SEJA MACHO E LEIA ESTE TEXTO

Arte da campanha "Seja macho: dirija como mulher"

Os homens estão na direção do carro na grande maioria dos acidentes de automóvel com mortes no Brasil. No Rio Grande do Sul, especificadamente, em Santa Maria, as estatísticas confirmam a situação nacional.  Entre 2007 e 2013, segundo dados do Departamento Estadual de Trânsito (DETRAN), nos acidentes envolvendo morte ocorridos na cidade, 89,83% dos condutores que foram vítimas eram homens.

O último relatório disponibilizado pelo DETRAN, em 2013, com dados estaduais, mostra que o número de vítimas em acidentes envolvendo, além do automóvel, outros veículos, até setembro, foi de 1.477. Desse total, 324 eram mulheres, proporção que se mantém constante quando avaliados apenas acidentes com automóvel. No estado do Rio Grande do Sul, ao volante morreram 379 condutores e 33 condutoras.

O fato de serem homens, em maioria absoluta, que estão ao volante quando existe acidente envolvendo morte, pode ser pensado como resultante do tipo de relações de gênero patriarcais vigente em nossa sociedade, e construída ao longo da formação da ordem social brasileira, eivada de um ethos patrimonialista?

A partir de um questionamento pessoal surgido enquanto ouvia mais uma notícia sobre acidente de trânsito, a Dra. Fátima Perurena, professora do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), indagou-se sobre uma peculiaridade nos dados e nas reportagens difundidas. Na grande maioria, eram – e ainda são – homens na direção nos casos de acidentes com vítimas fatais. “Era aí que estava minha ponderação inicial”.

A especulação de Perurena envolvia, no caso, uma ideia fundamentada em questões de gênero, que o cotidiano, filtrado pela pesquisa, parece confirmar. O carro, conhecido como “veículo de passeio”, aparece como predominante nos números de acidente com vítimas fatais nas ruas da cidade e nas estradas municipais, estaduais e federais. E os homens estão em grande maioria ao volante. “É o imaginário, porque existem, na realidade social, muitas formas de se desenvolver a masculinidade. Alguns homens estabelecem com o carro uma afinidade de posse”. A ligação entre homem e automóvel e com o que ele supostamente simboliza – como status -, consequentemente gera mais mortes de homens no trânsito, como começou a ser observado pela pesquisa iniciada na UFSM.

Em 2006, uma aluna do curso de Ciências Sociais da UFSM começou um levantamento, em Santa Maria, de dados estatísticos que propiciaram um melhor entendimento sobre a situação local. A conclusão, à época, mostrou na esfera local a sequência do que ocorria pelo país. Para a professora, os fatos não podiam ser analisar como simples fatalidades. “Não é possível que não se possa evitar essa carnificina. Há estudos sobre violência no trânsito, outros, da Engenharia, sobre a malha viária e a sua ligação com acidentes. Sabemos que nem sempre a estrada é das melhores, que em alguns pontos não há sinalização, mas um grande número de acidentes ocorre em estradas maravilhosas, bem sinalizadas, onde outros carros transitam normalmente”.

Perurema: "Não é possível que não se possa evitar a carnificina da violência no trânsito"

Conhecidos pelo senso comum, os principais fatores encontrados na causa de acidentes com morte – quando são homens ao volante – são a ultrapassagem perigosa, a alta velocidade, a rejeição ao uso do cinto de segurança e o uso de álcool antes ou durante a direção. Como principal imprudência cometida com mais frequência, aparece o uso do celular. Insurge aí a tarefa de olhar o número exorbitante de acidentes fatais que envolvem homens na direção e sua relação com o gênero, do homem com a noção que ele tem sobre dirigir e sobre possuir um carro.

“É como se, para os homens, dirigir fizesse parte do mundo masculino. O carro é usado como um artefato de poder. O pai coloca o filho pequeno no colo com as mãos na direção. Com as meninas, acontece diferente, os pais não fazem isso com a filha mulher”. Também aí, outro fator de gênero, de condição, submete as mulheres, majoritariamente, ao ensino regrado e normativo de uma aula ministrada por um CFC, o que já a coloca em outro papel frente ao uso do automóvel, diferente da noção masculina.

No primeiro semestre de 2013, os alunos da disciplina de Estudos de Gênero, ministrada por Perurena, aceitaram um convite atípico. Abdicadas as provas, trabalhos formais e afins, os alunos iniciaram, em conjunto com Fátima, uma campanha que propunha levar para as ruas o que as pesquisas vinham apontando. Neste ano, com um grupo mais amplo de alunos, foi possível esquematizar e colocar em prática a campanha “Seja Macho, Dirija como Mulher”, que já está no ar na rede social Facebook e logo estará nas ruas.

PARA ALÉM DAS ESTATÍSTICAS

Com os primeiros dados em mãos, em 2006, mas apenas com uma aluna colaboradora, a professora manteve a pesquisa arquivada, o que não era sua proposta. “Sempre tive a ideia de, sobre essa pesquisa, fazer uma atividade de Extensão. Na minha leitura, a ciência só precisa existir para diminuir o sofrimento humano. Fazer uma pesquisa dessas, com investimento público, e engavetá-la, não resolve muita coisa. Mas para colocar o projeto em prática, precisávamos de gente, de pessoal”.

Em 2010, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou uma resolução para o período entre 2011 e 2020, designado como a “Década de Ações para a Segurança Viária”, formulada através de dados da Organização Mundial de Saúde, que sugere a elaboração de um plano de estabilização e redução no número de acidentes de trânsito em todo o mundo. No mesmo ano, foi enviado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq) um projeto para estruturação e reconhecimento científico da pesquisa organizada pela professora na UFSM. Naquele ano, 77% das vítimas fatais em acidentes de carro em Santa Maria eram homens.

