentamente interrompidas, contudo, tornou essa luta mais urgente do que nunca: ser jovem e negro no Brasil, hoje, é ter 3,7 vezes mais chance de ser vítima de homicídio do que um jovem branco da mesma faixa etária.
Segundo dados do Mapa da Violência de 2012, dos 56 mil homicídios que ocorrem por ano no Brasil, mais da metade – cerca de 30 mil – vitimizam jovens do sexo masculino. Destes, 77% são negros. Números como este motivaram a Anistia Internacional a lançar em 2014 a campanha “Jovem Negro Vivo”, para chamar atenção para o alto número de mortes entre os jovens do país e, em especial, entre os jovens negros.
A situação se agrava quando se percebe que parte considerável desses assassinatos é executada por agentes de segurança do Estado, policiais, e que menos de 8% do total de homicídios no país chega a ser julgado.
Em diversas cidades de todas as regiões do Brasil, o movimento negro realizou Marchas contra o Genocídio da Juventude e do Povo Negro, aproveitando o momento de celebração da Consciência Negra para atrair atenção para esta triste realidade. No Rio Grande do Sul, a Marcha também foi realizada em Porto Alegre.
A Marcha contra o Genocídio da Juventude e do Povo Negro de Santa Maria foi precedida por uma série de atividades ligadas à 26ª Semana Municipal da Consciência Negra em escolas, bairros e na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Na tarde de sábado, dois dias depois da data que marca a morte do Zumbi dos Palmares, a Marcha iniciou sua concentração na Praça Saldanha Marinho, para passar pelo Calçadão, pela rua Alberto Pasqualini e, finalmente, rumar para a Praça dos Bombeiros, onde aconteceram intervenções e as apresentações de grupos de rap seguiram até a noite.
Na passagem pelo Calçadão, a Marcha se ateve em frente ao Shopping Santa Maria, onde dois dias antes os jovens MC’s do grupo de rap Com Base – que se apresentaria depois da Marcha, na Praça – haviam sido agredidos por seguranças do estabelecimento. Entre cantos e palavras de ordem, as falas feitas pelos MC’s ao megafone denunciavam o preconceito de que foram vítimas na quinta-feira anterior, quando estavam na praça de alimentação do shopping.
Já na Praça dos Bombeiros, refletindo sobre a placa que carregava com os dizeres “o 13 permanece vivo”, Suelen Aires Gonçalves, moradora da ocupação Nova Santa Marta, militante do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), cientista social formada pela UFSM e homenageada com a Comenda Luíza Mahin na 26ª Semana Municipal da Consciência Negra, lembrou que a vulnerabilidade dos jovens negros decorre de um processo histórico no qual a população negra foi deixada à própria sorte após a abolição da escravidão.
“No dia 13 tivemos a ‘liberdade’, entre aspas, e no dia 14 nós estávamos ocupando as periferias do nosso país, que era esse local que nos foi destinado: a falta de política pública, a falta de acesso ao Estado como um todo, que o nosso povo negro sofreu. Pensando assim, o dia 14 dá início à formação das nossas cidades. Os lugares que nos foram destinados não foram os locais onde existia o acesso à saúde, à educação, à cidadania. Foram as periferias do país, periferias que tem cor, e é a nossa cor. Infelizmente a morte hoje tem cor e tem gênero. É uma geração que está sendo dizimada, nossos jovens negros estão sendo dizimados”.
A Marcha, organizada em Santa Maria pelo setor de negros do Levante Popular da Juventude, pelo Coletivo de Resistência Artística Periférica (CO-RAP), pelo grupo de capoeira de rua Berimbau, pela comunidade de terreiro Ilê Axé Ossanha Agué e pelo grupo de dança Dance Crazy Soul, ocorre em um ano marcado pela grande quantidade e repercussão dos homicídios no município.
“Nós estamos no 49º assassinato em Santa Maria este ano. Não temos os dados concretos, mas sabemos que grande quantidade é de jovens negros. Eu moro na região oeste, no loteamento Cipriano da Rocha, onde foram assassinados três jovens negros nos últimos anos. Infelizmente, estamos muito bem representados nesse índice”, afirma Nei d’Ogum, membro da comunidade de terreiro Ilê Axé Ossanha Agué e do Conselho Nacional Afrobrasileiro (CNAB).
Para Nei, as soluções de cunho unicamente repressor propostas até agora pelo poder público são insuficientes. “As autoridades da segurança pública, a Polícia Civil, a Polícia Militar, no Rio Grande do Sul, a nível nacional e aqui em Santa Maria colocam que os homicídios estão relacionados com o tráfico, que vão investir na segurança e fazer policiamento ostensivo. O movimento social negro organizado acha que temos que ter atenção com a segurança pública, inclusive remunerar melhor os policiais, mas aponta que nós temos problemas. A Marcha de Santa Maria veio para gritar alto que estão acontecendo mortes, que muitas têm sim relação com o tráfico, mas que o tráfico não está fora da sociedade”.
Se, por um lado, a ausência ou insuficiência de políticas públicas mantêm grande parte da população negra e periférica à margem do sociedade, ainda impossibilitada de acessar direitos básicos, por outro, a face violenta do Estado mostra toda a sua força e evidencia a persistência de uma visão racista e conservadora em suas instituições.
Suelen Aires Gonçalves, que é também pós-graduanda em Segurança Pública e Mediação de conflitos na UFRGS, aponta que o fato de os negros serem considerados os “suspeitos preferenciais” está ligado a uma perspectiva racista institucionalizada no processo de formação dos policiais.
“As academias de polícia tem um cronograma de disciplinas voltadas principalmente ao Direito e à ‘Ciência da Polícia’ – que não existe, é uma nomenclatura criada por eles – e tem várias disciplinas ministradas, e uma delas é a abordagem policial. No material dessa disciplina, encontramos em um livro a figura de um homem que, pelo material ser em preto e branco, não pudemos identificar a cor, mas que pelo fenótipo é um homem negro. Ou seja, a nossa polícia ainda tem o homem negro como um ser desviante, como um primeiro suspeito a ser abordado”, conta Suelen, referindo-se a um material veiculado entre as polícias do estado de Goiás.
“Nitidamente, a gente percebe que ainda é a cultura dessa instituição, que é conservadora, e que reforça o estereótipo do negro como suspeito preferencial, primeiro a ser abordado. E aí passa, sensivelmente, a gente pensar o que as polícias estudam para se chegar a essa situação”, prossegue Suelen.
Ano passado, teve repercussão um documento da Polícia Militar de Campinas que orientava os agentes a abordarem com rigor pessoas “em atitude suspeita, especialmente indivíduos de cor parda e negra”, num dos raros momentos em que o sutil racismo institucional é documentado e acaba comprovando a máxima cantada pelo rapper Rappin’ Hood: “se você for preto como eu, ó meu irmão / parado é suspeito, e correndo, ladrão”.
Movimentos sociais, recentemente, têm destacado o fato de que a Polícia Militar é ainda um resquício da Ditadura Militar. E, diante da perspectiva militarizada que as PMs reproduzem, quem acaba sofrendo mais é o povo negro. “É a população que está à margem da sociedade, que não tem acesso à política pública e muitas vezes nem sabe o seu direito no momento em que está sendo abordado. E, infelizmente, eles se utilizam também da coerção, do medo. Eu sinto medo, tem uma turma com 40 militares que eu entro e que tem 40 pessoas armadas no mesmo espaço que eu. Então, precisamos problematizar essas questões: que polícia que o povo precisa e que polícia que está sendo formada”, afirma Suelen.
“Será que Zumbi estaria feliz se estivesse conosco aqui hoje? Será que estaria feliz se estivesse aqui vendo o que está acontecendo com sua juventude negra?”, questionou Isadora Bispo, representante das jovens de comunidades de terreiro no Conselho Nacional da Juventude. Isadora, que definiu a sua angústia como a de uma “jovem negra, mulher e mãe”, aponta outra questão que, infelizmente, tem pertinência especial para a luta do movimento negro: a dos chamados “autos de resistência”.