O estudo ganhou apoio do CNPq e implantou, naquele ano, sua primeira bolsa de estudos. Foi então que a pesquisa se projetou sobre alunos que estavam em Centros de Formação de Condutores (CFCs) e pretendiam fazer carteira. A partir de observações elaboradas com a intenção de conhecer o perfil de quem buscava fazer a documentação, percebeu-se a autoridade do gênero sobre a composição da relação entre motorista e o ato de dirigir. Das primeiras 153 pessoas entrevistadas, a grande maioria buscava fazer sua primeira habilitação, mas a metade respondeu, para a pesquisa, que já sabia dirigir. As que aprenderam antes dos 18 anos somavam 47, e entre estes, aqueles que foram ensinados pelo pai, 35.

Como vai demonstrando a pesquisa, a questão da violência no trânsito é inseparável da noção de gênero. Como lembra a professora, há alguns anos, um menino de 11 anos foi encontrado 24 horas depois de sair de casa com o carro dos pais e ter dirigido pela Freeway, movimentada rodovia do estado. “O menino tinha 11 anos e dirigiu com técnica! Quer dizer, com essa idade, um menino saber dirigir é indício de que um adulto ensinou. E provavelmente um homem, o pai”, diz a professora, que desfaz alguns enganos crassos: “não se trata, aqui, de uma guerra dos sexos. Nem homens dirigem melhor, nem mulheres dirigem melhor. Não é questão de competição. Trata-se de que mulheres são um pouco mais cuidadosas no trânsito por conta exatamente das relações de gênero que a gente vive. Por nossa própria condição de maior submissão que os homens, obedecemos mais as leis. A história de que mulher é meiga e delicada é conversa. São construções do gênero, da própria submissão. Não se trata de habilidade, de técnica, trata-se de comportamento”.

A pesquisa com os jovens ratificou o que as estatísticas mostravam. A maioria dos entrevistados disse que, quando são feitas saídas em família, ou entre amigos, o motorista é homem, já que em grande número é o homem o dono do automóvel. Em questão familiar, apontou a pesquisa, os homens dirigem mais por serem os únicos a terem carteira de habilitação. Mas o estado atual da pesquisa gera uma discussão que procura mostrar que muito mais do que entendermos números e buscarmos melhorias materiais efetivas, o ponto essencial ainda se encontra na mudança de padrão de comportamento do condutor.

Este ano, a cada 11 minutos e 18 segundos, uma pessoa morreu vítima da violência no trânsito. Em 30 anos, foram quase um milhão de mortes nas ruas e estradas do país. Ainda com dados alarmantes, que podem figurar como análogos ao número de mortes de países em guerra, os acidentes, principalmente aqueles envolvendo automóvel, são assumidos pelo senso comum mais como problema particular dos envolvidos do que consequência da união de fatores sociais que sustentam o massacre, como as questões patriarcais e patrimoniais.

O carro, como meio privado, tendencia os homens a não considerar as responsabilidades no trânsito e a população a desconsiderar a chacina como questão social.  Como aponta a pesquisa dos alunos da UFSM, a origem de tanto sofrimento pode estar em um ethos cujas causas estão inscritas na própria sociedade. A questão patriarcal expõe um tipo de moralidade familiar que penetra no tecido social brasileiro e que, atualmente, pode ser compreendida na imposição quase imperceptível do aprendizado da direção ao filho homem: “Do machismo, nem sempre se consegue fugir. De alguma forma o patriarcado está impregnado em nós”, diz a Perurena.

Lançada a campanha, o grupo precisou esclarecer tópicos indigestos à população, como o caso da proporção. “As pessoas dizem: ‘mas é claro, tem mais homens dirigindo, logo mais homens morrem no trânsito’. Mas é necessário fazer a proporção. Com a proporção, fica ainda mais simples perceber. A questão não é, evidentemente, a luta dos sexos. É uma forma de provocar: ‘Seja macho, dirija como mulher’. Os homens ficam inicialmente assustados. Mas o que queremos é que as pessoas tragam para dentro de casa essa discussão. Desfazer essa ideia de que a mulher dirija melhor. Ela erra, somos seres humanos, mas, na direção, as mulheres são mais cuidadosas”.

“É época de fim de ano e normalmente muitas famílias viajam pelo estado, pelo país, se deslocam. Há o motorista, mas há ao todo uma família. Se os homens são mais imprudentes e morrem mais, a tendência é que morra ainda mais gente. Se pudéssemos fazer um experimento neste próximo natal e entrada de ano, e colocássemos só mulheres ao volante, o que poderia acontecer? Acredito que cairia muito o número de acidentes”, complementa Perurena.

A ideia do projeto, atualmente com 24 alunos, é ir para a rua “fazer com que as pessoas pensem sobre isto”. A campanha ocorrerá entre novembro e janeiro, com panfletagem durante os dias de vestibular, no campus, e em alguns outros pontos da cidade. Com uma parceria firmada entre universidade, prefeitura e CNPq, a campanha “Seja macho: dirija como mulher” poderá ser acompanhada em busdoors e outdoors, além de uma cartilha, que será entregue gratuitamente em CFCs. “É preciso que as pessoas conversem em casa sobre gênero e a partir daí se perceba que as mortes podem ser evitadas. Nosso sistema de gêneros é péssimo tanto para homens como para mulheres. É isto que queremos esclarecer. Quem acha que é mais fácil ser homem está redondamente enganado, porque os homens pagam um preço alto para estarem na posição em que estão”.

SEJA MACHO E LEIA ESTE TEXTO, pelo viés de Bibiano Girard 

bibianogirard@revistaovies.com

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