Os “autos de resistência” são, em teoria, mecanismos legais que justificam as mortes cometidas por policiais contra quem, teoricamente, resistiu à prisão. Na prática, eles acabam encobrindo o assassinato de milhares de jovens – em sua maioria, negros e pobres – sumariamente executados por policiais nas periferias das grandes cidades, para quem a presunção da inocência e o Estado de direito simplesmente não existem.
Isadora chamou atenção para a importância do Projeto de Lei 4.471/12, que tramita no Congresso Nacional e pretende terminar com os autos de resistência, alterando o Código Penal e criando regras para a apuração de mortes e lesões decorrentes das ações de agentes do Estado, como os policiais.
As práticas de extermínio executadas por policiais obtiveram alguma repercussão depois de casos como o do pedreiro Amarildo, que desapareceu depois de ser detido na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha em 2013, e do dançarino DG, do programa Esquenta, encontrado morto depois de uma abordagem policial no Morro Pavão-Pavãozinho, no Rio de Janeiro. Além desses casos que ganharam alguma visibilidade, muitos outros seguem acontecendo em silêncio, sem investigação ou julgamento, como fala Isadora:
“Começamos a nos perguntar todo dia onde estão jovens como Davi, que há trinta dias, em Salvador, na Bahia, sumiu depois de uma batida policial. Eu me pergunto onde estão três filhos de santo meus que sumiram, o Otávio, o Guilherme e o Dodó, todos eles em batidas policiais. Eu quero saber onde estão esses jovens, e a PL 4471 vem falar sobre isso. Ela pede que a gente investigue a polícia também, pede que a gente dê uma resposta para as mães que estão sofrendo como as Mães de Maio lá em 2006, que perderam mais de 400 jovens. Cadê os nossos jovens? Cadê a juventude negra? Eu tenho direito de saber onde está o meu filho. Eu tenho o direito, como jovem negra, de passar e ser respeitada”.
Os autos de resistência são considerados “entulhos” da ditadura militar. Um estudo publicado em 2013 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que, considerando os dados oficiais de mortes decorrentes de ações policiais entre 2000 e 2012, em média cinco pessoas são mortas por dia pela polícia no Brasil – um total de mais de 21,6 mil mortes em 12 anos. O estudo ressalta, ainda, que esses dados são frágeis e provavelmente subnotificados, ou seja, na realidade o número de homicídios praticados pela polícia e encobertos pelos “autos de resistência” ou considerados “mortes em confronto” podem ser bem maiores.
As principais vítimas dessas mortes são jovens pobres e negros, que, como lembra Nei, também são a maioria no sistema carcerário brasileiro. “Da população do Rio Grande do Sul, somos 20% autodeclarados afrodescendentes. Quando olhamos para a população carcerária, a população negra dobra: nas prisões são 40%”.
Além da luta para que a impunidade cesse e os homicídios praticados pela polícia passem a ser investigados, com o fim dos autos de resistência, para Nei é importante que surjam novas políticas públicas para incluir a população que ainda se encontra marginalizada.
“A política institucional infelizmente tem falhado, não tem tratado e dado retorno para as demandas da luta negra, da luta das mulheres, dos LGBTs, das comunidades indígenas e quilombolas. Se a política institucional de fato quiser, é possível desenvolver políticas públicas, ações concretas para garantir espaços de convivência para a juventude nas periferias vítimas da violência, o reconhecimento das culturas negras como importantes, a realização de cursos profissionalizantes, como o PRONATEC, mas de acordo com as comunidades periféricas, com a participação da juventude negra, que fosse consultada sobre o que se quer trabalhar, que esses projetos não fossem construídos em gabinetes, mas o oposto, que as comunidades fossem ouvidas e que a política se desse a partir daí”.
Depois das falas, a atividade foi encerrada com as apresentações dos grupos de rap, cuja música reverberou até a noite pela Praça dos Bombeiros. A luta por dignidade e pelo atendimento de demandas básicas continua, com a esperança de que, um dia, marchas como essa não sejam mais necessárias.
Marcha contra o genocídio: pela vida dos jovens negros, pelo viés de Tiago Miotto.